sexta-feira, 1 de março de 2013

As Brumas do Farol 4 - Terras Distantes


Uma borboleta cruzou a plantação de trigo, voando contra as correntes de ar que a levaram para longe de seu caminho. Ela pousou, finalmente, à sombra de uma árvore e descansou as asas doloridas, quando pegou fogo e desapareceu, deixando para trás apenas a fumaça que subiu até as folhas da árvore; a mínima quantidade de cinzas que ela produziu, misturou-se nas raízes e ela se tornou para sempre parte daquela árvore. Era um final digno para uma borboleta: uma vida frágil e incerta que se vê, de repente, parte de uma existência perseverante e resistente. Não fosse, claro, o caso do pequeno inseto ter sofrido combustão instantânea apenas parte de uma mentira. Também é interessante notar que a borboleta, o fogo, a fumaça e as cinzas são parte de um grande sonho e que por isso não têm qualquer matéria. A borboleta não existia antes da plantação de trigo que cruzava - que por sua vez passou a existir entre uma pulsação e outra - e cessou de existir logo depois. Foi uma vida breve, é bem verdade, mas uma vida que teve algum significado.
A borboleta, Jimmy assistiu de longe, simplesmente se consumiu em uma minúscula pira e passou a fazer parte da árvore. O garoto não sabia como sabia disso, mas tinha certeza de que a borboleta era a árvore, como se o vegetal não estivesse naquele exato lugar antes. Ou depois, se é que isso tem alguma importância. Eles, o garoto, o velho e a árvore que era uma borboleta - ou borboleta que era uma árvore, ele se perguntou - estavam em um lugar estranho. Quatro luas estavam espalhadas no céu, mas nenhuma estrela se exibia para olhares divagantes; uma raposa estava sentada em uma mesa de pedra, servindo chá em três xícaras, uma para sua própria garganta, outra para a boneca de porcelana com olhos heterocromáticos e a última para Margaret Thatcher, que usava uma camiseta rasgado com o símbolo do Metallica. A mesa em que estavam sentadas ficava no centro da Stonehenge e belas mulheres celtas dançavam nuas para as luas que antecediam o solstício de verão.
Na sombra da árvore, uma sombra que se estendia como duas enormes asas, o velho estava sentado na posição na qual Jimmy o encontrou primeiramente, fazendo malabarismo com três ovos de fênix. “Ora, ora. Eu podia jurar que você era mais alto.”
O garoto olhou para suas próprias mãos e viu pele, simples e desinteressante pele humana e não o vazio que mudava constantemente de imagens; longe das linhas que limitavam seu corpo, como as bordas de uma televisão. Naquele lugar estranho, Jimmy voltara a ser normal. “Onde estamos?”, ele tentou não se incomodar com a textura das mãos.
“Nas Terras Distantes, garoto. Você não conhece este lugar? Acreditava que você conheceria melhor a própria natureza.”
Jimmy olhou para as luas e para os reflexos em alguns lagos no horizonte; Notou que Margaret Thatcher bebia chá com açúcar de beterraba e que a Raposa tentaria devorá-la mais tarde, enquanto a boneca de olhos com cores diferentes corria desesperada para salva suas pernas de mentira. “Não, na verdade. Sim. Eu conheço e desconheço onde estamos, velho. Possuo memórias destas… Terras Distantes… mas sei que é a primeira vez que piso em suas gramas. Como chegamos até aqui?”, ele perguntou depois de se sentar ao lado do homem.
“Ninguém chega às Terras Distantes, meu jovem, você apenas está. E isso é tudo. É impossível saber de onde você veio ou qual seu destino, partindo daqui. Mapas não têm utilidade aqui, note bem. Uma mapa não tem propósito se ele tenta representar um lugar em contínua mutação, não é?”
Ele concordou com a cabeça e passou as mãos sobre os joelhos, tentando se acostumar às terminações nervosas uma vez mais. “Estou sonhando?”
O velho deixou cair os ovos na grama e furou um, o maior deles, e sugou seu conteúdo. Jimmy assistiu, estupefato, a fumaça saindo das narinas do velho. “Ovos de fênix sempre estão quentes, são ótimos. Você não esta sonhando, pequeno, não quando estamos no lugar onde todos os sonhos se encontram.” O garoto abriu a boca para fazer outra pergunta, mas o velho o cortou: “Chega de papear. Vocês crianças e as infinitas perguntas! Não é seguro ficar muito tempo nas Terras Distantes, ou podemos nunca mais achar o caminho para casa. Eu quero seu nome, agora mais do que nunca, e acho que foi um ato nobre se arriscar para salvar seus colegas; sua busca precisa de minha ponte. Eu quero algo seu, você quer algo meu. Vamos terminar logo com isso e podemos voltar para o Bosque, tenho algumas tarefas importantes para você quando voltarmos com seu nome em um papel dentro da minha bolsa. Qual será a nossa decisão?”
Jimmy pensou pela primeira vez sobre qual seria o jogo que disputariam. Ele queria sair daquele lugar, principalmente agora que sabia que poderia ficar perdido em um lugar impossível de ser colocado em um mapa, e sairia de lá apenas com a ponte nas mãos e não antes disso. Não tinha certeza para quê, afinal, precisavam do Fogo, mas sabia que era de extrema importância chegar ao Farol e sair do Bosque o quanto antes. De alguma forma, apenas eles poderiam levar para aquele mundo em White City o Fogo que estava no topo do Farol. Como e porquê, fugiam de suas preocupações. “Meu jogo predileto…”, pensou nas aulas de educação física e a resposta veio natural, “é queimada.”
“Queimada?”, o velho coçou o longo bigode.
Jimmy explicou as regras do jogo infantil e o velho concordou em iniciar a aposta. O menino se levantou e caminhou alguns metros quando seu oponente pediu para que ele parasse. “Não vá mais longe. Devemos ficar parados e jogar essa Queimada sentados, sem nos mover. Movimentos bruscos podem te levar para outra parte das Terras Distantes, caro. Se eu estiver longe e as terras mudarem de lugar… bom, seria um jogo sem conclusão, em outras palavras. Qual o seu nome, rapaz?”, arriscou o velho, com um tom de voz suave e natural.
“Qual o seu nome, velho?”
“Bem jogado. Você pode criar qualquer coisa que quiser, desde que ela exista em sonhos quando você a imaginar. O primeiro a ser encostado com qualquer coisa, perde. Pronto?”
“Sentados então?”, ele cruzou as penas na grama. O orvalho estava gelado e o vento sussurrava em seus ouvidos palavras em uma língua desconhecida. Ele imaginou uma besta e a arma medieval apareceu do seu lado, feita de uma madeira escura e detalhada com crânios e chifres. Jimmy carregou a arma com sua mente e disparou contra o velho. O primeiro movimento era dele.
Uma muralha surgiu entre eles e a flecha quebrou em uma pedra, sem causar qualquer dano na imaginação do velho. “Não é um jogo disputado com bolas de borracha?”
“Quem sonharia com uma bola de borracha?”, ele perguntou, já colocando outra flecha na besta. “A imaginação é o limite, velho. Pretendo usá-la.”
O velho sorriu. “Que vença o mais criativo”, disse antes de atacar o garoto com uma muralha de fogo. As chamas surgiram do nada, incendiando as pedras usadas para se proteger do virote laçado por Jimmy, em grandes labaredas que venciam terreno rapidamente, devorando tudo em seu caminho; Jimmy perderia em poucos segundos.
De repente, uma fileira com quinze elefantes surgiu entre ele e as chamas, cada um dos paquidermes com uma piscina à frente. Em perfeita harmonia, os animais encheram as trombas com água fresca e lutaram contra o fogo. Alguns dos elefantes tiveram graves queimaduras, mas assim que o fogo estava extinto, eles desapareceram, dando fim ao odor desagradável de carne queimada. Sem dar tempo para o velho respirar, Jimmy encontrou um exército de minúsculas formigas que se moviam com incrível velocidade. São milhares de formigas. Uma, ao menos uma, tem de encostar no velho! Assim estarei livre para voltar para eles com a ponte em mãos. Por um segundo, pensou como seria estranho carregar uma ponte nas mãos, mas cortou o devaneio e se concentrou no jogo.
O velho, por sua vez, cercou seu perímetro com mel e teias de aranha, segurando os indesejados invasores. Incontáveis formigas lutavam para se soltar das teias de aranha e as que conseguiam, encontravam-se nadando no mel pegajoso. Ele sorriu: estava apenas se aquecendo. Criou, com um esforço menor do que o de fechar os olhos e bocejar profundamente, um rio que corria, largo e forte, como o que bloqueava o caminho dos garotos. As águas lodosas subiram em um piscar de olhos e uma verdadeira enchente tomou conta das Terras Distantes, afogando uma legião de sonhos e pesadelos. Margaret Thatcher xingou enquanto se afogava e a Raposa aproveitou para mergulhar e abocanhar uma das pernas da mulher; a árvore atrás do velho bateu asas feitas com folhas e galhos e levantou vôo para outro sonho. Jimmy viu, com horror, a água subindo e tentou pensar com astúcia, pois apenas uma gota do rio em sua pele significaria derrota e teria de dizer o nome para o velho; não podia se levantar e correr, não queria se perder para sempre entre sonhos. Criar uma colina também não estava dentro das opções: movimentar as Terras Distantes era arriscar modificar toda aquela geografia. Foi quando se lembrou do aquário que tinha quando era menor, com pedras verdes e dois peixes dourados. Os peixes não duraram por mais de três meses, é isso que eles faziam, na opinião do garoto: esperam até você criar laços afetivos apenas para morrer no dia seguinte, numa espécie de piada de mal gosto. Sorriu com o canto da boca e conseguiu ganhar um pouco mais de tempo. De um segundo para o outro, Jimmy estava dentro de um aquário perfeitamente selado. Nenhuma gota de água chegaria até ele. Pôde ver, através do vidro, as formigas subindo com a água, algumas ainda presas no mel ou nas teias de aranha. Estava claro qual seria seu próximo movimento.
Calmo, esperando até que estivesse quase completamente submerso, o velho respirou profundamente e encheu os pulmões de ar. Depois, lembrou onde estava e simplesmente criou guelras. Poderia ter criado algum mecanismo artificial de acumulação e disposição de ar, mas o funcionamento das guelras era algo comum para ele e entender o que se estava criando era algo importante quando se tratava de sonhos. Sonhos eram criaturas temperamentais e com um senso de humor estranho. Uma pessoa perdia o controle dos próprios sonhos com facilidade e eles passavam a assombrar seu leito ou a queimar as horas do dia, como um oásis impossível de ser alcançado, uma promessa distante que chama como o canto de uma sereia. Quando inalou a água escura, abriu os olhos. Estava debaixo da água e o garoto permanecia no mesmo lugar, seguro por uma redoma de vidro. Uma sombra crescia entre eles e o velho lembraria mais tarde, ainda molhado pela água sonhada, de pensar se nuvens podiam rolar por baixa da água. Quando ele percebeu as centenas de piranhas que nadavam em sua direção, agiu rápido e tomou emprestado exatos oito mil tubarões, que infestaram as águas do rio, devastando acidentalmente uma pequena cultura de bactérias aquáticas que haviam alcançado o tipo inteligente de vida.
Curiosamente, as bactérias haviam formado uma sociedade firmemente calcada em um ser iluminado que viviam num aquário de vidro acima delas, impossível de alcançar ou ser visto. Elas não tinham como provar sua existência e um longo debate entre filósofos tomou lugar nas maiores universidades daquela cultura, disputas entre líderes dos Amigos do Aquário e cientistas unicelulares aconteceram nos diferentes setores da sociedade organizada pelas bactérias. Quando um dos tubarões se chocou contra a grama molhada tentando abocanhar uma piranha, as bactérias deixaram de existir, passando a viajar pelo mundo que conheciam nas costas de um tubarão divino. Mais tarde, enquanto veneravam o Grande Tubarão em que viviam, elas achariam graça de toda a idéia de um ser dentro do aquário celestial que zelava por elas.
Enquanto isso, tudo que Jimmy pensava era que tubarões são animais marinhos e que não podiam viver em água doce. “O rio tem água salgada”, o velho explicou e o rio passou a ter água salgada. Engraçado como são as leis deste lugar, o jovem pensou e fez a água ferver. Bolhas subiram enquanto a água atingia temperaturas inacreditáveis, matando alguns tubarões e piranhas, fazendo sumir alguns outros. Vapor subia para os céus e formavam negras nuvens sobre eles. Esta na hora de acabar com essa brincadeira, já passamos tempo demais aqui e mudamos muita coisa. Jimmy podia sentir a impaciência do lugar, uma vontade de se transformar e separar os dois humanos que faziam caos nas Terras Distantes. O garoto imaginou um campo de dentes-de-leão que os cercava por quilômetros e quilômetros. As plantas se abriram e soltaram suas sementes. Um mar branco tomou conta da visão do garoto. Mas era preciso mais para vencer aquela disputa, era necessário ter um plano de apoio se quisesse encostar no velho. Ao mesmo tempo, uma forte tempestade começou a despencar das nuvens que pairavam sobre eles. Violentos trovões tremiam as Terras Distantes e Jimmy se esforçava para manter a situação sobre controle, ou logo provocariam mudanças naquele lugar e podia se considerar um morador permanente da terra dos sonhos.
Um simples estalar de dedos e o velho se viu novamente seguro. O vento que soprava para o leste, mudou repentinamente de direção e soprou com força, empurrando as leves sementes de dentes-de-leão e as gotas de água, que por poucos milímetros erraram a pele do velho. Um relâmpago criado pelo inimigo cruzou o horizonte e queimou o vidro do aquário de Jimmy, provocando largas rachaduras. Ataque duplo, o velho pensou, sentindo uma pontada de raiva pela primeira vez em muito tempo, está na hora de acabar com a brincadeira, garoto. Você está jogando sério agora. Hora do ataque final.
Jimmy assistiu, congelado pela natureza ridícula da situação, galinhas chegando perto do vidro. Elas pulavam dentro de canhões e eram disparadas contra ele. Dezenas, centenas de galinhas com pequenos capacetes vermelhos, algumas com estrelas amarelas pintadas na lateral. Jimmy imaginou um time de baseball e uma dezena de jogadores começaram a rebater as galinhas com tacos de madeira, explodindo-as em uma massa de sangue e penas. Uma delas, no entanto passou pelo defensor e se espatifou no vidro fragilizado, fazendo com que o aquário se desmontasse em um universo de cacos. Jimmy, não mais protegido pelo vidro, se sentiu pelado.
Vinte galinhas foram lançadas de uma só vez e Jimmy multiplicou os rebatedores até igualar o número de aves no ar. O velho sorriu com malícia e viu seu plano funcionar. Poucos centímetros antes de entrarem na área de alcance dos jogadores de Jimmy, as galinhas apertaram um botão vermelho escondido em seus capacetes e se despediram da breve vida que tiveram, explodindo em pleno ar, tomando a área com uma confusão de ossos, sangue, carne e penas que percorriam um percurso imprevisível.
O garoto conjurou os ventos fortes usados pelo velho.
Ziguezagueando, no que pareceu uma eternidade, uma das penas ignorou as fortes rajadas de vento e pousou com delicadeza no cabelo de Jimmy. Uma corneta soou, anunciando o final do jogo e os rebatedores se retiraram de cabeça baixa, derrotados.
O velho se levantou em um único salto e apareceu na frente do garoto, quase encostando seu nariz no dele. Ele sorria com todos os dentes. “O seu nome, rapaz. Quero seu nome, meu prêmio. Quero seu nome, escravo!” Ele segurava a ponte em uma das mãos enquanto dançava de alegria, chutando pedaços de galinhas nos jogadores de baseball.
Escravo? Eu… eu perdi? Não posso entregar meu nome para… eu não quero ter de servir… lágrimas escorriam, quentes e humilhantes, pelo rosto do garoto. Jimmy esticou os braços em desespero e procurou pela única ajuda que conseguiu imaginar. Suas mãos quebraram a barreira dos sonhos e ele agarrou sua última esperança, puxando para as Terras Distantes um amontoado de penas negras.

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