Crale apontou dois dedos para Dargius, acumulando energia
vital na ponta de suas unhas. A maga liberou, sentindo um leve formigamento na
mão esticada, o encantamento e viu dois pequenos feixes de luz piscarem na
direção do guerreiro.
Dargius agachou-se
com velocidade impressionante, mas não rápido o suficiente para desviar da força arcana disparada contra ele.
Sentiu o impacto quebrar duas costelas esquerdas e deixou o corpo tombar para o
lado, caindo com o rosto sobre uma das raízes que se erguiam da terra. “Você
não quer fazer isso”, ele disse com uma voz surpreendentemente segura. Podia
sentir o segundo ataque sendo preparado. “Crale, há alguma coisa lá embaixo
clamando por nós e não podemos ignorar.”
“Nós devemos ignorar assuntos que nos desviem
das ruínas, Dargius. Foram as ordens reais!”, ela gritou de volta. Em seus
dedos, outra magia acumulava força. Em seu íntimo, tentava acalmar-se. Nada de
bom surgiria de um luta entre os dois.
“Chega, vocês
dois”, Rasg comandou. Ironicamente, nos momentos de maior indecisão e impasse,
o bárbaro era o que chegava mais perto da razão. Rasg transformava-se sempre
que uma tempestade atingia o grupo, mantendo a calma e tomando as melhores
decisões prováveis. Era o completo oposto do monstro letal em batalha. “Eu não
sei se você irá conosco”, disse para Crale, “não posso continuar sem minha
espada e aquela bosta de aranha está em algum lugar aí dentro.” Olharam para
cima e viram um buraco no casco da gigantesca árvore. A aranha com a espada
cravada em seu exoesqueleto havia desaparecido de vista. “Sem mencionar o nosso
Rastreador”, dirigiu um olhar cerrado para Dargius.
O guerreiro ficou
sobre as próprias pernas e apalpou a região atingida, sem realizar esforços
para esconder a dor. Andou devagar até o buraco pelo qual havia jogado Telassa
e olhou para baixo. “Telassa!”, gritou e esperou pela resposta do Rastreador.
Dargius!
A palavra explodiu
em seu cérebro e ele deu um pulo para trás, o coração batendo como um cavalo em
plena corrida.
“Vamos logo com
isso”, Crale abriu a mochila e pegou a longa corda que carregava, sem
demonstrar qualquer sinal de que havia escutado a voz uma vez mais. Ela amarrou
uma das pontas na raiz mais próxima do buraco feito por Dargius e completou o
nó com um forte puxão, verificando se a corda estava firme o suficiente.
“Pegue, vá na frente.” Suas palavras saíam como faíscas contra o guerreiro, que
obedeceu prontamente.
“Da próxima vez que
você lançar uma magia contra mim”, quase tocava a testa da elfa, “sera a
última”. Crale sabia que não eram palavras vagas, mas sim uma promessa, quase
uma maldição jogada sobre eles: uma promessa fadada a ser cumprida.
Rasg ajudou a
amarrar a corda na cintura de seu companheiro e olhou para cima, procurando
pela criatura que ficara com sua espada encravada. Não gostava da idéia de
desviar o caminho da missão que haviam recebido diretamente de Laurecon, mas
perder aquela espada era uma perspectiva que ele simplesmente não poderia
aceitar, sem considerar que aquela voz poderia ser uma armadilha, uma
maquinação maléfica de seres poderosos. Rasg odiava controladores de mentes. E
também odiava a idéia de descer amarrado pela corda até um lugar desconhecido,
provavelmente infestado por insetos do tamanho de seu próprio corpo. Mas era o
necessário, não apenas se quisesse recuperar a arma com a qual crescera, mas
também para resgatar o Rastreador. Desejou ter as palavras de Crale para filosofar
sobre aquele momento e suspirou, desanimado. Mal tinha as palavras certas para
manter Crale e Dargius longe de estrangular um ao outro.
Passados quinze
minutos, Rasg encostava os pés no que parecia ser uma caverna dentro da árvore.
Estavam todos no interior do solo, em um longo túnel que não poderia ser
natural. Raízes saíam por todos os lados do corredor e pequenos insetos
passavam por eles quase de forma constante. Um cheiro úmido e ácido chegava até
eles e provocava uma leve náusea no bárbaro.
Crale fez um leve
movimento com as mãos e a corda desatou o nó, como animada, e voltou para as
mãos da elfa. “Sinto uma magia forte aqui dentro. Dargius, lidere o caminho e
vamos sair rápido daqui. Não estou gostando de como entramos aqui, parece que
fomos manipulados.”
Uma faísca se
soltou das duas pedras que o guerreiro carregava e em questão de segundos uma
chama firme ocupava o fim da tocha em suas mãos. O fogo revelou pouco mais do
que ele e Rasg podiam ver, apenas mostrando que o corredor continuava alguns
metros além do que enxergavam; a elfa via muito além do que os dois humanos e
podia visualizar uma curva atrás deles. “Para esse lado”, ela indicou.
Andaram por meia
hora sem que o túnel acabasse. O solo fofo se mostrava incômodo para Dargius,
pesado por causa da armadura que vestia. Cada passo sugava sua energia e, em
pouco tempo ele estava ofegante. “Está tudo bem?”, escutou a voz de Rasg ao
longe e teve quase certeza de que indicara positivamente com a cabeça, confuso
por uma névoa mental. A voz do bárbaro se misturava com a misteriosa voz que perpetuava
no interior da árvore. Em sua cabeça, a voz ficava cada vez mais alta e clara,
um canto suave, doce, carregado de luxúria que pedia sua atenção. Precisava
chegar naquele lugar, precisava encontrar a fonte da doce, doce voz.
“Uma câmara na
frente, talvez mais duzentos metros”, Crale avisou enquanto sacava as duas
adagas que portava. Dargius seguiu o exemplo e retirou o gladiu da cintura.
Rasg lamentou internamente a ausência de sua espada e agarrou uma pedra que
estava perto deles. Avançaram com extrema cautela na expectativa de um ataque
iminente.
A câmara, uma
grande sala retangular, estendia-se até onde Crale podia enxergar com os olhos
élficos. “Definitivamente não natural”, ela disse enquanto estudava o lugar. No
centro da sala, um amontoado de folhas, terra e raízes permanecia em paz. Crale
cerrou os olhas, procurando qualquer sinal de perigo.
“Um ninho”, disse
Rasg.
“O quê?”
“Um ninho”,
apontava para as folhas no centro da câmara.
“O melhor é desviar
e continuar em nos-”
Antes que pudesse
terminar a frase, Crale sentiu o cheiro ácido atenuar-se de forma aguda. Suas
reações a fizera agachar e formar um círculo completo com sua perna, derrubando
os outros dois companheiros no chão. No momento em que alcançaram o solo, a
elfa viu uma bola passar sobre eles, errando suas cabeças por alguns
centímetros. O ataque, qualquer que tenha sido sua origem, atingiu a entrada da
câmara e um rápido crepitar foi iniciado. Crale viu as pedras e folhas
derreterem em contato com a substância lançada. “Ácido”, alertou.
Passos pesados
surgiram da outra ponta da câmara e um enorme besouro saiu da escuridão. Cores
metálicas tingiam a dura carapaça e um dos três chifres funcionava como defesa,
lançando bolas de ácido diante qualquer sinal de perigo. O inseto parou por
alguns segundos, talvez analisando as três criaturas que invadiam seu
território, decidindo afinal que iria decompor os três corpos, uma vez que
estivessem sem vida.
“Ele vai atacar!”,
Dargius gritou, quando viu as patas traseiras do besouro se fincarem no solo macio.
De fato, o inseto investiu contra o pequeno grupo e os errou por poucos
centímetros, separando Rasg dos outros.
A elfa pulou em um
ímpeto sobre a carapaça de cores metálicas e forçou as duas adagas, apenas para
ter o ataque repelido pela resistência do exoesqueleto. O besouro atirou outra
bola de ácido contra Dargius, que deu um longo pula para o lado. Ele lutava para
respirar, mas o forte odor do ácido incapacitava seus pulmões.
Sentada sobre o
besouro, Crale tentava perfurar a proteção, disparando golpe após golpe no
mesmo ponto. Assim que percebeu que seria inútil, ela desceu do monstro,
parando do lado do guerreiro e gritou para Rasg: “Tente virá-lo!”
O bárbaro contraiu
os músculos e deixou a fúria cega tomar conta de seu corpo. Ele agarrou uma das
patas traseiras do besouro e deu um forte impulso com ambas as pernas, virando
o inseto para cima dos outros companheiros. Mais uma vez, Dargius e Crale
desviaram do corpo colossal e aterrisaram em segurança, mas Rasg sentiu um
impacto repentino em seu estômago e foi lançado com pela pata do inseto para
cima do ninho, caindo sobre as folhas e terra úmidas.
Ele sentiu algo
pressionando suas costas e puxou um osso humano do meio das folhas. Um chiar
agudo surgiu de baixo de suas pernas, saindo de centro do ninho, e ele pulou,
segurando firme o fêmur que tinha em mãos. Duas garras fecharam-se sobre as
folhas em um firme abraço e Rasg viu uma figura humanoide se levantar. Ele
tinha pele escura e uma cabeça oval, com duas orelhas para cima, como as de um
morcego. Os olhos eram leitosos e duas presas desciam da gengiva superior. A criatura
chiou novamente e mecheu as orelhas, pulando em seguida sobre o bárbaro e
desviando do golpe desferido com o osso, rasgando a pele de seus braços com os
dentes afiados.
Dargius segurou o
gladiu com a ponta para baixo e o enterrou fundo na carne macia do besouro que
se debatia. O inseto paralisou qualquer movimento instantaneamente um jato de
sangue e ácido espirrou do corte, causando queimaduras nas mãos e rosto do
guerreiro. Dargius gritou de dor e protegeu, no último segundo, os olhos do
játo ácido.
A elfa registrava
tudo. O ato estúpido de Dargius, a morte do inseto e as feridas de Rasg
causadas pela estranha criatura. Conjurou uma calma forçada sobre seu corpo e
foi como se o tempo desacelerasse por alguns segundos. Ela agiu rápido e precisa.
Pegou o saco de couro que continha água e derramou um pouco do líquido sobre
sua mão. Fechou os dedos molhados e direcionou a misteriosa força natural que
controlava suas magias, para lançar, em seguida, três adagas de gelo.
O bárbaro sentiu a
peculiar energia no ar e empurrou a cabeça do monstro que estava sobre ele para
cima. As três adagas atravessaram a cabeça da criatura e ele caiu, sem vida,
para o lado.
Crale colocou a
mão, ainda molhada, sobre o rosto de Dargius e deixou parte de sua energia
vital fluir para ele, pensando em cenas do passado, algo que mantinha sua mente
tranquila. As queimaduras do guerreiro desapareceram. A elfa, envelhida pelos
artifícios mágicos, caiu sobre os joelhos e respirou fundo, tossindo em seguida
o ácido que entrara em seus pulmões. Sentia-se estranhamente fraca, foram
magias de médio impacto e sabia que estava preparada para o esforço necessário.
Não entendia a fraqueza em seu próprio corpo.
“Você está bem?”,
Dargius perguntou, andando até o bárbaro.
“É só um arranhão”,
ele respondeu. Sangue escorria de seus braços e um pedaço de pele jazia
pendurado. “Mas aquilo será um problema.” Ambos olharam para onde Rasg apontava
e Crale sentiu uma sombrar cair sobre seu peito.
A entrada da câmara
estava fechada pelas raízes da árvore, selada de maneira intransponível. Tinham
apenas um caminho para seguir e dele, podiam escutar dezenas de chilros
idênticos aos da criatura que descançava no ninho.
Talessa abriu os
olhos. Não sabia onde estava. Aos poucos o mundo começou a tomar forma para a
mente confusa e ele se lembrou da traição de Dargius e de cair alguns metros
até chegar no chão fofo do interior da Árvore. Lembrava-se apenas de uma sombra
e de uma pancada na cabeça.
A primeira coisa
que percebeu foi que estava de ponta cabeça e que seus membros estavam imóveis
por pesadas correntes. Acentuou o olfato e farejou. Havia ao menos uma fonte de
odor naquela sala, além dele. Sentia o cheiro da terra, de folhas e raízes, de
pequenos mamíferos em decomposição. Podia identificar o cheiro de água
corrente, passagens de ar e... um cheiro que lembrava seu pai, esquecido em
algum lugar trancado em seu cérebro. Era um cheiro terrível, que trazia as
piores lembraças para o farejador, um odor corruptível que destruía tudo aquilo
que tocava.
Talessa sentiu o
cheiro da loucura.
“Um Rastreador?”,
ele escutou a voz de um homem, seguida por uma insana risada. “Quantos anos...
sim, sim... um Rastreador. Mas que dia especial, especial, especial!” A risada
continuou por um longo tempo. “A Árvore está feliz! A Árvore me ama!”
A risada, aguda e aterrorizante,
espalhou-se pelo interior da Árvore.
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