Robert viu o corpo do Dragão cruzando a Bruma apenas alguns palmos de seu nariz. Ele cortou, rápido e limpo e assistiu a névoa formando pequenos espirais ao redor da lâmina de sua espada. Ele era muito rápido e, até agora, todos os golpes erraram o seu destino. Os dedos do samurai estavam brancos pelo aperto firme que ele fazia no punho da arma, podia sentir a tensão dos outros se acumulando, como a pressão do vapor se acumula em uma panela de pressão com a válvula quebrada. O Guia disparava com sua pistola, mas seus esforços não trouxeram resultado. Robert, na verdade, estava feliz. Armas de fogo eram para covardes, ficou surpreso ao descobrir a opinião. Parte de sua mente - a mesma parte que teimava em viver além das barreiras do momento - tentava localizar o momento em que deixara de ser o garoto que aturava os garotos imbecis na escola, cheios de ranho no nariz e malícia nas palavras; palavrões, arrotos e gestos obscenos: esse era o cotidiano de Robert. Se voltar para Londres, vou conseguir conviver com isso novamente?
John pousou no ombro do Guia e o encarou com os olhos em pleno desespero. Algo dentro dele dizia que estavam perdendo a janela de tempo que tinham e que logo tudo teria sido em vão… mesmo sem saber o motivo de estarem na busca sem sentido, o Corvo não queria esperar para descobrir as conseqüências potencialmente desastrosas. “Ok, vamos”, o Guia concordou. “Eu, gorducho, vamos!”
“Oh, vá para o inferno,” Paul soltou entre os dentes. “Não podemos esperar?”
“Diga isso ao corvo, ele está desesperado. Vamos logo, acho que precisamos ter pressa.”
Pense, pense! Paul estava com os olhos firmemente fechados, o cérebro rodando em sua capacidade máxima. Há um maneira. Jimmy! Jimmy! - olhou em volta e viu que o amigo estava se aproximando: ele havia escutado seu apelo; ao seu redor, Robert disparava cortes e estocadas, errando por poucos milímetros a besta que tentava destruí-los - Jimmy, eu sei o que fazer. Paul explicou então como pretendia ajudar o samurai contra o Homem da Bruma e fez Jimmy entender que aquele era o único modo de realmente auxiliar Robert. “Vamos logo então,” disse antes de disparar em perseguição ao Guia.
Aos poucos, o Farol ganhou contornos, um maciço corpo que se erguia em direção aos céus. Estava erguido, Paul estimou, por quilômetros e quilômetros e em seu topo ele podia distinguir o vidro de onde uma luz deveria estar guiando as pobres almas perdidas. Quando chegaram nas pedras que sustentavam a construção, John encontrou uma porta escondida por alguns galhos secos. Eles entraram em um corredor escuro e frio, o barulho de ratos ecoavam entre os degraus. Dentro do Farol as escadas se multiplicavam e eles se encontraram em um salão gigantesco, diferente da coluna que havia visto de fora. Uma escada levava para uma plataforma, de onde três outras escadas se erguiam; estas, levavam para outras três e cada uma se mesclava com as outras, girando em ângulos impossíveis, tornando-se espirais e atravessando escadas acima e ao lado. Um labirinto vertical os aguardava.
“O que faremos?”
“Acho que sei o caminho. Corvo, não saia de meu ombro.” O Guia apontou para um fino barbante que cruzava um dos degraus. “Cuidado, Paul, temos armadilhas em todos os lugares. Siga os meus passos e pise somente onde eu pisar.”
O homem saltou diretamente para o terceiro degrau da primeira escada e deu um novo pulo, chegando na plataforma. “Consegue saltar?”
“Estou um pouco acima do peso, não sou um elefante.”
“Eu não quis dizer que você é gor-”
“Elefantes são os únicos animais que não podem pular. Cristo!” Aquele homem conseguia quebrar a calma de Paul. O garoto não entendia o porquê, apenas sabia que ele tinha algo nele que o irritava profundamente, algo estava errado naquele homem e a única opção era confiar - de forma um tanto cega - em sua liderança.
Subiram escadas, pularam degraus e tentaram não olhar para cima ou para baixo. Parado no ombro do Guia, John apenas observava a estranha física do Farol, tentando imaginar o que encontrariam em seu topo.
Depois de algum tempo, os dois transpiravam e tinham a respiração pesada. “Va- vamos parar um pouco,” Paul quase sufocava com cada palavra.
“Não,” ele respondeu com uma golfada de ar. “Estamos quase no topo e temos de tentar voltar para os outros.” Passou uma manga na testa e xingou quando o suor alcançou seus olhos. “Escute garoto, como vocês vieram parar nesse lugar?”
Paul contou em poucas palavras sobre o velho e como cruzaram a entrada para um bosque perto do metrô de Londres e como mágica, estavam em uma trilha, cada garoto com uma forma diferente. Achava difícil acreditar na própria história e tentou imaginar o que se passava na cabeça do homem que conhecia como Guia. “Como… como você consegue encontrar o caminho?”
“Eu não sei,” respondeu sinceramente. “Acho que é porque eu não costumo parar em barreiras que normalmente parariam as pessoas.” Paul não sabia o que aquilo significava, mas era uma resposta aceitável. “Vamos poupar nosso fôlego e chegar logo no maldito topo.”
Jimmy tentou conjurar os ventos de antes, mas estava muito fraco e abrir uma janela para as Terras Distantes naquele momento seria um suicídio. Sabia que provavelmente seria um portal para a terra dos sonhos para sempre, sem conseguir controlar o fluxo de saída e entrada, uma hipótese que fazia com que a Bruma fosse uma brincadeira para relaxar os nervos. Ele seria o novo rei daquele lugar, terrível e implacável, fingindo controle sobre seu poder até o dia em que um pesadelo cruzasse o portal. Este seria o seu fim de indescritível horror. A saída de Paul era a única possível.
O Dragão avançava contra o samurai - garras, dentes e fogo - e formava arcos com a cauda, fazendo um barulho intimidante, rugindo com ira. Sua força era bestial e os ataques, devastadores. A trilha que seguiam era praticamente um amontoado de terra revirada, árvores queimadas e buracos prolongados por alguns metros. Robert sangrava em diversos pontos e um corte na testa derramava o líquido vermelho sobre seus olhos, atrapalhando a pouca visão que tinha dentro da Bruma. Um rápido movimento para a esquerda e a katana parou um golpe, fazendo com que a força do monstro o jogasse para o lado, deixando dois rastros na terra revirada. Mais um movimento e ele se defendeu contra os dentes afiados, causando pequenos ferimentos na boca draconiana. No terceiro golpe consecutivo, Robert foi lento e as garras cortantes foram enterradas em seu estômago. O samurai fincou a lâmina na terra e caiu de joelhos. Sentia as forças escapando de seu corpo, jorrando ao lado do sangue.
Rodeando o inimigo acuado, o Dragão soltava um riso gutural e sinistro. “Ninguém rouba minha ponte e sai livre,” ele disse, “ninguém!” De repente, uma pedra bateu contra a lateral de sua cabeça, errando um dos olhos amarelados por apenas um centímetro. Ele virou a cabeça rapidamente e cerrou os olhos em Jimmy. “Você! Você escapou por duas vezes, garoto, mas agora eu vou ter seu nome, vou arrancar as palavras da sua boca moribunda e me divertir para sempre te torturando.” O corpo alongado se esticou na direção de Jimmy. “Onde vocês o enterraram? Ainda sinto o gosto do sangue daquele homem.” Um novo sorriso escapou da garganta monstruosa.
Ande logo, Paul! Maldição. Jimmy sentiu os limites de seu corpo se expandirem e se esforçou para controlar a realidade ao seu redor. Não seria bom deixar os sonhos quebrarem as barreiras entre os dois mundos, Jimmy não sabia quais seriam as consequências. Talvez fosse como uma barragem rompendo, espalhando destruição e morte na área atingida. Não, ele deveria se controlar. Uma dúvida tomava seu coração, perguntado se conseguiria manter as forças depois de ser atacado pelo Dragão. Vamos Paul!
Paul olhou para baixo, quase tropeçando em um degrau quando parou o movimento pela metade. John pulou, com cuidado, dos ombros do Guia e pousou no garoto. O que foi?, perguntou com os olhos.
“Acho que escutei meu nome. Provavelmente não foi nada. Vamos prosseguir.”
Mais alguns passos e eles escutaram o Guia abrindo uma pequena porta de metal, rangendo o ferro antigo. O topo do farol era exatamente como ele imaginava: um salão de vidro quase vazio, exceto pelo centro, onde um uma lamparina descansava, imóvel. Uma pequena chama queimava, trêmula ao sabor do vento e quase extinta, tão fraca que mal iluminava a lamparina. “E agora?” As palavras do Guia saíram baixas, como se sua voz pudesse apagar o fogo.
“Eu não sei,” Paul respondeu no mesmo tom, com medo até mesmo de respirar, “acho que tenho de pegar o fogo?” A frase se transformou em uma pergunta no meio do caminho. E agora?
Quando Paul andou na direção do fogo, ele escutou um forte estrondo em um dos vidros. Os três, coração na boca, olharam para fora e o que viram quase fez com que eles perdessem as forças nas pernas. Uma mulher, ou algo parecido, tentava estourar a larga janela que protegia o fogo do vento que gritava na noite cinza da Bruma. Ela estava nua e tinha um rosto largo, com protuberâncias na testa, como se camadas de chifres estivessem acumuladas no topo de sua cabeça, formando uma coroa diabólica. Duas asas descansavam em sua costas, pontiagudas e finas, com aparência de couro curtido, como asas de morcegos. Ela gritava o berro desesperado de uma banshee, estridente; letal. Outras três mulheres se aproximavam do mesmo vidro e Paul podia distinguir mais sombras voando dentro da Bruma. Pela primeira vez, o garoto notou que dentro do Farol não havia névoa. “Quantas mais?”
“Sete… oito.” O Guia tinha a pequena pistola em sua mão e Paul duvidou se ele conseguiria causar algum dano naquelas criaturas malignas. Ele se lembrava das figuras que vira nos livros de RPG, demônios com aparência de mulheres, provocando uma estranha luxúria mortal. O que via trazia o nome de hárpia, mas elas eram de alguma forma piores, mais monstruosas.
Elas batiam contra o vidro e um deles já estava rachado.
“Vá, Paul, vá agora, faça o que você tem de fazer!”
No momento em que o Guia soltou a última palavra, os demônios conseguiram quebrar o vidro do Farol e tudo aconteceu muito rápido, acabando em questão de segundos. A primeira coisa que Paul notou quando iniciou a corrida mais importante de toda sua vida, foi que o vidro voava com uma velocidade incrível, deixando o vento forte entrar no topo do Farol, abrindo espaço para as criaturas aladas e a Bruma desgraçada se arrastarem para dentro do lugar. O Guia, um homem que fazia parte de mais de um mundo, disparou contra a primeira das mulheres que voavam para dentro do Farol, acertando-a entre os olhos. Um disparo ensurdecedor tomou conta do lugar e sua arma brilhou por um breve momento. A cabeça do demônio explodiu em incontáveis fragmentos, espalhando cérebro, ossos, cabelo e sangue nas duas janelas ao redor. John abriu as asas e se jogou contra outra mulher e enterrou seu bico em um dos olhos. Ela gritou de dor, estourando outro vidro, e perdeu o controle de seu vôo, quase acertando Paul por um acaso. A arma de Jonhatan disparou mais duas vezes e outra mulher caiu morta, despencando do parapeito externo do topo do Farol.
O coração de Paul ameaçou pular para fora de sua boca uma vez mais quando ele viu o fogo da lanterna quase apagar por causa do caos que havia tomado conta do Farol. A pequena chama tremeu por um segundo e se jogou para um dos lados, depois para o outro e, por fim, diminuiu até ser pouco mais do que um fósforo que se apagava. Paul pulou sobre a lanterna de vidro e encostou no Fogo.
Do outro lado do Bosque, no mundo real, Paul tinha outro nome. Ele era um garoto normal, gostava de ler e de comer doces. Normalmente, ficava longe dos esportes, inventando mentiras e desculpas para conseguir fugir às partidas de futebol de sua escola. Arsenal, Manchester… ele simplesmente não se importava com os jogadores e a emoção de tocar uma bola de couro com os pés. Sua mente descansava quando estava mergulhada em algum livro. E, pelos céus, como ele lia! Os livros se acumulavam em pilhas depois de lido, rodeando todo o quarto que dividia com a irmã mais nova e dificultando a passagem e limpeza do cômodo. Em todos os livros, em algum momento da trama, o pequeno leitor assíduo lia sobre a calma que antecedia a tempestade. Era sempre uma tempestade alegórica, mas uma calma real. O que Paul sentia naquele momento, era parecido, mas completamente diferente em sua natureza. Ele experimentava a calma depois da tempestade. Foi um momento de paz interior, quando tudo estava feito e todos os passos da parte mais difícil da jornada estavam para trás. O mundo ao seu redor ainda explodia em pedaços de vidro e projéteis mágicos, mas ele tinha conseguido. A Bruma estava vencida.
A calma durou pouco.
Uma forte luz tomou conta de todo o Bosque e matou, quase instantaneamente, a Bruma. Não houve gritos de raiva ou dor; apenas o cessar, sutil, de um barulho de estática. Um zumbido agudo que incomodava constantemente, mas era facilmente esquecido. As hárpias se desintegraram e o vento parou de soprar. John pousou no chão, o gosto de sangue demoníaco ainda em seu bico e o Guia parou de disparar, guardando a arma em seu coldre.
Paul olhou para eles. O garoto brilhava e feixes de luz rodeavam seu corpo. Como faria um Farol.
Jimmy parou na frente do Dragão, sem se mover. Não tinha a intenção de desviar do ataque, mas no último momento, descobriu uma falha no plano de Paul. Um samurai precisa viver no momento, ele havia dito, mas Robert não está totalmente na batalha. Você precisa se colocar em perigo, Jimmy, provoque o Dragão e não desvie do ataque. Provoque o momento em Robert. Uma falha apenas. Robert deveria ver o que estava acontecendo, certo? Mas ele estava longe do samurai e a Bruma impedia contato visual.
No último instante, ele deitou no chão e rolou, escapando incólume de três fortes patadas do Dragão. Golpe após golpe, a besta ganhava terreno e Jimmy sabia que estaria em sérios problemas dentro de poucos segundos. Jimmy saltou para a esquerda e, pela primeira vez em muitos quilômetros, colocou os pés no chão, o que foi um erro. Ele torceu o tornozelo onírico em um buraco feito pela batalha e caiu sentado, vulnerável.
Como um verdadeiro deus ex machina, uma forte luz explodiu em algum lugar perto e a Bruma desapareceu repentinamente. Os três, Jimmy, Rober e o Dragão pararam por alguns segundos, tentando entender o que acontecia, lutando para se acostumar a novamente enxergar o mundo mais do que alguns palmos à frente do próprio nariz. Havia cor novamente e eles podiam ver por muitos e muitos metros.
Robert viu, com um aperto na garganta, a boca aberta do Dragão, quase forçando um abraço dilacerante sobre Jimmy. Naquele instante, Robert alcançou o momento. O tempo parou e tudo ficou claro. Ele se colocou de pé e empunhou a espada. Em um segundo ele estava parado, no próximo encontrava-se do outro lado do Dragão, sangue pingando da lâmina afiada.
A cabeça do monstro caiu entre ele e Jimmy. Era uma cabeça humana.
Jimmy olhou para o rosto contorcido do velho e sussurrou o próprio nome.
Paul não sentia apenas um calor confortável percorrendo seu corpo. As luzes giravam até onde podiam ver, cruzando horizontes incontáveis, iluminando o mundo que antes era escuro e perigoso. Havia segurança naquela luz. Sentia-se protegido.
Um homem apareceu ao seu lado, da mesma forma que eles faziam ao cruzar para as Terras Distantes. Ele despencou contra o chão do Farol, inconsciente. Uma barba hirsuta tomava conta do rosto magro e seus olhos pareciam sustentar sua pele, um esqueleto que vestira um casaco humano. Ele abriu os olhos - olhos lunáticos - e engoliu uma longa golfada de ar.
“A lanterna!” Gritou enquanto agarrava os braços de Paul. “Não quebrem a Lanterna do velho!”
Joshua abraçou o garoto e começou a chorar.
Nossa, que texto bárbaro Mau. Impossível para de ler. PARABÉNS. Ana Eliza.
ResponderExcluirMuito bom!! ^^
ResponderExcluirFica a vontade de querer ler mais, saber a continuação...
Muito obrigado Li! Espero que goste do final!
Excluir