O CD mais recente do Eric Clapton alcançava a cozinha
através das caixas de som que estavam na sala. Limpavam, conversando com
animação, os pratos sujos do jantar que há pouco terminaram. Ele raspava molho
de tomate com um garfo enquanto ela despejava os resquícios do vinho branco na
pia; no fogão, bolas vermelhas marcavam onde o tomate ultrapassara a borda da
panela e algumas manchas estavam secas. O homem – calças jeans, camisa branca e
flanela escura – estava assobiando o blues enquanto começava a lavar os
talheres. “Obrigado por me ajudar com a louça, sério mesmo”, disse em um tom
quase envergonhado. Não era sempre que as mulheres que caíam em sua lábia
ajudavam com a cozinha. Estavam no segundo encontro e tudo fora perfeito. Ah,
seguira todas as regras do bom cavalherismo e usara seu melhor jogo durante
toda a conversa entre os pratos de salada e pasta. Iria entrar naquela calcinha
esta noite, tinha certeza. “Mas realmente, não é muito trabalho. Poderia lavar
tudo amanhã em cinco minutos.”
Ela – apenas um
vestido vermelho cobrindo o corpo, nada mais, nada menos – aproximou-se dele,
beijou sua nuca e disse: “Podemos gastar nossa manhã com um longo café na cama,
o que me diz?”
Sentiu uma imediata
ereção. “Combinado”, virou-se estrategicamente e a beijou longamente.
“Eu tenho uma mania
boba...”, deixou a frase morrer no silêncio que se formou. Apenas a água caia
da torneira, jogando um pedaço de cebola frita no ralo. Não sabia porque havia
dito aquelas palavras, elas simplesmente saíram de sua boca.
“É normal as
pessoas terminarem as frases...”, brincou.
“Não, esqueça. É só
algo besta, de qualquer forma.”
“Nada disso, minha
senhora”, enlaçou a cintura fina da moça, “manias são importantes. Acho que
somos um amontoado de manias, na verdade. A única coisa que nos difere enquanto
indivíduos é a combinação única de manias que acumulamos enquanto envelhecemos.
Por exemplo, eu tomo duas canecas de café toda manhã, é uma mania. Tenho a
mania de checar meu e-mail a cada cinco minutos, é uma mania. Estou
envelhecendo a cada segundo, é uma mania besta que deveria ser deixada de lado,
mas uma mania, de qualquer for-”, o som alto de um ônibus interrompeu sua
frase. “Tenho a mania de morar perto de uma das mais movimentadas linhas de
transporte urbano, algo besta, bem sei, mas eu vivo assim.”
Ela sorriu. Ficava
linda quando sorria, decidiu. “Estou convencida. Minha mania mais estranha é
comprar CDs que nunca escuto.”
“Sério que essa é a
sua mania mais estranha? Eu estava preparado para algo mais... bom, mais
estranho. Sei lá, fazer chá de bebês com água quente e bebês de verdade ou
atirar em pássaros toda manhã...”
“Que horror!”, ela
tinha uma risada em soluços. “Sem bebês borbulhantes para mim, querido. Eu
entro em lojas de música, escolho um álbum, abro o encarte e leio as letras. Se
for algo bom, letras com sentido e profundidade, sem apelo para as massas,
compro, mas nunca toco as músicas. São poemas. Eu compro pequenos livros de
poemas e não CDs, penso assim.”
“E você
simplesmente deixa todas aquelas músicas escritas com cuidado e paixão juntarem
poeira?”
“Não são músicas,
são poemas. Poemas silenciosos.”
“É uma pena. Poxa.”
Trocaram alguns
beijos e caminharam, entrelaçados, até o sofá, onde soltaram o peso dos corpos mergulhados
em pura luxúria. Suas mãos percorriam o vestido vermelho, experimentando e
reconhecendo as curvas da bela mulher. Sentiu os mamilos endurecidos, o quadril
macio e a barriga reta. Estava animado, queria avançar com urgência, mas
controlava os impulsos para saborear cada segundo com aquela musa.
Eric Clapton
despediu-se do público com Cocaine e
deu espaço para os Rolling Stones. Gimme
Shelter explodiu nas caixas de som.
“E a sua?”, ela
perguntou.
“A minha o quê?”,
respondeu em suspiros, concentrado em abrir o zíper do vestido.
“Sua mania mais
estranha?”, sentiu a hesitação nas palavras dela.
O homem sorriu e
ergueu o corpo do sofá, esticando uma mão para ajudá-la. Andaram até uma porta
fechada e gesticulou, indicando para ela entrar no cômodo. “Vá em frente, aqui
está minha mania mais estranha.”
Ela encostou na
maçaneta e parou. Queria realmente entrar naquela sala e descobrir o aspecto
mais estranho dele? Achava-o bonito e parecia que tinha a vida sobre controle,
enxergava um bom futuro para eles. E se estivesse prestes a entrar em uma
masmorra de masoquismo? Quase podia ver os chicotes e máscaras de couro, bolas
e vibradores de tamanhos inimagináveis. Talvez ele colecionasse armas;
calcinhas de mulheres com quem dormira, quem sabe. Ou, indo na contra-mão, o
que faria se ele fosse o cara mais entediante do mundo? Talvez ele dedicasse
seu tempo livre para modelar argila, como naquele filme antigo, com o fantasma
do Swayze.
Cansado de esperar
no corredor, ele colocou a mão sobre a dela e gentilmente abriu a porta. Nada
poderia prepará-la para o que estava naquela sala. Todas as paredes estavam
forradas com colunas recortadas de jornais. Ela rapidamente notou os recortes
mais antigos, partindo da paredes esquerda, aos mais novos, no meio da parede
final que completava o cômodo quadrado, todos presos com pregos longos e finos.
Os primeiros recortes estavam amarelados e quebradiços, o papel de baixa
qualidade tornava difícil a leitura e as fotos estavam gastas, desbotadas. A
mulher andou pela sala apertada, sentindo calafrios por todos o corpo. Não
havia espaço entre os recortes e eles cobriam praticamente cada centímetro de
parede. Em cada pedaço de jornal antigo, fotos de pessoas sorridentes e corpos
dividiam espaço.
“O que é isso
tudo?”, finalmente perguntou com uma voz tímida e trêmula.
“Eu trabalho como
escritor freelancer para vários jornais. Toda vez que alguém morre, eu recebo
tudo que preciso saber no meu e-mail e rapidamente escrevo o obtuário. Por isso
preciso checar minha inbox
constantemente”, explicou. Outro ônibus passou do lado de fora, fazendo as
velhas janelas reclamarem. “Eu coleciono as notícias que escrevi. Cada recorte
é um acidente ou crime fatal.”
“Uau!”, ela deixou
escapar. “Perto disso, meus CDs nunca abertos são brincadeira de criança. Por
um momento fiquei realmente preocupada, achei que você era algum tipo de... sei
lá, de doente mórbido.”
“Não”, disse
sorrindo. “Qual foi o último obituário que você viu? Não vale parentes ou
amigos.”
A mulher ajeitou o
vestido no corpo e pensou por algum tempo.
“E qual foi o
último filme com o Bruce Willis que você viu no cinema?”
“Sexto-sentido”,
disse rapidamente, para depois completar: “Eu... eu não vou muito ao cinema...”
“As pessoas sabem
exatamente qual bar abriu nos últimos anos, sabem sobre detalhes fúteis da vida
de celebridades, mas essas vidas”, apontou para as quatro paredes, “foram
perdidas de forma trágica e cada uma dessas pessoas, imagine quantos sonhos
perdidos, as esperanças, os medos enterrados... cada nome, foi logo esquecido
pelas pessoas que leram os obtuários. Eles significaram, afinal, muito menos
para a maioria das pessoas, do que o último filme do Bruce Willis que viram no
cinema. Essa é a minha mania... não, esse é o meu dever: lembrar de cada um
deles.”
“E você consegue se
lembrar?”, ela perguntou, enquanto estudava os recortes.
“Se lembrar? Dos
nomes?”
“Sim, é o seu
papel, não é?”
“Faça um teste.”
Ela rodou pelo cômodo,
passos curtos, mãos para entrelaçadas nas costas. Apontou, finalmente, para um
recorte aleatório, onde a foto de uma adolescente de aparelhos sorria para uma
foto de escola. “Elena Guernica”, cerrava os olhos, entregando a miopia. O nome
estava escrito com as letras redondas do homem no topo do papel e em tinta
vermelha.
“Elena
Guernica”, repetiu. Parecia que saboreava o nome. “Em vinte e oito de julho de
1991 a estudante E.G. perdeu o ônibus que a levava todas as manhãs para a
escola, ela voltou para dentro de casa apenas para abraçar o irmão mais velho e
dizer que lhe amava e, por causa disso, perdeu o ônibus. Enquanto ela corria,
gritando para o motorista parar, um carro desgovernado... Gregório Jurrinto,
sessenta e sete, estava voltando bêbado de uma festa e queria gritar com a
ex-mulher, que morava na mesma rua que a adolescente. Uma perna foi decepada. O
carro passou sobre a cabeça da menina e ela morreu na hora. Elena gostava de
assistir filmes com suas amigas e escrever poemas. Eu lembro de você, Elena
Guernica.”
Eles continuaram
com aquele jogo por mais algum tempo: a dama em vermelho apontava para uma foto
– idosos carrancudos, crianças suadas em um campo de futebol, mulheres grávidas
com bebês no colo e jovens com as namoradas nas mãos, havia todo tipo de pessoa
naquelas paredes; um cemitério particular – e ele recitava nomes, datas, causa mortis e famíliares deixados para
trás. Por alguns minutos o que estavam fazendo foi divertido. Mas logo ela
passou a imaginar as cenas sanguinárias dos acidentes ou os idosos morrendo
sozinhos em um quarto apertado e mofado, os pais chorando perto dos corpos de seus
filhos, filhos em luto por seus primogênitos. Cada pequeno pedaço de papel,
cada um daqueles recortes que cobriam as paredes do quarto, era uma pessoa,
representava toda uma vida, cheia de esperanças e decepções, altos e baixos,
qualidades e defeitos. Quantas horas foram vividas pelas pessoas naquelas
paredes? Quantos projetos foram interrompidos? Quais sentiram alívio em seu
momento final, quais partiram tentado agarrar a vida, célula por célula? Ela
não conseguia evitar olhar para aquelas fotos e considerar o amontoado de manias
que distinguia os mortos. Algo começava a se formar na garganta da mulher.
De repente, aquele
cara legal era uma pessoa estranha. Ele acreditava que tinha um papel nobre, e
isso contava alguns pontos para ele, achava; mas a morbidez daqueles recortes,
o contato tão próximo com tanto sofrimento, incontáveis tragédias, construíram
nela uma urgência, como se pudesse escutar as vozes das lápides naquele cemitério
de celulose e tinta antigas. Desejou que ele tivesse a mania de fazer potes de
argila, afinal.
Ela inventou uma
desculpa e correu para sua bolsa, vestindo em seguida o casaco pesado que usara
até entrar no apartamento. O homem tentou impedí-la, mas sabia que era inútil:
já vira aquela cena algumas vezes e nada que tentava dava certo. Era estúpido,
não sabia porque ainda mostrava o quarto para as mulheres que iam até seu
apartamento. Queria o sexo, ansiava pela companhia, mas teimava em demonstrar
orgulho pela memória que dedicava aos esquecidos.
Olhava pela janela
a mulher atravessando a rua com os saltos altos, tentando não cair no chão
molhado pela chuva recente. Tudo aconteceu muito rápido. Num segundo ela estava
lá, ao seu lado, olhando maravilhada para as horas de trabalho que colocava nas
paredes; no outro, a mulher atravessava a rua sem olhar para os lados, nunca
enxergando o ônibus que a espalhou pelo asfalto duro. Era uma mania besta,
morar perto da linha de transporte mais movimentada da cidade.
Alcançou a potente
máquina fotográfica e acertou o zoom, o foco e o flash. Duas fotos. Descarregou
o pequeno chip de memória no computador e abriu o documento modelo para o
obituário do jornal. Enquanto escrevia sobre a mulher, pensava como teria sido
melhor se tivessem feito sexo no sofá. Perguntou-se, balbuciando as palavras,
se ela vira o ônibus que avançava com velocidade em sua direção. Quais manias
ela tinha? Ele escreveu sobre a única que conhecia: comprar CDs e nunca
escutá-los. Por fim, anexou a horrível foto da dama de vermelho, sangue
espalhado pela rua e calçada, órgãos grudados no vidro do grande veículo, cabelo
enrolado nos pneus. O obtuário nunca seria aceito, ele sabia. Não havia
problemas, no entanto, aquele obtuária era uma exclusividade do seu cemitério
particular.
Não se preocupe, vou me lembrar de você, Sabrina Loreira,
que usava vestido vermelho, usava CDs como livros de poemas e tinha um sorriso
bobo, prometeu. Um freelancer trabalha por demanda, inclusive
os freelancers de memória. Era seu papel.
Lembraria dela.
UAU! Que texto ótimo. No início parecia mais um encontro casual. Surpreendente.
ResponderExcluirque medo credo, mas é ótimo
ResponderExcluirMuito bom! Parabens! Obrigada pelo presente de relatar aqui uma das minhas manias ;) agora, por você, me orgulho dela :)
ResponderExcluirM