sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Os Golfinhos são mais Inteligentes


Gaia pisou pela primeira vez em uma cidade. A deusa, existente antes do próprio Tempo, evitava o ambiente urbano, preferindo as profundezas inacessíveis dos oceanos, dormindo profundamente ao lado do Deus Polvo, cujo único olhar poderia causar a loucura nos humanos. Humanos são criaturas engraçadas, ela pensava, mentes fracas que se quebram pelos mais fúteis motivos. Um único deitar de olhos em algo que não podiam entender e cuco, lá se vai a sanidade e eles gritavam loucuras e jogavam fezes em pessoas ao redor. Às vezes se perguntava até onde valia a pena acordar e se movimentar por eles. Sair do fundo da profundidade abissal podia ser cansativo algumas vezes. Gaia, no entanto, importava-se com as criaturas que viviam em sua crosta. Todas as criaturas, não importa quão estúpidas.
Ah sim, os humanos eram estúpidos, tinha certeza a divindade: única espécie capaz de artificialmente acabar com a própria existência, em mais de uma maneira. Um simples conjunto de botões apertados e o relógio do fim-do-mundo alcança a fatídica marca de meia-noite. Todas as culturas, todo o conhecimento acumulado, as maravilhas da ciência... tudo por nada. Tudo, aliás, usado para o auto-genocídio. Auto-genocídio, pensou com o gigantesco cérebro - cujas sinápses espalhavam-se pela flora e fauna de todo o planeta - um conceito engraçado. Estúpidos. Criaturas sem qualquer tipo de entendimento real sobre a vida e sobre o lugar em que ocupam, exaurindo sistematicamente qualquer ponto em que se estabelecem, envenando os rios, massacrando o que era verde e deixando para trás o cinza tóxico; matando seus iguais, arrancando as peles dos animais para fazer roupas que consideravam agradáveis aos olhos, tirando o balanço da vida. Criaturinhas infames que precisavam de um relógio para contar o próprio fim.
O ar poluído da cidade a deixava irritada. A chuva que caia sobre seus galhos e folhas era ácida; a cacofonia absurda que saía dos carros ao seu redor perturbava as células hipersensíveis das flores e ervas que constituíam seus ouvidos. Gaia deixava um rastro por onde passava, seus pés criavam a vida onde tocava, bela e única, cada passa um desenvolvimento singular de vida. Vida, que logo desaparecia quando tocada pelos venenos da vida humana.
Criaturas absurdas!
Gaia evitou pensar nos recipientes que tomavam conta dos oceanos, despreocupadamente despejados nas águas gélidas das praias, matando peixes e corais, prendendo caramujos e caracóis em seu interior, condenando-os à morte. Ao menos quinze espécies por eles jamais documentadas estavam para sempre perdidas. Evitou pensar no uso incorreto dos materiais mais complexos, que eles chamavam de urânio, e nos casos em que se matavam sem pensar duas vezes. Na miséria de alguns espécimes, na estúpida ignorância que usavam para cercar seus pensamentos, vivendo assim em uma falsa felicidade. Insustentáveis, incoerentes... valeria a pena salvá-los?
A deusa achava que sim.
Ela chegou em um prédio, alto e isolado do resto da cidade. Seus dedos, um emaranhado milenar de raízes e restos de pequenos mamíferos, encostaram no espaço entre os olhos da criatura. Você é meu escolhido, fez os ouvidos simplórios escutar, passe adiante as minhas palavras e salve a espécie, ó escolhido. Essas imagens que agora vê são o futuro para o qual o mundo caminha, mas há esperança. Nos momentos de maior desespero, quanto até mesmo os deuses abandonaram o campo de batalha e as Valkírias guiam os escolhidos, há esperança. É agora o seu papel fazê-los enxergar e preparar para o Cataclisma. Entenda a importância, espalhe as visões que agora dou-te livremente, mudando assim o rumo daquilo que já está escrito e para sempre esteve. Vá, divulgue meus segredos; viva!
Estava satisfeita. Seu trabalho estava feito. Tirou o dedo da testa do gato e confiou que ele cumpriria seu papel. Gaia dissolveu-se em uma espiral de terra, areia, folhas, animais e água, deixando para trás um caminho mais seguro para o humanos.
O gato parou de lamber sua pata dianteira e olhou para onde a antiga deusa permanecia momentos antes. Entendia, contrariando qualquer lógica racional, o que havia visto. Precisava agir, naquele mesmo instante.
Percorreu os telhados da cidade, pulando entre telhas e andares, compreendendo melhor a física do mundo do que o mais brilhante dos humanos. Movimentos precisos, cálculos complexos feitos com naturalidade. O gato pulou, correu, escorregou e miou, convocando todos aqueles que entendiam seus sons para uma assembléia, como uma que nunca aconteceu antes.
Caros irmãos, miou alto, para que todos pudessem ouvir. Todos os felinos da cidade estavam reunidos no enorme parque e miados abafados repediam o que ele acabara de dizer. A Grade Deusa prestou-me uma visita e presentou-nos com os acontecimentos futuros. É nosso papel desviar a raça humana dos erros presentes... E é também nosso papel ignorar o alerta.
Milhares de olhos brilhavam no escuro. Milhares de sorrisos, como aquele que assustara a pequena Alice, muitos anos no passado.
Nossa Era começou, ele miou, maliciosamente.
Os miados acordaram os moradores da cidade, curiosos com os dóceis animais reunidos entre as árvores do parque.

2 comentários:

  1. Gostei bastante. Muito bom. Parabéns. Beijos.

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  2. FANTASTICO! FANTASTICO! Muito bom!....
    Parabens! MRN

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