Durante
o percurso, Zack recolheu alguns copos vazios e três pratos com restos de
hambúrgueres e batatas. Era hilário o modo como os dois homens sentados perto
da Jukebox comiam, enfiando grandes pedaços de pão e carne, lavando tudo com
água, cerveja ou whisky. Havia um odor estranho ao redor deles, um cheiro
deslocado. Depois de alguns segundos, o bartender percebeu que sentia o cheiro
do mar naqueles homens.
“Vocês precisam de algo?”, ele
perguntou, sabendo que iria escutar um pouco da história daquelas duas pessoas:
estava determinado a seguir o roteiro, sentia que algo iria dar errado, terrivelmente errado se ignorasse os
homens e se dirigisse para as três velhas sentadas no balcão.
Tic,
tic, tic.
“Estou satisfeito”, respondeu um deles.
O homem era alto e tinha o rosto escondido em uma barba hirsuta. A pele
descoberta, mostrava fortes sinais de exposição aos elementos. “Você acredita
em sonhos, homem?”
Acredito
em praticamente qualquer loucura que você possa me contar, velho. Zack concordou
com a cabeça, puxando ruidosamente uma cadeira e sufocando qualquer tom ríspido
que poderia sair com suas palavras. Percebeu, com o canto dos olhos, o olhar
afiado que o outro homem dirigiu para eles. Cuidado,
alertavam aqueles olhos.
“Pois tenho motivos para acreditar, estando
em perfeita sanidade e sobriedade... bem, não agora, mas quando estou em minha
perfeita sobriedade, tenho motivos em acreditar na realidade das consequências físicas
do que nos acontece em sonhos, bom homem. É o que quero dizer.”
“Como sonhar estar em alguma briga e
acordar com olho roxo?”
“Ah, sim, mas muito além de confrontos e
hematomas. Muito, muito além. São as visitas nas terras de Oneiros que permitem
a manutenção e continuidade de minha existência, também de meu colega aqui ao
lado”, ele falava em um ritmo estranho, tateando por um labirinto do qual não
havia mapa. Zack tinha certa dificuldade em acompanhar as frases do estranho.
“Somos marinheiros, praticamente no final da nossa existência, perto da
clareira na floresta, como diria o autor. Eu, meu caro, tenho as moedas para
Caronte já em meu punho. Nas palavras do poeta Coleridge, fique e escute minha
história”.
Caught by his spell and the Mariner tell his tale, gritou a Jukebox.
“O horror alcançou o Trinidad no começo de 1520, ano em que
vivo quando estou acordado. Na forma de tentáculos de enormes proporções, o
cruel e impiedoso destino lançou sua ira contra a madeira do navio, embarcação
honrosa que se transformou em nosso caixão, caro. Uma lula! Sim, uma lula
gigante se abateu contra nós”, ele espalmava a mesa com força. “Ataque após
ataque, o monstro arrancou o mastro, destruiu as velas e inutilizou todo o
estibordo. Apenas a presença espirituosa de Fernão de Magalhães fez a
tripulação resistir contra a força da besta. Dois homens foram esmagados pelos
tentáculos, outros três sumiram nas águas geladas. Por dois sóis nós lutamos
bravamente, assim como a impetuosa fera!”. O marinheiro levantou-se e colocou
um dos pés sobre a cadeira, erguendo um punho fechado para o nada: “‘Acabem com
esse Leviatã, Homens do Mar! Por vossa pátria, por vossas vidas!’, gritava
Magalhães. E pelo bondoso Deus, como lutamos! Fui agarrado pelas pernas por um
dos tentáculos e fui salvo por ele”, apontou para o outro marinheiro, sentado
na mesa ao lado, um dos cantos mais escuros do Clube. “Com um único corte de
sua lâmina, a parte do corpo da besta que esmagava meus magros músculos caiu,
contorcendo-se e lutando em pleno vigor e periculosidade; besta infernal! Um
pequeno ídolo de madeira estava preso em uma das ventosas e nós o coletamos,
sem saber o que era. Um demônio! Chifres, caudas e fogo. Sentimos a maldição em
nossas almas e jogamos a pequena estátua profana na água. ‘Volte, volte para
suas profundezas, gritamos’. Por fim, a fera desistiu e afundou o colossal
corpo no Atlântico, quase levando o danificado Trinidad com o volume de sua massa. Oitenta homens sobreviveram. E
por muito tempo sobrevivemos juntos, comendou pouco, bebendo menos e dependendo
da chuva e dos cardumes ao nosso alcance. Até chegar o dia em que nossos ralos mantimentos
se esgotaram e uma sombra caiu sobre os corações de todos. Amamos o mar, mas
amamos ainda mais a vida. Dez dias sem comida e vinte sem água doce. Uma
tripulação de esqueletos ao sabor da maré. Sem terra à vista, sem instrumentos
para pescar, condenados, todos nós. Mas o diabo tem suas artimanhas e nossa
maldição se mostrou especialmente cruel.” Ele fez uma pausa e terminou de beber
o whisky em seu copo. Zack aproveitou o momento de silêncio e bebeu, em apenas
um gole, a cerveja que começava a esquentar em suas mãos.
Zack puxou na memória o que ele sabia
sobre Magalhães. O que os mainheiros estavam falando estava completamente
errado. Ele lembrava que Magalhães morria em batalha, poucos meses antes de
completar o circunavegação e que não havia, nunca houve, relatos sobre monstros
marinhos atacando os navios portugueses e espanhóis.
“Nosso verdadeiro horror vinha durante o
sono”, repentinamente soltou o outro marinheiro. “Quando dormíamos... quando
dormimos durante a noite, acordamos em algum lugar. Paris em 1930, Tókio em
1854... parece aleatório. Acredito que não dormimos, na verdade. Transitamos
para outro lugar, em outra data. Mas sempre nos encontramos em um lugar que sirva
comida e dinheiro corrente. Nos alimentamos, nutrimos o corpo que cerca nossa
atormentada alma”, lágrimas caíam dos olhos de ambos. “Nossos amigos e colegas
caindo sem forças. Homem após homem expirando, carcaças ocas e secas que
ficaram para trás. Enquanto nós dois... ah, nós ganhamos peso e vitalidade. Temos
estômagos cheios, mas vivemos em meio a miséria daqueles que amamos, que cruel
destino é esse? ‘Bruxaria’, ‘Demônios’, acusaram os sobreviventes. Uma turba de
esqueletos se abateu sobre nós e nos acorrentaram. Uma semana sem comida, uma
semana sem bebida e ainda ganhamos peso. A fome é aterradora e sempre comemos
quando estamos no... no mundo de sonhos. Nos mundos feitos de sonhos, é o que
dizemos para justificar os prazeres que temos ao comer as mais deliciosas
comidas enquanto assistimos os iguais tombarem em uma morte lenta e desumana.”
“Mas nosso terror acabará essa noite”, o
tom de alívio era notável na voz do primeiro marinheiro. “Escutamos os planos
para nossa execução. Enquanto dormimos, isto é, enquanto nos empanturramos dos
mais variados pratos, eles irão cortar nossas gargantas e jogar os corpos sem
vida no mar. Assim, esperam encontrar terra, pois acreditam que é culpa nossa
a maldição do Trinidad. A ordem veio
do próprio Magalhães.”
Tic,
tic, tic...
Em um salto simultâneo, os dois
marinheiros se colcaram de pé e trocaram olhares, concordando com a cabeça.
“Adeus”, disse um deles, “obrigado pela
deliciosa comida”. Ele mostrou 3 moedas de ouro, jogando uma delas para Zack. “Acredito
que isso cobrirá nossas despesas. As outras são para minha viagem com Caronte.”
Do mesmo modo que levantaram, caíram em
perfeita sintonia. Zack viu as duas gargantas abertas. Dois rasgos profundos
nas gargantas do marinheiros, mas sem os jatos de sangue, para sua surpresa.
Tic,
tic.
Tic.
O cheiro de água salgada desapareceu do
Clube.
Uma camada de suor cobriu o corpo de
Zack. Ele olhou para trás, na direção das três idosas. O que ele viu fez seu
coração pular algumas batidas.
Duas delas seguravam um fio dourado de
lã. O fio não era comprido, talvez um pouco menos de trinta centímetros e era
um pouco mais grosso. Uma aura branca parecia cercar a lã, mas Zack não sabia
se era a cerveja, a distância ou a situação absurda que estava criando a
ilusão. A terceira velha, usando o par de óculos que era constantemente
dividido por todas, retirou de sua bolsa uma tesoura de cabo verde.
Com dois rápidos movimentos ela cortou
os dois fios dourados.
O Talismã me deixou um gosto amargo de algo inacabado. A Torre Negra depois de tantas emoções me deixou um vazio, uma saudade. As Várias Vidas de Zack me deixam um gostinho de quero mais. Parabéns Maurício. Meus cumprimentos pelos belos contos que escreve. Eles são bem elaborados, envolventes. Da aquela vontade de saber o que acontece na página seguinte e de ler um livro inteirinho sobre Zack, imagine a delícia de um livro inteirinho dele. Não posso fazer nada qto ao Talismã e a Torre Negra mas qto ao Zack posso pedir, gentilmente, ao escritor que nos dê mais, muito mais, né filho? Pedido feito. Ana Eliza Rizzi.
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