Zack destrancou a porta. Queria ter um dia comum, como as
pessoas normais os têm... normal. Tudo o que desejava era servir bebidas para
estranhos, provavelmente estragando alguns meses de sobriedade, arruinando
vidas aleatórias um copo por vez. Tirou da tomada a Jukebox, que protestou com
um inaudível som mecânico e colocou a placa de fora de serviço, a maior mentira da semana; quardou os tacos da
mesa de bilhar no depósito e trancou a pequena gaveta com a bolas, deixando
para fora apenas a bola branca. A branca nunca coubera na gaveta e aquela não
seria a primeira vez que conseguiria, não queria que fosse. Tudo seria normal
naquele dia. “Estou me fodendo para o que você pensa”, ele disse para o móvel e
deu as costas para o tecido verde e os pedaços azuis de giz.
Uma hora e meia depois
o lugar contava com dezoito clientes. Os dois garçons que trabalhavam para ele
corriam de mesa em mesa, suando como dois porcos ao sol. No balcão, três
senhoras tricotavam e, apesar do barulho grotesco que faziam quando limpavam a
garganta, Zack as ignorava: nada de louco para ele. Sentados no centro exato do
balcão, de frente para as prateleiras com as melhores bebidas da casa, uma
mulher loira, vestida com um sobretudo cinza, era assediada por um homem alto,
queixo quadrado e cabelos caindo sobre os olhos. Ela era linda e ele, charmoso.
Formavam um belo casal. A loira sorria por causa dos sussurros em seu ouvido e
enrubescia com as mãos que acariciava suavemente suas costas e coxas. Zack
notou então que ela tinha uma aliança na mão esquerda e o homem narrava alguma
história barata, retirada provavelmente da biografia de algum dos Keiths, o
Richard ou o Moon, enquanto mostrava uma sucessão de marcadores de página.
O bartender andou
até eles, afastou-o violentamente do banco alto e quase o derrubou, não fosse a
prontidão que o salvou. “Ei, cuidado meu chapa!”, ele protestou. Zack puxou o
bloco dos marcadores da mão dele e os bateu na testa repleta de cabelos.
“Hoje não”, ele
disse e se virou para a mulher. “Lorota, moça. São histórias inventadas ou
retiradas de algum livro ruim que só ele leu. Esses marcadores são da livraria
na esquina, veja só os lançamentos anunciados.” A mulher dirigiu um olhar
congelante para os dois e se retirou, deixando duas notas dentro do copo cheio
de cerveja. O homem a seguiu, parando na porta apenas para mostrar o dedo do
meio para Zack. Os marcadores caíram sonoramente no lixo. Ótimo, pensou satisfeito, história
evitada.
Costumeiramente
cheio de conversa e curiosidade, Zack passou a maior parte do início daquela
noite se esquivando dos clientes que tinham escrito no rosto o quanto queriam
bater papo e contar algo extraordinário que havia acontecido naquela manhã ou
chorar suas dores, quem sabe. Bêbados tinham a mania de pensar que os
bartenders espalhados pelo mundo não têm problemas pessoais, aliás, eles
provavelmente não têm vida: desaparecem assim que você pisa fora do
estabelecimento. Alguns utilizavam o pobre Zack como psicólogo, a maioria como
padre. As histórias que ouviu, as confissões banais e os crimes sussurrados
sobre a madeira do balcão... ele não queria saber, não iria escutá-los. As três
velhas que tricotavam alternaram os óculos e torceram a boca.
“Oi! A Jukebox está
quebrada?”, perguntou uma voz no fundo. Não respondeu, andou até um homem
sentado em um canto esquero e perguntou o que ele gostaria de beber ou comer. O
homem vestia um largo chapéu, muito maior do que sua cabeça e a peça, que
deveria ficar comicamente caída sobre as orelhas estava encaixada quase
perfeitamente. Ele pediu um whiskey e o bartender viu um pequeno tentáculo
verde passando sorrateiramente diante dos olhos do homem, retornando em seguida
para dentro do chapéu.
“Ah não, não hoje”,
disse Zack e começou a andar até o outro lado do balcão, quando uma mulher
apontou para o relógio e disse que havia algo estranho. O ponteiro vermelho
andava para trás, completando um ciclo anti-horário. Sem pensar duas vezes, ele
alcançou o bastão de baseball que guardava para defesa e esmagou o velho
relógio na parede. Cacos de vidro caíram por cima dele e sobre o chão sujo.
Duas molas caíram em seu pé e rolaram para baixo do balcão.
Entregou para um
dos empregados suados o bastão e a chave do clube e saiu pela porta, sem dizer
nada. Andou pelas ruas da cidade, uma fina garoa caía do céu escuro e rajadas
de vento dificultaram suas tentativas de acender um cigarro. Parecia uma cidade
fantasma, sem barulhos de carro freiando bruscamente, buzinas e xingamentos
gritados; nada de gatos cruzando em telhas quebradas; sem prostitutas
iluminadas pela luz triste dos postes; sem uma lua prateada percorrendo a
noite. Aquele era um lugar estranh/amente vazio. Zack errou pelas ruas
desconhecidas, o cigarro encharcado apagado na boca, a roupa molhada, o cabelo
rebelde grudado no rosto e os pés gelados. Andou até os dedos dos pés gritarem
de dor, perdeu-se no labirinto da grande cidade e ficou contente. Um lugar estranho,
novo, fresco. A ar gelado, purificado pela chuva, entrava nos pulmões cansados
e dava-lhe uma estranha energia. Parecia que estava em outro estado, em outro
país. Talvez em outra realidade,
brincou sua mente. Não, nada fora do
comum: apenas um bairro que não conheço.
Zack procurou por
abrigo em um bar. Uma música animada tocava e ele recebeu, com felicidade, o
calor abafado e carregado com o odor de suor e cerveja. Sentiu os músculos
relaxarem aos poucos. Sentou em uma mesa e, momentos depois, uma mulher o
abordou, caderneta na mão. Ela era quase linda, difícil de descrever, havia
algo de metafísico em sua própria existência, como se os olhos enxergassem
cores nunca antes detectadas. “Meu nome é Zack”, disse sem pensar, “e quero uma
cerveja. Qualquer uma.”
“Meu nome é Joana,
meu bem, e eu nunca perguntei pelo seu.”
Naquele instante
ele soube que teria o que desejava. Estava fora de seu território, percebeu,
longe das coisas que poderiam tornar uma noite tranquila em acontecimentos em
uma cadeia desconexa e fantasiosa. Qualquer anomalia era por conta da mulher.
Ela era encarregada de matar os dragões da região, por assim dizer.
“O que está
tocando?”, Zack perguntou, olhando para a Jukebox estranhamente familiar.
“É bossa”, ela
respondeu e se retirou para pegar a cerveja.
Encostou a costa
molhada na cadeira e sorriu como um bobo até a mulher chegar com a bebida. “Quer
um cigarro? O seu está mais molhado que uma ninfomaníaca durante um filme do
Lars von Trier.”
“Lars von Trier é
um merda”, ele respondeu. Mordeu o filtro do cigarro molhado e sentiu o gosto
quase nulo da água se misturar à cerveja e ao tabaco. “Estou bem assim,
obrigado.”
Não houve história
para Zack. Naquela noite ele bebeu cerveja e se imaginou apalpando os seios de
Joana. Era apenas mais um cliente em uma noite comum.
Como me faz bem as histórias de Zack, principalmente descritas assim, de um modo descontraído. Muito bom. Tava com saudades de ler Maurício Ieiri. Ana Eliza
ResponderExcluirUm dia nao Tao normal assim... ;))) Mel
ResponderExcluir"Lars von Trier é um merda" Maurício Ieiri em texto que desencadeou um protesto em massa de fás do dogma 95.
ResponderExcluir