quarta-feira, 23 de maio de 2012

Fagulhas

O jantar tinha sido excelente. Mas começava a produzir um leve desconforto no estômago. Estavam no carro, há trinta minutos de casa, quando ela decidiu perguntar. 

"Você estava olhando para a Amélia?"

Um tanto quanto absorto em seus pensamentos, Jonas deu um suspiro. Estavam casados há vinte e três anos, ele com quarenta e oito, ela com quarenta e dois. Encontravam-se em um patamar da relação que não havia mais motivos para mentiras, escândalos, divórcios.

"Sim. Estava.". E sua resposta pairou no ar em alta velocidade. Olhou as placas, a velocidade do carro, o tempo que demorariam até em casa. Seria um longo percurso. Rosângela fez um barulho com a boca. Significava muitas coisas. Mas não seria necessário um especialista para saber o que aquele significava.

"Olha", continuou Jonas, "Olhei. Não nego. Fazia tempos que Romero não trazia a esposa e não me lembrava do quanto ela poderia ser encantadora". Outro barulho. "Mas eu vou para casa com você, não com ela"

Ela explodiu e logo silenciou. "Porque você não pode ir com ela, só por isso. Eu vi a maneira como você a fazia rir, enquanto eu tentava compreender os motivos. Tenho ódio quando se lembra do passado"

A história era comum entre eles. Casados há tempos, com as liberdades necessárias para serem sinceros, demasiadamente sinceros um com o outro. O contrato que estabeleceram previa observações e leves comentários. Nunca era possível prever, porém, qual deles incomodaria Rosângela. Em um bom dia, ela ria, comparava com sua beleza, falava dos homens ao redor, e eles terminavam na cama fazendo um sexo que ele ainda achava vigoroso, embora não como o seu auge juvenil. Em um dia ruim faltavam vinte e cinco minutos para chegar em casa.

Jonas poderia apaziguá-la. Parar o carro, pegar em suas mãos, produzir um discurso encantador, mas não o fez. Eram vinte e três anos de devoção. Orgulho de não ter cedido a tentações. De ter tratado-a como merece, diferentemente da maneira como o pai tratou a mãe. Não concebia o comentário como infeliz. 

"As mulheres não deixam de ser atraentes só porque estamos casados", ela virou para a janela, sem barulhos na boca, "ter escolhido você que demonstra, de fato, o que sinto". Esperava que a frase gerasse uma carga de efeito. 

"Tudo bem", ela disse. Voltando a olhar para a janela.

 Jonas não pode ver, mas ela sorria. Um sorriso tímido. Mas sorria. Era o plano de Rosângela de tempos em tempos. Arquitetar discussões como uma maneira de sentir-se amada. Achando que, se não houvesse fogo e ódio, ele a deixaria-a sem pestanejar. Era como uma simulação de um ataque. Para saber se ele, ainda, a defenderia, pensava ela, com sua própria vida.

Fizeram sexo naquela noite. Duas vezes.

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