sexta-feira, 29 de março de 2013

O Garoto que Falava com Pontes


Era uma vez - pois só assim tal história poderia começar - um garoto que falava com pontes. Ele era um garoto normal, como esses que você encontra na rua enquanto vai para a escola, com os cabelos despenteados e uma expressão de puro sono no rosto; a diferença era justamente sua habilidade de se comunicar com pontes. Uma diferença importante, diriam alguns.
Não conseguia, curiosamente, dialogar com casas, prédios, muros ou postes: falava com pontes e pontes apenas.
“Olá”, disse ele, parado diante de uma enorme ponte vermelha.
“Olá garoto”, a ponte respondeu, surpresa por estar consciente da própria voz. “Atravessar-me-á hoje?”, ela perguntava com a mesóclise.
“Sim, se não for muito incômodo”, ele respondeu, sem ao menos procurar usar uma simples ênclise.
“Não será incômodo algum, pequeno, afinal é para isso que estou aqui. Para onde você vai, se me permite inquisitar.”
“Visitar minha avó, minha mãe disse que precisamos vê-la algumas vezes por ano, pelo menos. Elas brigam muito, mas acho que precisamos fazer o que precisamos fazer.”
A ponte permaneceu no lugar, balançando as antigas armações de concreto de forma quase imperceptível. “Sim, você deve fazê-lo. É importante manter ligações com as outras pessoas. Sua mãe pode ter problemas com a mãe dela… mas, bem, ainda assim, são famílias. Duzentos anos fixada neste lugar e é duas coisas eu aprendi de mais seguro: laços de família devem ser reforçados sempre, primeiro. E, mais importante, vocês humanos cruzam uma ponte quando chegam nela.”
Depois que o carro voltou a funcionar o garoto seguiu viagem, conversando com a ponte por todo o tempo que permaneceu nela. Gostava daquela ponte, ela era monumental, com os cabos de aço recém pintados em um vermelho chamativo, antiga e sábia. Usava sinônimos com pontes em demasia, era bem verdade, e cansava um pouco com suas analogias de cruzar caminhos e chegar de um ponto para outro, mas foi uma conversa agradável, ao contrário da visita no asilo. Cada ponte tinha uma voz diferente. As pontes maiores tinham vozes grossas e imponentes, algumas eram masculinas e teimosas, outras demonstravam agressiva arrogância por seu tamanho e importante existência para o comércio local. Às pontes mais arrogantes, ele nada dizia, ignorando seus gritos egocêntricos que morriam no nada. Havia pontes de madeira, com uma voz forte e batida, cujas palavras saíam rápidas e atropeladas, em uma cadência difícil de entender; as pontes de pedra tinham um falar pesado e praticamente jogavam palavras em latim, narrando sobre a época dos grandiosos romanos que a criaram.
Algumas dessas pontes - principalmente as de pedra - tinham um profundo conhecimento de história local, enquanto outras começavam a questionar porque existiam e quanto tempo mais ficariam no mesmo lugar, servindo apenas de passagem para as pessoas, cansadas dos rios e vales que passavam por baixo de suas grades de metal. Outras gostavam de liderar a conversa de assunto para assunto, aproveitando cada ponte que surgia na conversa.
Até o dia em que ele corria pela rua em que morava, procurando por um lugar para se esconder enquanto um dos colegas gritava em contagem regressiva. O sol parecia eternamente fixado no céu e as longas horas que tinham pela frente eram promissoras. Correu ate o fim da rua e se jogou atrás de um arbusto que dava entrada para o parque do bairro. “Psiu, ei!” Sentiu as costas arquearem com o susto. “Ah! Eu ouvi isso, eu sei que você pode me entender.” Olhou para trás e viu uma construção de madeira, pouco mais que algumas tábuas presas umas às outras com pregos enferrujados e um parapeito de um dos lados. Estreita e curta, a ponte servia de passagem para uma falha no terreno do parque, cobrindo um buraco profundo e escuro que se prolongava por algumas centenas de metros. “Garoto, tire esse olhar estúpido da cara e ande até aqui”, era a primeira vez que encontrava aquela ponte e olhava desconfiado para ela.
“Eu… eu não posso, estou me escondendo,” respondeu antes de se virar para a rua, permanecendo agachado em seu esconderijo.
“Não seja bobo. Eu tenho um segredo para contar. Mas preciso que você venha até aqui, nunca se sabe quem mais estará ouvindo.”
O garoto vacilou por um momento, mas levantou-se e andou lentamente até a ponte. “Conte-me,” disse de forma ríspida - desta vez com uma ênclise.
“Olhe lá, para onde levo.” Ele olhou, parecia apenas um morro simples, com uma trilha apagada pelo tempo. “Siga essa trilha e você encontrará o lugar mais misterioso que existe, eu juro.”
A trilha desaparecia em uma curva fechada, cercada por árvores e arbustos baixos. Parecia-lhe uma trilha comum, que levava para o estacionamento ou para a área de recreação e nunca o caminho para o lugar mais misterioso da Terra.
“Estou brincando com meus amigos… não posso ir para outro lugar, eles ficarão preocupados.”
“Não diga besteiras! Você vai até lá, da uma espiadinha e volta, bem rápido. Quase nunca alguém passa por aqui… e uma ponte só pode ser feliz se ela serve como caminho, garoto. E, pelos deuses, que caminho eu levo! Escute só, vá até lá. Uma olhada rápida e pronto. O máximo que vai acontecer é que eles vão te chamar de mestre do esconde-esconde. Imagine, mestre do esconde-esconde! E depois você poderá impressionar todos seus amigos contando o que viu por lá.”
Era um título de honra, ele pensou. Mestre do disfarce e da camuflagem! E poder se gabar por ter visto algo que nenhum deles jamais vira… Mal podia conter a curiosidade que crescia em seu âmago, girando e gritando como uma sirene. Mas a ponte parecia tão frágil…
“Você não vai dar uma de escorpião para cima de mim, não é?”
“Escorpião? Você não diz coisa com coisa, moleque,” a ponte respondeu com um tom de impaciência.
“É, escorpião, como na fábula do escorpião que precisava atravessar o rio. Ele andou por dias, procurando por passagem, mas não encontrou ponte ou tronco caido que o ajudasse a chegar até a outra margem. Encontrou apenas um sapo. ‘Ajude-me, sapo’, pediu o escorpião, ‘pois preciso atravessar o rio e só você pode me levar.’ ‘Não, pois você é um escorpião e no meio do caminho me envenenará,’ recusou o sapo, que bem conhecia a natureza do escorpião. ‘Por que faria tal atrocidade? Eu morreria com você, sapo.’ O sapo, depois de muito refletir, enfim concordou com o escorpião, mas antes o fez prometer que não o atacaria no meio do caminho. Quando chegaram no meio do rio, o sapo nadando com dificuldade para se manter acima da água enquanto equilibrava o escorpião em seu corpo, sentiu uma forte ferroada nas costa e percebeu que veneno corria pelos seus órgãos. ‘Não! Você acabou de nos matar, escorpião estúpido! Por que fez isso?’ O escorpião olhou com sinceridade para o sapo e respondeu: ‘Ora, sou um escorpião, o que mais faria?’ Fim.” O garoto recitou a fábula de forma apressada, sem fazer pausa entre as frases. “Você não vai dar uma de escorpião, não é?” Podia escutar os outros garotos rindo e correndo.
A ponte permaneceu em silêncio e rangeu uma das tábuas. “Claro que não! Eu sirvo como ponte e não como armadilha. Eu senti que você podia me escutar e queria que pudesse ir até o fim da trilha, pois é de fato o lugar mais misterioso desse mundo.”
Ele colocou um dedo no queixo e contemplou a trilha apertada. “Tudo bem, eu vou.”
“Ótimo! Ande logo! Ande logo!”
O garoto que falava com pontes pisou na velha ponte de madeira. Deu um passo e ela tremeu inteira, derrubando pó no buraco profundo que permanecia abaixo - uma boca faminta que que engolia sem piedade os tolos que brincavam com a sorte. O garoto deu outro passo e a ponte gemeu ainda mais.
Deu outro passo, pensando na fábula do sapo e do escorpião.
E outro…
E outro…
E nada mais.

Um comentário:

  1. Nossa Mau que texto bom. Muito, muito bom e criativo. Adorei. Ana Eliza.

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