quinta-feira, 9 de maio de 2013

Marte não pede por óculos (1)


Estava sentado no escuro, iluminado apenas pela luz artificial do monitor ligado. Se você olhasse agora pela porta entreaberta, poderia ver o reflexo do que acontecia no computador nos óculos grossos que permaneciam no rosto do escritor - lentes riscadas e sebosas pelos dias de uso contínuo. Ele nunca lavava os óculos e isto a incomodava profundamente. Era engraçado. Possuía uma higiene pessoal primorosa, incluindo os centímetros de pele entre sua orelha e a nuca, terra de ninguém, esquecida por toda a humanidade, menos por ele. Mas não os óculos, nunca. As lentes ficavam esbranquiçadas, nojentas e a mulher se perguntava como ele conseguia enxergar a própria merda quando estava sentado na privada. “Eu não encaro minhas próprias fezes, mulher”, respondeu quando confrontado, “você está maluca?” Os óculos também acumulavam pele morta nas pernas da armação e duas vezes por semana ela retirava o instrumento enquanto ele dormia e os lavava na pia do banheiro. Gostava lavar os óculos por ele, sentia como se ele precisasse dela por perto, como se o caos fosse tomar conta sem sua presença na casa.
O que ela não sabia era que estava certa.
Ele escrevia com velocidade, não desgrudava os olhos das palavras que nasciam como mágica e sentia os olhos ardendo pela luz quase fictícia que iluminava o rosto. Cachos de cabelo caiam sobre a testa alongada e um copo cheio de bourbon descansava ao lado do teclado. Periodicamente ele levava o vidro à boca e sorvia da bebida, fazendo uma careta enquanto sentia a garganta e o estômago arderem. Harry, o escritor, retirou os óculos e pressionou ambos os olhos com dedos da mão esquerda, vendo pequenos pontos de luz mesmo com as pálpebras abaixadas. Porra, como eles ardiam. Talvez fosse hora de parar por hoje. Talvez ele devesse espremer mais uma ou duas páginas antes de procurar por Brenda. Talvez eu devesse limpar essa merda, pensou, encarando os as lentes sujas. Enxergo melhor sem eles, poxa. Esfregou-os na flanela que usava e, em rápidos movimentos circulares, jogou a gordura acumulada para os cantos da armação. Colocou os óculos contra a luz que entrava pela fresta na porta e notou Brenda na sacada do apartamento em uma imagem distorcida pelas lentes convexas. Ela tinha os cabelos castanhos presos em um coque e descansava em uma cadeira de vime. Estava linda sob a luz amarelada que emanava do globo acima. O nariz de Brenda era fino e arredondado, com suaves abas que limitavam as narinas; o queixo fino e pequenas covas nas bochechas se completavam em um estado quase perfeito de composição. Mas foram os olhos os culpados pelo amor de Harry. Brenda tinha, e ainda tem, os olhos mais enigmáticos que o experiente escritor havia visto. Sempre que sua mente divagava até o balcão do bar em que se conheceram, Harry via apenas os olhos da mulher na escuridão confusa, do jeito como apenas uma escuridão de bar podem ser, carregadas pelo fumo inebriante de dezenas de fumantes e o cheiro de bebida azeda na pedra grudenta do lugar. Eram pérolas, aqueles olhos amarelados, dois círculos de âmbar que haviam sugado sua alma, como os marinhos que se jogavam ao mar, hipnotizados pelo canto de sereias. Ele a estudou. Em uma mão, um cigarro já pela metade queimava, esquecido pelo livro aberto na outra mão. Não podia ler o título de onde estava, mas sabia que era um Murakami: Brenda experimentava uma fase profundamente marcada pelo autor japonês. Uma taça com vinho branco permanecia na mesa redonda ao seu lado. Uma visão perfeita, reconheceu Harry. A coluna de fumaça subia em colunas caóticas, construindo imagens que diferir-se-iam nas interpretações de cada pessoa. Naquele momento ele a amou com todo seu ser. Desejou ser melhor para ela, parar com a infantilidade de seus sentimentos egoístas, se abrir novamente para a mulher que aturava todas as merdas que ele tinha de jogar em alguém para manter a própria sanidade. Harry se detestou, odiou ser difícil, complicado… humano.
Deslizou suavemente a tela do computador e o fechou com um sonoro click. Andou, mais cambaleante do que julgava, até Brenda, sem esquecer o resto do bourbon no copo que agora estava firmemente preso em sua mão. Harry era especialmente cuidadoso com suas doses. “Noite fria”, ele disse enquanto encostava no parapeito, olhando a rua solitária abaixo. Vez ou outra um carro passava pelas esquinas em que moravam e eram como brinquedos, nada mais do que ilusões que o lembravam que o mundo continuava fora daquelas paredes e de seu livro. Tendia a esquecer do mundo real às vezes, refugiando nas infinitas possibilidades de sua arte diante da realidade entediante e impiedosa das outras pessoas. Odiava outras pessoas, aliás.
Brenda desviou o nariz do livro por um breve instante e o estudou com um leve sorriso no canto da boca. “Seja um amor e alcance aquela manta, por favor”, apontou o sofá da sala com a ponta vermelha da cigarro. Harry pegou uma manta verde de algodão e a lançou para Brenda. Um vento gelado soprava da sul e o cabelo do escritor dançava livremente. Ela puxou o pano até o meio de sua barriga e afundou na cadeira de leitura. “Sabe”, disse com a voz rouca, “esse cara realmente me pegou. Sinto como… eu não sei, como se no meio dessas histórias bizarras e personagens fodidos eu estivesse de fato aprendendo algo sobre o mundo. Como se o modo como penso mudasse um pouco mais a cada página.”
“Não se empolgue tanto, querida”, pescou um cigarro no maço de Brenda e o acendeu na quase-bituca que ela segurava com os longos dedos de pianistas. Harry amava aqueles dedos, sensuais, habilidosos. Brenda era uma mulher magra, cigarros e bebidas pareciam completar as sombras que lançava pela casa. Sombras que dançavam nas paredes. “Quando descobrimos um bom autor sempre passamos períodos de tempo que nenhum outro nome estampado em uma capa irá valer seu preço. Esse cara deve ter seus truques, mas logo ele será um nome para sua galeria, apenas isso, mais um nome entre gigantes.”
“Está com ciúmes”, roçava o pé nas nádegas de Harry, fazendo uma voz quase infantil. Harry olhou para trás e teve uma súbita vontade de fazer amor com ela ali mesmo, na sacada do pequeno apartamento, sob a vigília de uma lua cheia. “Você sabe quem é meu gigante favorito”, continuou a provocar.
Deu um leve tapa no pé da mulher e sentou na outra cadeira. Estavam separados apenas pela pequena mesa redonda. “Palhaça. Você entendeu o que eu quis dizer. Quando eu tinha… não mais do que doze anos, Stephen King era o melhor escritor do planeta e qualquer que discordasse de tal fato não passaria de um imbecil analfabeto. O mesmo aconteceu com Hemingway depois e uns anos mais tarde foi a vez do Kafka. Tolkien, Dostoyevsky, Bradbury, Dickens, LeHane… todos tiveram esse momento mágico de descoberta, querida. Eles foram os melhores.”
“Fitzgerald”, ela disse, folheando o livro. Deus, eu a teria agora mesmo, pensou. Mas não faria o gasto primeiro movimento que eventualmente os levariam para uma transa, não naquele momento. Brenda era provocante como todos os pecados reunidos em um só ato e quando conversavam sobre livro… bem, para Harry era como fornicar com palavras. Livros e Brenda, tudo que lhe dava tesão em apenas um lugar. Uma ótima noite.
Ele tragou e deixou a fumaça sair lentamente pelas narinas. “Fitzgerald. Meu Deus… foi um período estranho de minha vida, não?”
“O mais estranho de todos, meu Faulkner. Você andava como o imbecil do Gatsby o tempo todo, como se fosse um viajante do tempo perdido em minha casa.”
“Me deixei levar mais do que deveria, devo concordar.”
Ela terminou o cigarro e esmigalhou a bituca no cinzeiro de plástico. “Mas esse escritor japonês… é diferente, Harry. Os livros dele têm uma aura mágica, que agarra meu pensamentos mais íntimos e os enrola em um bastão e só para de espancar minha alma quando eu termino o último parágrafo, é assim. Os diálogos são de uma naturalidade brutal, chega a doer.” Harry esticou a mão e pegou os dedos compridos da mulher, acariciando-os com calma. Seu pênis doía, preso na calça jeans com a maior ereção das ultimas semanas. “Às vezes parece que eu sou a ficção e os livros que ele escreve são janelas para o mundo real. Eu só posso enxergar de verdade através deles.”
Não pôde deixar de sentir um leve ciúme pela empolgação de sua mulher. Os terror, por vezes apelativos e banais, livros de sedução comercial, era a zona de conforto de Harry e ele escrevia de forma segura dentro dos limites do estilo, utilizando-se de todos os clichês e frases de efeito que apareciam em seu caminho. Ele era um bom escritor, o tipo de cara que você acaba segurando em uma livraria e leva para casa sem pensar muito, devora a história em três ou quatro dias e esquece de tudo também três ou quatro dias depois. O que importava para seus editores era que Harry vendia; para Brenda era ver a felicidade do marido enquanto escrevia e o orgulho que sentia dos seus títulos. Mas ele queria algo além, queria provocar nas pessoas os sentimentos que o maldito japonês causava na mente da mulher perfeita que estava sentada ao seu lado. Para Harry, o mais importante era ter seus livros nas bibliotecas bem depois que ele estivesse morto, mas estava condenado a sentar junto com os escritores de segundo escalão, na turma dos que quase fizeram alguma diferença para a literatura. Na seqüencia de títulos, Harry sabia que as vendas caíam com velocidade regular e isso o preocupava, apesar dos panos quentes colocados pelos editores. O dinheiro era bom, por enquanto. Muito mais do que eles poderiam imaginar com as mais altas das esperanças, mas ele ainda se sentia como um fantasma do que poderia ser um bom escritor. Ele culpava o mercado, jogava em seus argumentos os agentes capitalistas em estado predatório; culpava Brenda, culpava a si mesmo. No íntimo sabia que não poderia culpar os fatores externos. Brenda não segurava seus dedos e escrevia os livros, uma letra por vez, não. Harry, e Harry apenas, era o culpado por toda aquela bagunça fodida.
Escolhera um gênero difícil, limitado quanto ao tópico do público alvo, mas achava que poderia ganhar um dinheiro sério com as vendas. O que eles tinham era por conta dos livros, uma verdade que deve ser logo dita, mas o pequeno apartamento em Berlim e o Smartcar momentaneamente esquecido do outro lado da rua eram os maiores bens do escritor e de sua mulher.
“Me fez pensar”, ela disse, séria. Os olhos estavam chegando naquele aspecto vidrado que ela sempre exibia quando bebia mais vinho do que seu sistema poderia processar em 24 horas.
“Desculpe?”
“Me fez pensar, eu disse. O livro. O livro me fez pensar.”
Engoliu em seco. “Fez pensar no quê, Brenda?”
“Em tudo, nas pessoas que passaram por minha vida… em nós, presos nessa merda de cidade por causa…”, deixou a frase morrer em pleno ar, uma granada lançada que não explodiu, mas caiu na areia fofa, esperando para detonar na menor das vibrações. 

Segunda parte: http://oscarasdoclube.blogspot.com.br/2013/05/marte-nao-pede-por-oculos-2.html

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