Quando o cachorro vira lata do velho Johnson foi encontrado enforcado em uma das árvores da pequena cidade, ele retirou da parede o velho trabuco de seu avô e foi a casa mais próxima, a procura de pólvora para armá-lo.
Fundador da cidade de Maria das Graças, o velho nunca teve nenhum inimigo. Há muito tempo tinha se afastado da parte americana da família que fincou-se no país como escravocratas ricos na época da colonização. A única herança que mantinha de sua origem, além da arma, era um sotaque puxado que os quase setenta anos de brasilidade não retiraram de sua língua.
Dizem que Johnson saiu de casa com as mesmas roupas surradas que usava cotidianamente. Com a arma empunhada na mão direita, dizia aos moradores que pegaria o culpado, soltando palavras agressivas a, mais ou menos, sete ou seis palavras.
Conhecido por ser um homem fechado, o ancião chorou ajoelhado ao ver a figura canina com a corda de varal no pescoço, repleta de nós que não conhecia e levemente movimentando-se com o vento.
Enquanto curiosos passavam no local, um dos moradores acionou a polícia local que, além de dar um leve assobio ao ver o cão e fazer anotações, não pode fazer muito até dias depois quando Johnson, sujo e com marcas de sangue na roupa, se entregou a polícia após matar o jovem que matara seu animal.
Com o falecimento da esposa, o velho tornou-se recluso da própria cidade que fundou. O que aumentava o status de figura lendária em Maria das Graças. Contam que o cão foi encontrado dias depois do falecimento da esposa. De luto, de um naco de lanche ao animal e se apegou.
Durante aproximadamente seis anos aquele cachorro foi o companheiro de Johnson. Ele tinha certeza de que seria enterrado pelo animal, de alguma maneira. Mas estava amarrado à arvore enquanto, em prantos, o velho lembrava que a ração deixada no pequeno prato de metal pela manhã estava intocada.
Johnson não hesitou em se entregar a polícia. Detalhou ao delegado os pormenores de sua ação que se consistiu em, ao falhar da pólvora no trabuco, virar o instrumento ao contrário e, com a força quase septuagenária de alguém que perde sua única ligação sensível com outro ser, arremeter algumas vezes, que não soube precisar, na cabeça de Jonas Bezerra, um dos poucos jovens do local que, por ter ido a capital três vezes, sentia-se um cosmopolita.
Jonas nunca foi ouvido pelo delegado. Dissera ao velho, minutos antes de morrer, que tentou expor sua valentia aos amigos. A supremacia descomunal perante outro animal, o cão, dócil e indefeso. Conforme realizava a ação, o grupo de quatro amigos sentiu-se acuado, principalmente quando, ainda com as cordas nas mãos, ele ameaçou o menor do bando, enlaçando o fio em seu pescoço.
A morte do cachorro seguida pela de Jonas foi o primeiro e segundo escândalo que a cidade assistiu. Foi a passagem do deslumbramento da inocência para a consciência de que todo ser humano está predisposto a fazer o mal, bem como, por amor aos seus entes, capazes de romper as leis mais cristãs. O cachorro, Jonas e o velho eram início, meio e fim de um mesmo ciclo. Se tornaram, com o passar do tempo, não só uma espécie de história lendária, e o princípio violento da cidade, como uma fábula moral que ia além da idéia agressão que gera agressão.
Embora tentassem os conservadores, o fundador da cidade nunca conseguiu ser odiado. Mas também não fora perdoado. Em sua homenagem, Maria das Graças ganhou no século seguinte o seu nome. Registrado por um prefeito que, envergonhado de não falar inglês e não saber soletrar o nome Johnson, batizou a cidade como Americano, colocando a foto do velho, uma das únicas encontradas em sua casa, em uma ampliação mal feita na sede da prefeitura.
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