sexta-feira, 7 de setembro de 2012

A Ampulheta de Caronte


Charles Grunn entrou no quarto abafado. Estava terrivelmente quente naquele cômodo e o cheiro do idoso se acumulava em várias camadas: suor, urina e fezes. Mas havia outra essência, sutil, escondida pelos odores corporais, um cheiro que apenas Charles podia sentir. Andou em linha reta até a grande janela e puxou, violentamente, as cortinas laterais, deixando o sol entrar; em seguida, abriu o vidro e respirou aliviado a brisa verpertina. A luz invadiu o quarto, mostrando a grande cama central, envolta por bacias cheias de fluídos do pobre homem. Do velho, podia-se ver apenas a cabeça, os cabelos ralos, brancos e quebradiços, caidos sobre os olhos fechados. A barba crescia selvagem por toda a bochecha e pescoço e duas covas profundas marcavam as laterais. Ele estava coberto por uma colcha pesada causando ondas de suor. Charles foi até o velho e o descobriu. “Assim vocês irão matá-lo”, disse sem paciência, notando os ossos protuberantes no corpo fino. “Saiam”, disse imperativamente, sem olhar para trás. Sabia que suas ordens seriam prontamente obedecidas, principalmente pelo que estava prestes a realizar.
Era um homem de estatura média e um rosto comum, olhos um pouco baixos, talvez. Usava roupas que poderiam ter saído de um armário em 1930, com ternos riscados, uma rosa vermelha saltando por um dos bolsos e um colete marfim por baixo da primeira camada que vestia. Grunn não era um homem que parecia estar deslocado em 2012, não: o tempo parecia deslocado ao seu redor, como se o mundo inteiro fosse anacrônico por causa da existência de um homem de feições simples e olhos caídos. Charles Grunn possuía uma habilidade extraordinário o suficiente para ser uma peça peculiar no Grande Plano do Universo, gostava de pensar. Uma realidade anacrônica era um preço relativamente baixo pelo que era capaz de fazer. Algumas pessoas nascem para escrever histórias apaixonadas e ricas em ideologias, pontuadas em analogias sociais e políticas aqui e ali; são pessoas que mudam o modo de pensar dos homens e causam revoluções no sentido de um mundo mais justo; outros vêm a este mundo para liderar seus iguais até batalhas sanguinolentas e realizar massacres em nome de um ideal; outros apenas podem encostar os dedos na costas das mãos. Charles, único dentro de suas capacidade, estava naquela sala abafada para continuar seu papel, acreditava piamente.
O quarto, mobiliado em estilo vitoriano, estava lindamente iluminado pelo sol. Ele andou até uma cadeira pesada e a arrastou próxima a cabeça do velho. Depois de descansar o peso de seu corpo no móvel, Grunn retirou um pequeno lenço de pano e enxugou a testa suada. Olhou ao redor para certificar de que estavam sozinhos e estudou o quarto quase vazio. Quadros completavam o cenário de opulência, encaixados perfeitamente na parede trabalhada em detalhes de ouro; uma mesa de mogno permanecia esquecida no canto do cômodo, sustentando um volume coberto por um lençol, provavelmente egípcio, constatou.
Na vida de Charles Grunn não havia espaço para moralidade ou reflexão. Ele chegava em seu destino, puxava o lençol, colocava a mão direita em algum moribundo e a esquerda na pele macia, livre de rugas, e se concentrava sem pensar, sem hesitar. Deixava as energias fluírem em um ritmo constante, servindo apenas como intermediário para as energias que corriam livremente. Depois de manipular a ordem natural do ciclo da vida, afrouxava a gravata borboleta, recebia a maleta com o valor combinado e desaparecia por meses, até mesmo anos. Até chegar a hora de trabalhar novamente.
O cheiro do velho era nauseante. “Abra os olhos”, disse. Depois de alguns segundos, lançou um violento tapa contra o rosto enrugado e se deliciou com o baque produzido no choque. Os olhos cansados do velho se abriram com surpresa e dor, os lábios finos contorceram em uma expressão de choro, mas o orgulho ferido era ainda forte naquele corpo quase sem tempo. Quatro dedos marcavam o rosto magro. O olhar que ele dirigiu para o homem sentado causaria medo em qualquer outra pessoa. “General”, comprimentou Charles, deliciando-se novamente com medo estampado no velho. “Eu sei quem você é, General. Eu resolvi quebrar uma das regras e pesquisei o único nome de minha lista e para minha surpresa, bem, você sabe, não sabe?”, um sorriso malicioso crescia no rosto de Grunn. “Ah, as coisas que descobri. Meu preço é justo, gosto de pensar. Em troca de alguns milhões eu entrego para homens como você uma dádiva quase divina. O medo da morte deixa de atormentar suas noites pelo quê? Cinco, seis décadas? Os homens, General, são mesquinhos a ponto de achar que suas vidas importam mais do que a de outros, que o tempo que têm se torna mais valioso do que a própria vida, como se a existência de vícios e pecados que levaram tivesse o direito de ser esticada ao máximo. Quantas pessoas você esmagou sem piedade em suas garras, General? Quantos foram passados para trás, enganados em conspirações complexas apenas para engordar seu poder político e os dígitos em seu patrimônio?”, o velho general encarava o homem sentado em uma de suas cadeiras, ele tentava falar, mas estava demasiado fraco para prounciar qualquer palavra.
Grunn se levantou e andou até a janela. Uma brisa fresca aliviou o calor que sentia. “Quando se faz o que faço, pensar se torna em um luxo perigoso”, continuou, “então eu criei quatro simples regras que me trouxeram até aqui, General. A primeira regra é nunca, nunca, pensar no que estou fazendo. Eu devo entender meus clientes como objetos e nos sacrifícios como... bem, como um sacrifício, entende? Às vezes gosto de me imaginar como um xamã na beira de um vulcão, sacrificando virgem após virgem para saciar a gula de nosso deus pagão. Por algum motivo eu tenho essa... habilidade? Podemos assim classificá-la? Acho que sim. E não colocá-la em prática... seria um desperdício, certo? Como se o homem com o maior pinto de todos decidisse se tornar num padre. Pense nos pobres meninos da paróquia, seria terrível.” Grunn alcançou um cigarro do estojo dourado e riscou um fósforo, deixando a fumaça criar um halo ao seu redor. O general lutava para tentar dizer uma palavra sequer, sentindo o perigo que se aproximava; sempre tivera um ótimo instinto, quase um assassino natural.
“A segunda regra me força a desaparecer por certo tempo.” Tragou longamente e soltou a fumaça pelas narinas. “Nunca realizar o mesmo trabalho duas vezes. Eu vou desaparecer e você nunca mais irá deitar os olhos em meu rosto, tenha certeza. Tenho feito isso por tempo o suficiente, sou a melhor pessoa para sumir sem deixar rastros. Deixo a poeira baixar, por assim dizer. Tempo é o que tenho. A terceira regra é mais complicada. É quase uma tentação, General. Sabe quantos homens como você eu encontrei em minha vida? Deixe-me contar um história. Durante a década de 1960 jovens americanos eram mandados para a Ásia com a missão de barbarizar vidas inocentes, destruir a vida de milhares e milhares de camponeses, de vilarejos e de crianças que ainda não podiam entender o intrincado cenário político que se desenvolvia diante de seus olhos. Esses joves não sabiam se voltariam para suas famílias e qualquer racionalismo moral que existia em suas personalidades era adormecido pelas balas que voavam noite adentro ou pela heroína que corria em suas veias. A cada pente disparado pelas M-16s algo mudava um pouco mais dentro deles. Um jovem, apenas mais um nome em um colar de metal, chegou no Vietnã como um católico fervoroso, cheio de fé e certeza de estar lutando contra o mal que havia no mundo; um perfeito soldado de Cristo. Bang, bang, bang, ‘veja como eu faço do mundo um lugar melhor!’. Nietzsche disse que quando você olha para o abismo, ele te encava de volta. E foi o que aconteceu. O jovem mergulhou em sua ideologia e se tornou na própria imagem que condenava e a ironia é que ele nunca percebeu. Ele apenas seguiu a correnteza. Aos poucos sua atuação chamou atenção dos estrategistas de patente maior e ele melhorou enquanto máquina de guerra, sem demonstrar qualquer arrependimento ele subiu até o posto de general. Depois de adquirir poder, nada poderia pará-lo, certo? Apenas mais uma vila queimada, mais uma mulher estuprada, mais uma criança rasgada ao meio pela minha munição... nada pesava em sua consciência. Alguns acreditavam que ele gostava da carnificina, outras que a nuvem química que envolvia sua mente era a responsável pelos atos bárbaros que ficavam encobertos pela Inteligêngia de guerra. Mas eu não, General, não acredito nessas coisas.” Grunn apagou o cigarro no carpete persa e puxou o lençol egípcio, revelando uma cesta de vime. Pequenas mãos e pés balançavam para fora da cesta e um riso da criança encheu a sala. Grunn sorriu e fez cócegas na barriga branca. Ele pegou o bebê no colo e deixou-o brincar, curioso, com a rosa pendurada em seu terno. “Acho que o jovem se deixou levar, apenas isso”, continuou enquanto balançava suavemente a criança. “Depois de um ponto, General, uma morte é mais uma morte, nada além. Um estupro é um orgasmo, um ato antes de acabar com o sofrimento de uma mulher.” Charles arreganhou os dentes para o velho. “O que você sentiu com o sangue pingando de sua faca enquanto seu pau ainda estava duro e molhado, seu filho da puta? Eu posso imaginar a impassividade gelada em seu rosto enquanto crianças eram estripadas.” O bebê ameaçou chorar quando as palavras cortantes de Grunn saíram em um tom agressivo. “Não, não, não. Está tudo bem, tudo bem”, ele disse por fim, com o som mais doce que poderia sair da boca de alguém.
“Eu também me imagino como o Caronte. Sem as moedas, é claro... isso seria clichê demais. Eu sou um Caronte invertido, eu cruzo o rio entre a vida e a morte no outro sentido.” Grunn levou o bebê até a cama do general e o deitou suavemente. “A quarta regra é na verdade um segredo. Além do dinheiro eu pego dez por cento do trabalho. General, você nunca acreditaria nas coisas que vi! As torres caírem naquele dia em setembro, o muro em Berlim, a festa em maio de 1945, as pessoas pulando dos prédios em 29, o fim da guerra em 18... porra, eu vi Napoleão voltando da Rússia, olhei para os olhos devastados daquele que já fora o homem mais poderoso da Terra. Eu dei os anos que ele teve depois desse dia, sabia? Ele teria vivido mais, os acontecimentos fossem outros. Mas o que aconteceu, aconteceu e não podemos fazer nada para mudar. Eu nasci em 1690, General. A margem de lucro que eu tomo me trouxe até aqui.” Colocou uma ampulheta na cama e pousou a mão direita na testa do velho, que soltou um suspiro aliviado, e a outra na barriga infantil, quente e cheia de vida. “Eu ganho minha vida assim, literalmente.”
“Desta vez eu quebrei algumas regras. Descobri quem você era, por exemplo. Li relatórios ao seu respeito. Sei quantas mulheres choraram enquanto você as rasgava, quantos homens viram a família fuzilada com um puxão de seu dedo no gatilho de uma metralhadora. Sei quantas mortes você encomendou na construção de seu império, General. Uma regra quebrada, eu pensei comigo mesmo, por que não quebrar as outras? Então eu me dei o luxo de pensar e decidir. O que faço é simples, General: eu manipulo a morte, sou o Caronte moderno. Eu retiro a vida de recém-nascido e transfiro os anos de uma vida toda para homens deitados em seu leito de morte, homens que acreditam na superioridade de sua existência, que aceitam privar uma vida inteira para ter mais tempo.” Grunn inverteu as mãos, cruzando os braços. Uma lágrima solitária percorreu o rosto do velho monstro. “Eu pensei e decidi. Eu sinto o cheiro da morte, essa é outra de minhas habilidade. E com o passar dos séculos, aprendi a estimar o tempo de vida. Acontece que você ainda teria oito, dez anos de vida. Acho que esse carinha vai aproveitar bem, não vai?” Grunn sorriu novamente e olhou nos olhos do velho enquanto sentia a energia do general passar para o bebê. A ampulheta invertida tomou seu tempo, um grão por vez enquanto Charles Grunn roubava do velho um dia por vez, deixando-o sentir o tempo se esvair de qualquer lugar que sua vida ficasse estocada. O trabalho poderia ser rápido, com um estalar de dedo, mas Grunn queria se divertir daquela vez, ele estava quebrando quase todas as regras. Não iria tomar seus anos desta vez, ele tinha algumas décadas ainda e logo outro rico desesperado cairia em seu radar. A criança exalava energia e saúde.
O último grão caiu. Um último suspiro deixou o hálito fétido do velho general. “Apodreça no inferno”, cuspiu antes de sair, a ampulheta esquecida sobre o corpo sem vida do General.
A casa era gigantesca e ele se perdeu algumas vezes. Em seu braço direito ele segurava a criança e a cada empregado que encontrava e que ousava questionar o que tinha feito, seus dedos da mão esquerda roubavam mais tempo para o menino que dormia pacificamente.
Estava mais fresco fora da casa. Charles Grunn sorriu e segurou firmemente a criança. Ele tinha que comprar fraldas, leite, roupas, brinquedos...
Não iria se preocupar com tudo aquilo agora: ele tinha tempo.
Charles Grunn obeceu a única regra intacta e andou calmamente sob o sol quente, até sumir da vista de crianças que jogavam futebol na rua, observando o homem de roupas restranhas com um bebê dormindo em um dos braços.

Nenhum comentário:

Postar um comentário