Leia: Austeriana (1): escritor, personagem, papel
Sei o que ele deseja; Ver meu lado para lendo-me dizer que sempre soube de mim. Mas não posso lhe dar esse prazer. Não posso ser gentil se me incomoda reconhecer que ele parece dialogar mais comigo do que eu mesma.
Sei o que ele deseja; Ver meu lado para lendo-me dizer que sempre soube de mim. Mas não posso lhe dar esse prazer. Não posso ser gentil se me incomoda reconhecer que ele parece dialogar mais comigo do que eu mesma.
Se conseguisse ler todos os textos sobre Charlote que ele escreveu, encontraria alguém menos parecida comigo? Afinal, sou mais eu ou mais ela?
Sinto como se cada vez que escrevesse tentasse retirar um pouco de minha alma. Tomando-me para si. Tendo-me em suas mãos. Não posso aceitar. É tão difícil saber quem sou para um estranho dizer que sou assim ou dessa maneira. Não posso.
Então, surge ele. Baixo, de rosto engraçado, com uma presunção tão grande quanto sua barriga. Mas ainda assim um escritor. Quando me conheceu escreveu para mim. Enquanto eu ainda não era aquela Charlote. Enquanto não era dividida ao meio como mágica, sendo Charlote viva com sangue correndo nas veias e Charlote personagem realizado. Ao menos ele explicou para mim dessa maneira.
E pediu-me para fazermos o inverso. Porque você não escreve o seu lado da história, me disse. Mas como posso pensar por você, escritor? Sentar em um canto sorvendo a vida, tomando café ou sorvete até uma idéia genial? Sempre escrevi para curar minha própria dor, não a sua.
O que você via quando me olhava é o mesmo que vê ao observar Charlote? Ou me ve como um mistério, desconfortável dentro de seu mundo? Ou uma garota a quem você pudesse salvar? Não sei realizar este exercício...
Recordo-me do dia em que caminhou ao meu lado narrando meus movimentos. Tentando demonstrar-me como, a partir de mim, transformava a realidade em ficção. Talvez ele quisesse saber-me como sabia a personagem. Mas, depois de tanto tempo, depois de tantos escritos, comecei a sentir falta daquelas histórias também.
Comecei a viver nelas as aventuras que eu, covarde, não consegui viver para mim. A ilusão de uma Charlote não alcançada era mais aventureira, mais bonita do que minha estima, mais concreta. Mostrando como eu poderia ser se não tivesse medo. Se não tivesse lágrimas. Demorei muito tempo após as leituras para voltar a mim mesma. A me reconhecer dentro de minha amargura, dentro de minha felicidade, do equilíbrio agridoce.
Talvez ele quisesse me conquistar com suas palavras. Mas com elas fez uma pessoa melhor que a Charlote de carne e osso. E o que devo fazer, portanto? O que ele espera desse desafio que nunca deveria ter aceitado. Me ver ainda submissa? Ainda menina? Alguém que lhe ponha em seu lugar? Não.
Gosto da maneira como ele escrever e, mesmo sabendo, reconhecendo minha alma. As frases que já completamos um do outro assustam. Terrível encontrar um semelhante que parece te duplicar, pensando como você, mesmo não te sendo.
Somos assim. Tivemos esses momentos de palavras escritas ou mudas que nos projetaram como heróis. Mas se eu recriasse a história novamente alteraria os fatos.
Produziria minha versão do escritor, uma outra segunda Charlote e tudo ficaria mais confuso do que me parece. Dignos de uma potencial tragédia ou uma dessas cômicas comédias antigas de trocas de personagens por sua semelhança.
Devo desistir. Não pela falha, mas pela luta que seria longa demais. Uma outra versão da mesma história seria o nascimento de outro mundo. Estes criados tem que nos bastar. Devemos isso a eles.
22 de Abril de 2013
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