sexta-feira, 19 de abril de 2013

As Brumas do Farol 10 - O Guia (III)


Paul logo percebeu o que tinha de fazer. Estava exatamente a meio caminho entre Jimmy e Robert. Escutava o tilintar agudo das lâminas se chocando e podia sentir a urgência em ajudar o samurai. Mas o homem da televisão, aquele que o lembrou das palavras cortantes de seu pai, o fez correr de volta para o pequeno grupo que surgira praticamente do nada. “Jimmy, ajude-o!”, girtou enquanto corria para ele, erguendo um dos braços roliços na direção da luta. Ele se levantou e rapidamente flutuou em ajuda do amigo. Paul sentia as pernas tremerem, recebendo com prazer o alívio que se instalava em sua mente. O que eu estava fazendo, pelos céus. Medidas desesperadas, era o que sua mãe sempre dizia quando era internada com aguda desnutrição por causa dos regimes rígidos que seguia. Linda, com o corpo que a maioria de suas amigas invejavam, ela não conseguia apreciar o que via no espelho. Enxergava um corpo doentio, via faixas de gorduras penduradas pelas laterais, por toda sua costas. Medidas desesperadas. Essa era a desculpa usada, toda santa vez. Medidas desesperadas.
Chegou até John e estudou o homem que estava com eles, lembrando imediatamente dos filmes preto e branco que seu pai assistia, quase em coma alcoólico, durante as madrugadas. Tentava ignorar os absurdos balbuciados pelo bêbado no sofá de sua casa, o que não era um problema assim tão sério, já que antes da metade do filme ele estava roncando de boca aberta. Algumas vezes, e isso ele aprendera nos mesmos filmes que assistia escondido de sua mãe, perguntava-se o que faria se ele começasse a se afogar no próprio vômito. Paul duvidava se iria se mover para ajudar aquele homem. Provavelmente iria continuar a assistir O Falcão Maltês até o final e iria para cama feliz pela derrota dos nazistas, sem se importar com o bêbado morto na sala de casa. Não, concentre-se Paul. O homem vestia uma sobretudo longo, de um bege desgastado e sujo. Ele cheirava à urina, vômito, whisky e cigarro e tinha o que parecia ser uma seringa espetada na sola de um dos sapatos. E um fedora, claro. Um homem como aquele teria um fedora.
O ombro direito do homem estava dilacerado e sangrava em grossas torrentes, jorrando pelo sangue. Paul estava surpreso dele ainda estar vivo. “O que aconteceu?”
John inclinou a cabeça em um ângulo estranho e o encarou com olhos escuros como a noite. O medo que ele viu naqueles olhos anteriormente astutos o perturbou profundamente. “Dragão!”, exclamou o Corvo, em um só grasnar. Paul o encarou, choque no olhar. Tudo muito simples. Para curar uma mordida de dragão, aplique alcaçuz na área dilacerada e tudo estará bem novamente. A idéia quase provocou gargalhadas, mas ele conseguiu se controlar no último instante. Hesitante, tirou uma barra de alcaçuz do bolso e a estudou. Naquele mundo bizarro, parecia que os doces eram substituídos ao passar do dia, renovando seu estoque conforme ele os consumia. Por vária vezes, nas noites em que não conseguiam encontrar frutas ou pequeno animais que não pareciam ter veneno, comiam apenas os doces, sentindo-se estranhamente satisfeitos e fortalecidos. Paul sabia que não eram doces normais, mas ainda faltava o conhecimento de suas propriedades e seus limites. Por enquanto eram a melhor idéia. O Guia se esforçava para segurar os gemidos de dor e logo estaria morto. Podemos realmente morrer aqui, nesta terra que parece um sonho? Paul não estava disposto a pagar o preço para alimentar a curiosidade; sem o guia, estariam eternamente perdidos dentro da Bruma.
Colocou o doce na boca do homem e o fez mastigar enquanto grudou os olhos na feia mordida, forçando-o mordida após mordida.
Esperou e esperou.

Jimmy se guiou pelos sons, imaginando o que aconteceria, caso fosse estocado por uma das lâminas. O som aumentava, conforme ele se aproximava da batalha em andamento. Ele podia escutar os passos de Robert e do Homem da Bruma, atacando e defendendo letalmente. Cada golpe poderia ser o último e o resultado não era certo: o golpe seria de um lado ou de outro, mas Jimmy não podia enxergar de quem seria, o que era por demais irritante. Uma idéia brotou em sua mente, como se estivesse no ar, apenas esperando para ser captada por alguém. Fechou os olhos em sua mente - seu corpo já não tinha mais olhos - e quando abriu, estava novamente nas Terras Distantes. No céu esverdeado, duas gigantescas espadas duelavam entre nuvens, provocando terríveis trovões a cada beijo entre as lâminas. Jimmy, um garoto de doze anos, ergue os braços e duas montanhas de pura prata se desmancharam um incontáveis barras, derramando um rio de prata sobre um lago de petróleo borbulhante. Aquele mundo era sensível e vivia sobre regras próprias, cujo entendimento escapava de qualquer um e ser tratado daquele modo provocava um fúria desconhecida. Jimmy notou que suas mãos estavam suadas. Com um movimento das mãos, abriu vales, cortou florestas e secou rios; em seguida, criou espécies e civilizações, despedaçou o próprio céu e fez chover lava. As Terras Distantes tremiam em convulsão, somando uma ira que nunca antes fora vista e Jimmy podia sentir toda sua força em ebulição.
De repente ele sentiu o ar estagnando ao seu redor. Fechou os olhos - desta vez físicos - e voltou para o corpo sem face.
Um vento, violento e selvagem, soprou de Jimmy, explodindo com a força capaz de existir apenas nas Terras Distantes, limpando a Bruma por um tempo e lançando tudo que encontrava em seu caminho. Jimmy viu o samurai se segurando uma planta, viu com perfeição uma de suas mãos presas em um caule cheio de espinhos, com milhares de dentes procurando dilacerar sua carne e envenenar as veias que corriam quente pelo braço forte. Jimmy teria sorriso se tivesse uma boca quando Robert estocou a planta com sua katana, lutando contra a dor e o vento alienígena que era derramado sobre ele. Mas o verdadeiro sorriso, sádico e cheio de uma perigosa satisfação, surgiu quando ele viu o rosto do Homem das Brumas. O inimigo vestia um kimono parecido com o de Roberto, mas portava uma lâmina três vezes mais larga e um pouco maior em seu comprimento. Havia insanidade em seus olhos azuis, olhos que Jimmy conhecia muito bem.
“O nome dele é James Powers e ele é o machão de minha escola”, Robert escutou claramente quando a ventania parou. Ele viu, pela primeira vez, o seu inimigo e sorriu. O Homem da Bruma já preparava um primeiro golpe para retomar a luta, mas agora ele parecia um garoto fraco. Uma criança, exatamente como eles. Robert havia alcançado o momento com uma pequena ajuda de Jimmy.
“James Powers, não se mova!” Os olhos do Homem arregalaram até quase caírem das órbitas e ele travou em pleno ar, pernas afastadas em uma corrida rápida, braços acima da cabeça, segurando a espada com um punho firme. O golpe fatal de uma estátua. “Não se atreva a mover um músculo, James Powers. Um fio de cabelo sai do lugar e… seu coração explode.” Robert não sabia até onde podia abusar da mágica de um nome, mas achou que valia o risco. “As Brumas serão sua prisão, não mais o seu domínio. Eu venci. Nós vencemos…”
John, Paul e o Guia se aproximaram, o Corvo parou em seu ombro ferido, estudando o sangue que pingava de seu braço.
“Como… como você descobriu o nome dele?” Paul pegava uma bala de alcaçuz e entregava para o samurai.
“Jimmy me contou. Parece que eles se conheciam.”
Todos olhavam para o garoto parado no ar. Uma atmosfera mais leve começou a se formar entre eles e Robert se deixou descansar pela primeira vez em muito tempo. Achou que se não fosse o doce de Paul, estaria deitado no chão, inconsciente. Perguntou, por fim: “este é o Guia?”
“Sim”, Jonhatan respondeu. “Meu nome é… Guia.”
“Você consegue nos tirar daqui?”, Paul perguntou. A Bruma já avançava ao redor e logo estaria sobre eles. O garoto aproveitou para procurar por algum tipo de caminho ou direção, mas atrás da Bruma, havia apenas mais da mesma névoa asquerosa.
Jonhatan olhou ao redor. O caminho não poderia ser mais direto, pensou consigo mesmo. “Sim”, apontou para a trilha, “vocês não conseguem enxergar esse… caminho de tijolos amarelos?”
“Não, essa névoa atrapalha.”
“Névoa?”
Paul viu o olhar cheio de perguntas de Robert no último momento, antes que o cinza tomasse novamente o mundo. “Seus olhos… você não vê essa Bruma?”
“Eu… sinto alguma coisa do meu lado, mas não, não vejo nada de errado. Vocês têm de chegar em um farol, certo? Foi o que me disse antes do dragão nos atacar.” Estou louco, Deus! Porra!
Paul e Robert confirmaram ao mesmo tempo e Jonhatan começou a caminha para o Farol. “Meia hora de caminhada e estaremos lá”, prometeu. "Vamos logo, se temos de alcançar o Farol, de nada adianta ficarmos aqui."
Poderia ser tão fácil assim? Estavam perto esse tempo todo e mesmo assim presos dentro da Bruma? Paul sentiu o sangue subir para sua cabeça um calor tomou conta de seu rosto. Garotos perdidos, nada mais do que garotos perdidos.
“Como posso chamá-los?”
“Eu sou Paul. Jimmy e John você já conhece e o samurai é chamado de Robert.”
Jonhatan parou. “Jimmy, Robert, Paul e John?” Paul não entendeu, mas o Guia continuou na trilha por um tempo, gargalhando a cada passo. “Aliás, obrigado pelo meu braço, ele está be-”
As palavras do Guia foram cortadas por um grito agudo, carregado de dor e medo. Jimmy caiu de joelhos na terra dura e colocou as duas mãos no peito. “Eu… eu não consigo mais segurá-lo… o vento me deixou fraco…” Um brilho, como uma lâmpada que morre após brilhar tudo o que podia em um único segundo, e o Dragão escapou das Terras Distantes, de volta para o Bosque e mais furioso do que nunca.
Paul sabia que ele não iria querer apenas a ponte de volta.

Um comentário:

  1. Vc está se superando heim, Mau? Texto muito, muito bom. Parabéns. Ana Eliza.

    ResponderExcluir