Para
A. E.
Zack procurou nos bolsos de um dos
marinheiros por cigarros. Não fumava há anos, mas achou que precisava de
nicotina naquele momento. Suas mãos tremiam incontrolavelmente, tornando
difícil acender o cigarro enrolado pelo próprio marinheiro, sem filtro; tabaco
puro. Saboreou a nostalgia dos dias de adolescência, quando roubava bitucas e
cigarros fumados pela metade, esquecidos pelos cantos da casa.
Deixou a fumaça
escapar pelas narinas e desaparecer no teto do Clube. Retirou a Jukebox da
tomada; algumas conversas têm de ser no silêncio, decidiu prontamente.
Tic.
Tic.
Foi até o balcão
e empilhou copos pequenos e a garrafa de seu melhor whisky e o serviu em quatro
doses iguais. Uma das senhoras tricotava incessantemente. Eram muito parecidas,
diferiam-se apenas em pequenos detalhes, todas com longos cachos brancos,
corpos acima do peso e vestidos de algodão sem qualquer tipo de estampas ou
detalhes. Enquanto a velha da direita controlava a lã que saía de sua bolsa, a
que estava sentada no meio tricotava rapidamente, realizando pequenos
cilindros, que provavelmente não precisariam de qualquer tipo de habilidade
especial: eram nada mais que algumas linhas entrelaçadas, sequer um tricô em
sua definição própria. Algumas linhas paravam ao longo do comprimento, outras
seguiam até quase a ponta final do trabalho, mas apenas um fio permanecia
isolado ao fim, livre de qualquer trabalho manual, um fio solitário e
interrompido.
No
final, todos morremos em solidão, uma voz que não era sua
sussurrou na mente de Zack.
Na esquerda, a
terceira velha lia com dificuldade o jornal do dia; as lentes entre elas
alternadas estavam no rosto que controlava as agulhas. “Peixes”, ela leu em voz
alta, “A lua passa por seu melhor astral e hoje será um ótimo dia para buscar
novos caminhos e novos desafios. Ande pela calçada, no entanto.”
“Me pergunto se
nosso público alvo realmente lê isso”, disse a velha da ponta. Cloto, Zack se lembrou, o nome dela é Cloto. “Às vezes acho que
não deveríamos perder tempo brincando com o destinos das pessoas desse jeito.”
As agulhas de tricô silenciaram quando as três trocaram olhares antes de
gargalharem estrondosamente. Láquesis, que naquele momento tricotava, segurou
com zelo os óculos enquanto balançava o corpo no esforço do riso.
“Você procura
seu horóscopo diariamente, certo Zack?”, perguntou Átropos, com um tesoura de
ferro em uma das mãos.
Ele abriu a boca
para responder, mas virou o conteúdo de seu copo antes, fazendo uma careta. Com
a garganta lubrificada, respondeu: “Não acredito em horóscopos. Acho que são
textos genéricos produzidos por equações inseridas em algum programa de
computador. São frases que se repetem n
número de vezes em estruturas diferentes. É puro marketing para as massas,
esperança servida em coluna, enquanto você se engana que a vida vai melhorar
sem esforços.”
“Garotas, alguém
aqui tem opiniões!”, disse novamente Átropos. As três riram com vontade. “Então
não consegue acreditar que as constelações...”
“E a lua!”,
interrompeu Láquesis ainda sorrindo entre as outras duas senhoras. Através das
lentes, Zack viu retinas vivas, com um brilho mordaz, forte como o fogo que
queimou as bruxas da Inglaterra.
“...e a lua, têm
o poder de interferir com vidas aleatórias no nosso pequeno planeta perdido em
uma das esperais desta galáxia?”
O bartender respondeu
negativamente da cabeça.
“Faz bem, meu
caro”. Láquesis pousou as agulhas e entregou os óculos para Átropos, junto com
o início do fio, que estava no poder de Cloto. Ela estudou a o trabalho de suas
irmãs e concordou com a cabeça, cortando uma das pontas sobressalentes. Zack
não achou que importava qual ponta ela cortava, mas o bartender não poderia
estar mais enganado.
Quanto a tesoura
se fechou sobre a lã, a Jukebox disparou o inconfundível riff de abertura de Another One Bites the Dust, do Queen.
Mesmo fora da tomada, as Jukebox espalhadas pelo mundo aparentemente tomavam liberdades
quando as Parcas estavam presentes, ele concluiu. Zack não ficaria surpreso se
a mesa de sinuca tivesse algum tipo de reflexão. Eis minha sanidade dando adeus, ele pensou.
Cloto disse,
batucando a música com dedos longos: “O que é engraçado, Will... Vou te chamar
de Will porque foi quando mais gostei de você, meu amigo. O que é mais
engraçado, Will, é que nós escrevemos os horóscopos”. Zack não se lembrava de
conhecer um Will ou de ter sido chamado de tal forma em um único momento de sua
vida. A Parca prosseguiu: “Quem melhor para predizer seu dia do que as Parcas,
hein? Não que fosse fazer qualquer diferença, o que vai acontecer, vai acontecer. Está traçado.”
“Mas o
interessante”, Láquesis brincava com seu copo de whisky, “é que a pessoa para
quem escrevemos o horóscopo nunca se preocupa em ler alguns conselhos sobre sua
vida, mesmo vindo de nós.”
“De novo, isso
não iria fazer diferença alguma. A mais pura verdade é que as vidas, o tempo
que as pessoas têm, são oportunidades para realizarem feitos dos mais variados
tipos enquanto esperam pela morte. É interessante ver quantas coisas acontecem
na vida de uma pessoa para que ela não fique entediada até a linha ser
cortada”, Átropos encerrou o assunto em um tom leve.
“Nas últimas
três décadas escrevemos para você, nesse mesmo jornal, todo dia. Em trinta
anos, você leu seu horóscopo, Will?” Antes que pudesse responder, Cloto
continuou a falar: “Não, é claro que não! Vocês nunca escutam quem precisam
escutar e quando precisam escutar.
Seguem felizes, em plena escuridão, tateando pelo caminho, deixando para trás o
que precisavam fazer.”
“Eu... eu não
estou entendedo o que vocês estão dizendo. O horóscopo é para...”
“Para você,
mortal”. Átropos leu novemente do jornal, desta vez usando os óculos: “Áries.
Seus destino bate à porta e você precisa escutar o que a voz interior diz.
Novos encontros irão questionar a realidade e você ficará louco até seu último
dia, Zack.” Elas riram pela terceira vez. “Essa parte não está no jornal, mas o
resto sim. Nós tentamos avisar.”
“Toda vida
começa com um propósito...”, disse Cloto.
“Que deve ser
realizado para continuar a trama de Todas as Coisas...”, Láquesis continuou em
um tom grave.
“Encerrando
apenas no último segundo de sua existência, e não antes. Nunca antes.” Átropos apontava a tesoura para o bartender. “Por que
você desperdiçou o seu Fio nesse Clube, Zack? Durante toda sua vida você
ignorou a canção que compúnhamos especialmente para seus ouvidos. Não percebe o
mal que está fazendo, Zack?”
Ele não sabia o
que responder. Sempre sentiu que estava no lugar errado, uma voz constante o
lembrava disso. Mas ele havia sufocado o som irritante da voz que julgava suas
decisões e erros com as necessidades supérfluas do mais irracional dentre os
cotidianos, embriagando a parte de seu cérebro que tentava escutar os chamados
com a fumaça intoxicante de centenas de charutos e cigarros que povoavam o ar
do Clube. Um forte sentimento de culpa caiu sobre ele. Havia jogado fora o
tempo que lhe fora dado.
“O que está
feito, está feito. O desperdiçado agora se torna esgotado, caro Will. Seu nome
já foi Homero, já assinou peças com a pena de Shakespeare, causou arrepios com
o nome de Poe e ilusões no mundo de Tolkien”, Cloto proclamou.
“Escreva suas
fantasia! Este é o seu mandamento desde sua primeira vida, quando andava no
mundo mortal como Homero, Zack: escreva os sonhos e alucinações, torne a
realidade terrível que assombra até mesmo os mais poderosos divinos em
histórias de ficção, tire das abominações seu poder. Quando você criou as mais
fortes histórias da humanidade até então, como Homero, possibilitou que os
pesadelos fossem vencidos, as forças monstruosas perdem, seja o motivo qual
for, grande parte de sua existência quando são fixadas na mente de milhares de
pessoas como ficção, histórias de mentira. O poder deles se tornam mentira.
Eles deixam de ser reais!” Láquesis
segurava a mão do bartender, acariciando a pele com mãos macias, transmitindo
calma e perdão.
“Uma moto que
viaja no tempo, as idéias que escapam pelo buraco de um rosto, artefatos que
amaldiçoam marinheiros, são manifestações de ameaças que vão além de sua
compreensão e que teriam sido suprimidas se você as tivesse escrito, Zack, um
perigo para a própria realidade. A fama, a riqueza, o sabor de conquista lhe
foram concedidos quando firmamos o acordo. Em troca, você deveria permitir a
existência... bem, existir! Tente se lembrar, Zack, lembre da Legião que
assombra o mundo, dos terrores que se alimentam de crianças e se escondem no
conforto da escuridão. Escute a música da próxima vez, Zack. E pelos deuses,
escreva!” Segurando um longo fio de lã, mas solitário em sua quase totalidade,
Átropos cortou uma das pontas.
Nos momentos
finais, Zack não sentiu medo ou tristeza por deixar para trás o mundo em que
vivia. Não se lembrou dos momentos importantes da vida sem ambições que levara
até aquele segundo, os amores perdidos, as pequenas vitórias e grandes
derrotas, as íncontáveis noites em claro tentando escrever histórias. Nos
momentos finais, Zack se conectou com os fios que já foram seus, em outras
vidas, em outros tempos. Ele se tornou William Shakespeare, Homero, Edgar Allan
Poe e J. R. R. Tolkien. Ele viu o mundo pelos olhos de um xamã sem nome, que
contava histórias de monstros gigantescos para as crianças e mulheres da tribo,
histórias passadas oralmente de geração para geração, alertando para os perigos
que espreitavam nas sombras; entendeu as coincidências do mundo na pele de um
bardo que vagou pela Europa medieval; pintou máscaras teatrais com mãos de uma
gueixa que viveu em um Japão antigo, quando os deuses da natureza atormentavam
os humanos daquelas ilhas. O Escritor viveu e morreu incontáveis vezes naquele
segundo final.
Zack não
experimentou a vida se desprendendo de seu corpo. Ele criou dezenas... centenas
de histórias simultâneas e ricas em detalhes, perigos reais travestidos na
sedução da ficção, prontas para entreter gerações e conceder à realidade a
estabilidade da qual necessitava.
Another one bites the dust, yeah. Another one bites
the dust…
“Você nascerá
novamente, Will…”, Cloto bebeu do copo que segurava, fazendo uma reverência ao
corpo sem vida no chão do Clube.
“Escreverá com
sucesso e criará uma infinidade de sonhos em suas histórias”, disse Láquesis e
repetiu o ritual de sua irmã mais nova.
“O Freddie Mercury
sempre foi meu cantor favorito”, constatou Átropos. As três – Nona, Décima e
Morta; Cloto, Láquesis e Átropos; as Parcas, as Moiras, o Destino – gargalharam
pela quarta vez naquele dia e beberam em homenagem ao Escritor.
Obrigada pela dedicatória Maurício, adorei! Mas posso te dizer uma coisa? QUEQUÉISSOCARA!!!!!!!! Que texto sensacional... Li numa respiração só, e ainda tenho um nó na garganta pelo final. Bom, agora é esperar por mais. BOA SORTE. Ana Eliza
ResponderExcluir"Toda vida começa com um propósito"...e vc ja encontrou o seu. Fantastico trabalho! Parabens!!!Meliza
ResponderExcluir