Quando você está fora do seu habitat natural, seus instintos ficam mais aguçados. Não importa se você vive nas montanhas e caça a própria comida ou se é um japonês gordo e cheio de sebo no cabelo, que não sai do quarto há mais de cinco anos; fora de sua zona de conforto, você está pronto para lutar. Isso se chama instinto e faz parte de cada ser vivo. É bem verdade que ele pode estar adormecido ou soterrado por baixo de uma vida entediante, vivida dentro de um cubículo onde você deveria fazer a contabilidade para um corporação que sequer reconhece sua existência. E isso, eu diria, se chama falta de colhões, mas não temos tempo para isso. Eu achava que depois de um tempo em um lugar hostil o corpo reconheceria que não haveria perigo e o instinto falaria mais alto - a adrenalina baixa, as pupilas se dilatam e o suor seco nas palmas das mãos - mas não foi o que aconteceu. Depois de quase uma ano nessa Londres, a Londres deles, a minha prontidão ainda está afiada e meus nervos em frangalhos. Sempre que estou em algum serviço ou chegando em minha casa, conspirações absurdas tomam conta de minha mente, teorias fora da realidade e que fariam rir o mais demente contador de histórias. Bom, talvez eu seja o mais demente contador de história; não iria me surpreender se eu narrasse a minha própria morte e acordasse babando em uma parede almofadada.
Mas, ei, eu não morro, certo? Afinal, estou contando essa história, então você pode, pelo menos, contar com a mínima integridade física de seu protagonista.
Quando vejo carros, pretos e gigantescos, daquele tipo que você olha e tenta estimar o consumo ridículo de combustível daquela besta de quatro rodas, sinto meu coração palpitar e aguardo as armas aparecerem e os projéteis disparados em minha direção.
O estranho é que nada disso acontece. O que é pior, de certa forma.
Estou condenado a viver ao lado de uma esposa que me ama e de uma filha que tem a mais pura admiração à sua figura paterna. A casa é confortável e sempre na temperatura ideal; do jardim, apanho as frutas mais suculentas que já experimente. É um terreno em que quase posso sentir o calor do sol e isso é muito especial, se você considerar que estou em Londres. Vivo a vida do outro eu, aprisionado em meu mundo, minha realidade.
Todos os dias, quando finalmente relaxo e percebo que eles não virão, sinto nojo de meus atos, um gosto amargo que tenho de lavar com whisky.
Por isso eu me abrigo nas sombras de Londres, lidando com o pior tipo de escória que povoam as páginas dos livros baratos nas estantes das bancas de jornal: traficantes, psicopatas, pedófilos… gente com perversão cujo nome não sei apontar. Falar com prostitutas cheias de heroína no sangue é o ponto alto do meu dia, na maior parte das vezes. Um estilo de vida saudável. O interessante nessa história, e é aqui que paro de divagar e inicio minha narrativa de verdade, é que as sombras de Londres guardavam algo muito pior para mim. Quando seus monstros vivem nos cantos escuros de sua casa, você deixa a luz acessa, foi a minha lição.
Entre em um beco e senti, logo no meu primeiro passo, o cheiro de mijo impregnando em minhas narinas e na minha roupa. No quinto passo, uma seringa usada se espatifou sob o peso de minhas botas. Grossa, uma névoa tomava conta do lugar e eu mal conseguia ver meu próprio corpo. Perguntei-me por quanto tempo ainda iria ficar brincando de detetive naquelas condições miseráveis até um viciado enfiar uma faca em minhas costas. Avancei um pouco mais para dentro do beco e contive todos meus movimentos - pelos céus, eu parei de respirar! - quando escutei o barulho abafado de asas batendo. Olhei para cima, mas não poderia dizer se havia algum pássaro por perto e tentei me lembrar se a neblina estivera forte daquele modo quando eu ainda estava em meu carro. A resposta era provavelmente uma negativa. O barulho se tornou mais alto e rápido, enquanto comecei a sentir uma forte vendo de minha costas. Um corvo, aparentemente vindo do nada, pousou em meu ombro esquerdo e abriu o bico negro: “você precisa vir comigo”, disse com naturalidade. Os pensamentos mais clichês cruzaram a minha mente. É claro que pensei estar morto, dormindo ou drogado. “Você está vivo, Guia. E acordado… ao menos ainda está acordado”, ele disse como se tivesse lido meus pensamentos. “Siga por esse turno, não temos muito tempo, Robert está em perigo.” Eu não sabia quem era Robert ou a natureza de seu risco, mas quando um pássaro pousa em seus ombros e fala com você, maldito seja, é bom prestar atenção em suas palavras. “Você vai encontrar o Jimmy. Ele é legal, meio caladão, mas confiável. Você vai ter que entrar nele, como numa porta”, avisou o corvo. Andei mais alguns metros e vi um vulto à minha frente, o contorno de um garoto de doze, treze anos, totalmente tatuado pelo mais realista dos desenhos. Tudo parecia uma ilusão de ótica e o garoto poderia ser a porra de um desenho na parede, não fossem os movimentos de seu interior, no melhor estilo Harry Potter. Ray Bradbury estaria orgulhoso.
“Ande logo, Guia,” repetiu, impaciente, o corvo.
Da mesma forma como subo em uma calçada, ergui um dos pés levemente e ultrapassei o contorno do garoto e cheguei ao outro lado. Entre um passo e outro, Londres deixou de existir. A névoa se dissipara, o cheiro da amônia ficara em uma realidade deixada para trás.
Eu entrei nas Terras Distantes, descobri mais tarde.
Robert saltou para trás e derrapou na terra seca do Bosque. Acompanhava com dificuldade os movimentos do Homem da Bruma, aparando os golpes no último momento possível. Ele culpava a Névoa, mas sabia que mentia para si mesmo: o Homem era tão ou mais rápido do que ele. Uma preocupação crescia em seu peito e o samurai se esforçava para ignorá-la. Mas, como uma semente no solo escuro, a mente de Robert estava no futuro. Ao menos estava pensando se haveria algum.
Até o momento, não tinha certeza contra o que ou quem lutava. Via apenas uma lâmina, parecida com uma katana mais larga e comprida que surgia da névoa como um relâmpago em um céu azul. O mínimo atraso o forçava para trás e rapidamente perdia terreno. O suor escorria por todo seu rosto e apenas por um milagre não caía sobre seus olhos. Paul, onde você está? O momento… tudo que importa é o momento, ele mentiu para si mesmo.
Paul estava com o queixo apoiado em uma das mãos, enquanto a outro cobria parte do largo estômago. Tentava ignorar o som das lâminas se chocando, tentando precisar onde e quando poderia ajudar Robert. Era esse seu papel, afinal. Não tinha físico bom para correr ou pular como os outros - bem, Jimmy não conta - ou um décimo sequer da capacidade de combate do samurai. Cérebro, ele pensou. Eu sou o cérebro deste corpo. Pense, gordo, pense!
Ele viu os dois guerreiros atravessando parte do terreno, chocando golpe e contra-golpe. Robert cortava o ar vez ou outra, mas lutava na defensiva. Paul precisava ganhar tempo para ele. Jimmy, John, voltem logo!
De repente, entre os sons do combate, Paul escutou a voz do samurai. “Mais alto, Robert! Não consegui te escutar!”
“O momento, Paul,” girou a katana para a direita e aparou duas estocadas seguidas, mas uma terceira o atingiu no braço. Ele fez um som de dor, saltou para trás novamente e completou: “preciso viver o momento, não antes, não depois…”
A voz de Robert estava estranha. Paul ergueu a armação do óculos, empurrando-a com o dedo até a base de seu nariz. Medo. Ele está com medo. Uma idéia se formou na mente rápida do garoto e ele repetiu as palavras do amigo, sussurrando para si mesmo.
Um sorriso cruzou seu rosto e Paul andou para perto do Homem da Bruma.
Antes do segundo passo, no entanto, o Corvo explodiu de Jimmy, batendo as asas em uma confusão de penas negras. Jimmy caiu, apoiado nos braços, e um homem desconhecido surgiu ao seu lado, sangrando em cascata do estômago. Rápido, Paul escutou em sua mente, ele está morrendo, Paul. O Guia está morrendo!
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