“Cara”, ele disse antes de tomar outro gole de cerveja.
Entornou longamente a bebida, deixando-o sem o resto da frase. Odiava quando
ele fazia isso. “Isso é animal!”
Na mesa, dois
computadores ligados, garrafas de cerveja, duas canecas com chá de algumas
horas antes e porções de amendoins. Em um dos computadores, um longo texto
estava sendo escrito; no outro, um jogo rodava na potente máquina, mostrando um
guerreiro negro espirrando sangue da cabeça de orcs e destruíndo ninhos de
dragões.
“O que é animal?”,
perguntou enquanto digitava no teclado nojento pela cevada derramada.
“Isso, esse jogo. É
quase uma versão minha de outro mundo. O que você está escrevendo?”
“Sobre um cara que
morre depois de escorregar em um panfleto de segurança.”
Ele sorriu para o
amigo. “Ah, a ironia.”
“Sim, também achei
engraçado. O cara anda, escorrega no papel e cai de cabeça. Morre olhando para
um panfleto sobre qualquer coisa de segurança, sei lá, pode ser instruções
sobre uso de capacetes em construções. Já pensei em tudo: no sangue escorrendo
como uma poça a se formar, o papel enxarcado, os papéis da pasta dele – o
protagonista tem sempre que carregar uma pasta com papéis – voando pela rua...
teremos até uma mulher com um bebê no colo, berrando desesperada, pedindo por
socorro para o estranho que está morrendo na frente dela.”
“Muito bom!”
“Mais ou menos.”
Uma chuva fina começava a cair na noite lisboeta.
“Por que mais ou
menos? Cacete, olha essa espada que achei!”
Inclinou-se na
cadeira e observou o novo item gerado por chance. Era, realmente uma arma muito
boa. “Boa pra caralho! Duas mãos?”
“Duas mãos. Mas
acho que vou manter meu escudo.”
“Não faça isso.
Essa espada vai destruir qualquer coisa... A história precisa de mais coisa,
mais detalhes. Não posso simplesmente colocar uma pessoa andando pela rua até escorregar
e morrer. Qual era seu nome, o que fazia naquele lugar? Qualquer um que ler vai
se perguntar essas coisas para criar laços com o personagem, ou a história será
um fracasso. O cara não pode simplesmente andar pela cidade com uma pasta na
mão. Não, ele precisa de propósito.
Ou terei um conto não lido e isso não é bom para ninguém.”
“Se você pensar, é
como você.”
“Eu vou morrer de
forma irônica, é isso?”
“Não sei, pode ser
que sim. Não tenho meios de saber isso. Se tivesse, estaria muito rico agora.
Você não me disse que se sentia assim algumas vezes? Sem propósito, sem os
laços dos quais falou?”
Pensou por algum
tempo. Abriu os lábios para responder, mas decidiu ocupar sua boca com a
cerveja. Respostas não esquentam depois de abertas.
“É tudo meta, cara.”
“Meta?”
“É, metalinguagem. Li
em algum lugar que trabalhamos para pagar por passatempos que preenchem nossa
vida para tirar nossas mentes da fatalidade que nos espera. Todos vamos morrer,
é a única certeza. Pode ser em sessenta anos, pode ser hoje mesmo. Então
evitamos pensar nisso o tempo todo e criamos histórias para entreter nossos
cérebros preocupados com a própria mortalidade, é assim a vida. Mas cada vez
mais essas histórias estão mais metas.
Olha só esse cara”, ele apertou um botão no teclado do notebook e a imagem de
um guerreiro apareceu. Ele vestia uma armadura de batalha cheia de cravos e
ângulos afiados, portava a nova espada, uma mochila e algumas tochas para
iluminar as masmorras, era um elfo negro. “Haser Moonkiller é um elfo negro,
mas estou centrando em combate corporal, contrário ao que todos fariam com um
personagem dessa raça. Elfos não são tão fortes quanto, digamos, um anão. Então
se quero jogar como um guerreiro, por que diabos não monto um anão, você está
se perguntando. Porque Haser Moonkiller não se contentou em seguir o fluxo, em
se limitar pelo modo como nasceu, com apenas algumas escolhas viáveis. Ele viajou,
ficou mais forte, aprendeu a esgrimar com maior precisão... ele seguiu o
próprio caminho, por assim dizer. O que é mais ou menos o modo como levo a
vida. Nunca escolhi o caminho mais fácil. Sempre pego a curva mais
interessante, você me conhece.”
Terminou a cerveja
e concordou com a cabeça. Estava ficando vermelho. Sempre ficava daquela cor
quando bebia, não importava a quantidade: se ingeria álcool, ficava escarlate
como a bunda de um babuíno. “Haser se preocupa com questões sociais?”
“Ah, é um elfo
negro guerreiro ativista. Único de sua estirpe.”
Deram risadas e
abriram mais cervejas.
“Ainda preciso
criar uma história para esse personagem. Pare de mudar de assunto.”
“Não estou. Escolha
meta, como fiz com Haser.”
Pensou por um
tempo. Desta vez não afogou a resposta na bebida, mas estralou os dedos das
mãos e começou a digitar com rapidez. Faria meta.
“Aliás, estou com
um blog com alguns amigos, estamos escrevendo pequenos contos. Quer participar?”
“Ah, valeu! Quero
sim. Posso escrever essa história, do cara que morre com o panfleto de
segurança.”
“Boa, faça isso!”
“Meta.”
“Meta.”
Beberam cerveja e
conversaram pelo resto de suas vidas.
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