sexta-feira, 18 de maio de 2012

As Várias Vidas de Zack - Final


Para A. E.
Zack procurou nos bolsos de um dos marinheiros por cigarros. Não fumava há anos, mas achou que precisava de nicotina naquele momento. Suas mãos tremiam incontrolavelmente, tornando difícil acender o cigarro enrolado pelo próprio marinheiro, sem filtro; tabaco puro. Saboreou a nostalgia dos dias de adolescência, quando roubava bitucas e cigarros fumados pela metade, esquecidos pelos cantos da casa.
Deixou a fumaça escapar pelas narinas e desaparecer no teto do Clube. Retirou a Jukebox da tomada; algumas conversas têm de ser no silêncio, decidiu prontamente.
Tic. Tic.
Foi até o balcão e empilhou copos pequenos e a garrafa de seu melhor whisky e o serviu em quatro doses iguais. Uma das senhoras tricotava incessantemente. Eram muito parecidas, diferiam-se apenas em pequenos detalhes, todas com longos cachos brancos, corpos acima do peso e vestidos de algodão sem qualquer tipo de estampas ou detalhes. Enquanto a velha da direita controlava a lã que saía de sua bolsa, a que estava sentada no meio tricotava rapidamente, realizando pequenos cilindros, que provavelmente não precisariam de qualquer tipo de habilidade especial: eram nada mais que algumas linhas entrelaçadas, sequer um tricô em sua definição própria. Algumas linhas paravam ao longo do comprimento, outras seguiam até quase a ponta final do trabalho, mas apenas um fio permanecia isolado ao fim, livre de qualquer trabalho manual, um fio solitário e interrompido.
No final, todos morremos em solidão, uma voz que não era sua sussurrou na mente de Zack.
Na esquerda, a terceira velha lia com dificuldade o jornal do dia; as lentes entre elas alternadas estavam no rosto que controlava as agulhas. “Peixes”, ela leu em voz alta, “A lua passa por seu melhor astral e hoje será um ótimo dia para buscar novos caminhos e novos desafios. Ande pela calçada, no entanto.”
“Me pergunto se nosso público alvo realmente lê isso”, disse a velha da ponta. Cloto, Zack se lembrou, o nome dela é Cloto. “Às vezes acho que não deveríamos perder tempo brincando com o destinos das pessoas desse jeito.” As agulhas de tricô silenciaram quando as três trocaram olhares antes de gargalharem estrondosamente. Láquesis, que naquele momento tricotava, segurou com zelo os óculos enquanto balançava o corpo no esforço do riso.
“Você procura seu horóscopo diariamente, certo Zack?”, perguntou Átropos, com um tesoura de ferro em uma das mãos.
Ele abriu a boca para responder, mas virou o conteúdo de seu copo antes, fazendo uma careta. Com a garganta lubrificada, respondeu: “Não acredito em horóscopos. Acho que são textos genéricos produzidos por equações inseridas em algum programa de computador. São frases que se repetem n número de vezes em estruturas diferentes. É puro marketing para as massas, esperança servida em coluna, enquanto você se engana que a vida vai melhorar sem esforços.”
“Garotas, alguém aqui tem opiniões!”, disse novamente Átropos. As três riram com vontade. “Então não consegue acreditar que as constelações...”
“E a lua!”, interrompeu Láquesis ainda sorrindo entre as outras duas senhoras. Através das lentes, Zack viu retinas vivas, com um brilho mordaz, forte como o fogo que queimou as bruxas da Inglaterra.
“...e a lua, têm o poder de interferir com vidas aleatórias no nosso pequeno planeta perdido em uma das esperais desta galáxia?”
O bartender respondeu negativamente da cabeça.
“Faz bem, meu caro”. Láquesis pousou as agulhas e entregou os óculos para Átropos, junto com o início do fio, que estava no poder de Cloto. Ela estudou a o trabalho de suas irmãs e concordou com a cabeça, cortando uma das pontas sobressalentes. Zack não achou que importava qual ponta ela cortava, mas o bartender não poderia estar mais enganado.
Quanto a tesoura se fechou sobre a lã, a Jukebox disparou o inconfundível riff de abertura de Another One Bites the Dust, do Queen. Mesmo fora da tomada, as Jukebox espalhadas pelo mundo aparentemente tomavam liberdades quando as Parcas estavam presentes, ele concluiu. Zack não ficaria surpreso se a mesa de sinuca tivesse algum tipo de reflexão. Eis minha sanidade dando adeus, ele pensou.
Cloto disse, batucando a música com dedos longos: “O que é engraçado, Will... Vou te chamar de Will porque foi quando mais gostei de você, meu amigo. O que é mais engraçado, Will, é que nós escrevemos os horóscopos”. Zack não se lembrava de conhecer um Will ou de ter sido chamado de tal forma em um único momento de sua vida. A Parca prosseguiu: “Quem melhor para predizer seu dia do que as Parcas, hein? Não que fosse fazer qualquer diferença, o que vai acontecer, vai acontecer. Está traçado.”
“Mas o interessante”, Láquesis brincava com seu copo de whisky, “é que a pessoa para quem escrevemos o horóscopo nunca se preocupa em ler alguns conselhos sobre sua vida, mesmo vindo de nós.”
“De novo, isso não iria fazer diferença alguma. A mais pura verdade é que as vidas, o tempo que as pessoas têm, são oportunidades para realizarem feitos dos mais variados tipos enquanto esperam pela morte. É interessante ver quantas coisas acontecem na vida de uma pessoa para que ela não fique entediada até a linha ser cortada”, Átropos encerrou o assunto em um tom leve.
“Nas últimas três décadas escrevemos para você, nesse mesmo jornal, todo dia. Em trinta anos, você leu seu horóscopo, Will?” Antes que pudesse responder, Cloto continuou a falar: “Não, é claro que não! Vocês nunca escutam quem precisam escutar e quando precisam escutar. Seguem felizes, em plena escuridão, tateando pelo caminho, deixando para trás o que precisavam fazer.”
“Eu... eu não estou entendedo o que vocês estão dizendo. O horóscopo é para...”
“Para você, mortal”. Átropos leu novemente do jornal, desta vez usando os óculos: “Áries. Seus destino bate à porta e você precisa escutar o que a voz interior diz. Novos encontros irão questionar a realidade e você ficará louco até seu último dia, Zack.” Elas riram pela terceira vez. “Essa parte não está no jornal, mas o resto sim. Nós tentamos avisar.”
“Toda vida começa com um propósito...”, disse Cloto.
“Que deve ser realizado para continuar a trama de Todas as Coisas...”, Láquesis continuou em um tom grave.
“Encerrando apenas no último segundo de sua existência, e não antes. Nunca antes.” Átropos apontava a tesoura para o bartender. “Por que você desperdiçou o seu Fio nesse Clube, Zack? Durante toda sua vida você ignorou a canção que compúnhamos especialmente para seus ouvidos. Não percebe o mal que está fazendo, Zack?”
Ele não sabia o que responder. Sempre sentiu que estava no lugar errado, uma voz constante o lembrava disso. Mas ele havia sufocado o som irritante da voz que julgava suas decisões e erros com as necessidades supérfluas do mais irracional dentre os cotidianos, embriagando a parte de seu cérebro que tentava escutar os chamados com a fumaça intoxicante de centenas de charutos e cigarros que povoavam o ar do Clube. Um forte sentimento de culpa caiu sobre ele. Havia jogado fora o tempo que lhe fora dado.
“O que está feito, está feito. O desperdiçado agora se torna esgotado, caro Will. Seu nome já foi Homero, já assinou peças com a pena de Shakespeare, causou arrepios com o nome de Poe e ilusões no mundo de Tolkien”, Cloto proclamou.
“Escreva suas fantasia! Este é o seu mandamento desde sua primeira vida, quando andava no mundo mortal como Homero, Zack: escreva os sonhos e alucinações, torne a realidade terrível que assombra até mesmo os mais poderosos divinos em histórias de ficção, tire das abominações seu poder. Quando você criou as mais fortes histórias da humanidade até então, como Homero, possibilitou que os pesadelos fossem vencidos, as forças monstruosas perdem, seja o motivo qual for, grande parte de sua existência quando são fixadas na mente de milhares de pessoas como ficção, histórias de mentira. O poder deles se tornam mentira. Eles deixam de ser reais!” Láquesis segurava a mão do bartender, acariciando a pele com mãos macias, transmitindo calma e perdão.
“Uma moto que viaja no tempo, as idéias que escapam pelo buraco de um rosto, artefatos que amaldiçoam marinheiros, são manifestações de ameaças que vão além de sua compreensão e que teriam sido suprimidas se você as tivesse escrito, Zack, um perigo para a própria realidade. A fama, a riqueza, o sabor de conquista lhe foram concedidos quando firmamos o acordo. Em troca, você deveria permitir a existência... bem, existir! Tente se lembrar, Zack, lembre da Legião que assombra o mundo, dos terrores que se alimentam de crianças e se escondem no conforto da escuridão. Escute a música da próxima vez, Zack. E pelos deuses, escreva!” Segurando um longo fio de lã, mas solitário em sua quase totalidade, Átropos cortou uma das pontas.
Nos momentos finais, Zack não sentiu medo ou tristeza por deixar para trás o mundo em que vivia. Não se lembrou dos momentos importantes da vida sem ambições que levara até aquele segundo, os amores perdidos, as pequenas vitórias e grandes derrotas, as íncontáveis noites em claro tentando escrever histórias. Nos momentos finais, Zack se conectou com os fios que já foram seus, em outras vidas, em outros tempos. Ele se tornou William Shakespeare, Homero, Edgar Allan Poe e J. R. R. Tolkien. Ele viu o mundo pelos olhos de um xamã sem nome, que contava histórias de monstros gigantescos para as crianças e mulheres da tribo, histórias passadas oralmente de geração para geração, alertando para os perigos que espreitavam nas sombras; entendeu as coincidências do mundo na pele de um bardo que vagou pela Europa medieval; pintou máscaras teatrais com mãos de uma gueixa que viveu em um Japão antigo, quando os deuses da natureza atormentavam os humanos daquelas ilhas. O Escritor viveu e morreu incontáveis vezes naquele segundo final.
Zack não experimentou a vida se desprendendo de seu corpo. Ele criou dezenas... centenas de histórias simultâneas e ricas em detalhes, perigos reais travestidos na sedução da ficção, prontas para entreter gerações e conceder à realidade a estabilidade da qual necessitava.
Another one bites the dust, yeah. Another one bites the dust…
“Você nascerá novamente, Will…”, Cloto bebeu do copo que segurava, fazendo uma reverência ao corpo sem vida no chão do Clube.
“Escreverá com sucesso e criará uma infinidade de sonhos em suas histórias”, disse Láquesis e repetiu o ritual de sua irmã mais nova.
“O Freddie Mercury sempre foi meu cantor favorito”, constatou Átropos. As três – Nona, Décima e Morta; Cloto, Láquesis e Átropos; as Parcas, as Moiras, o Destino – gargalharam pela quarta vez naquele dia e beberam em homenagem ao Escritor.

2 comentários:

  1. Obrigada pela dedicatória Maurício, adorei! Mas posso te dizer uma coisa? QUEQUÉISSOCARA!!!!!!!! Que texto sensacional... Li numa respiração só, e ainda tenho um nó na garganta pelo final. Bom, agora é esperar por mais. BOA SORTE. Ana Eliza

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  2. "Toda vida começa com um propósito"...e vc ja encontrou o seu. Fantastico trabalho! Parabens!!!Meliza

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