Charles Grunn entrou no quarto abafado. Estava
terrivelmente quente naquele cômodo e o cheiro do idoso se acumulava em várias
camadas: suor, urina e fezes. Mas havia outra essência, sutil, escondida pelos
odores corporais, um cheiro que apenas Charles podia sentir. Andou em linha reta
até a grande janela e puxou, violentamente, as cortinas laterais, deixando o
sol entrar; em seguida, abriu o vidro e respirou aliviado a brisa verpertina. A
luz invadiu o quarto, mostrando a grande cama central, envolta por bacias
cheias de fluídos do pobre homem. Do velho, podia-se ver apenas a cabeça, os
cabelos ralos, brancos e quebradiços, caidos sobre os olhos fechados. A barba
crescia selvagem por toda a bochecha e pescoço e duas covas profundas marcavam
as laterais. Ele estava coberto por uma colcha pesada causando ondas de suor.
Charles foi até o velho e o descobriu. “Assim vocês irão matá-lo”, disse sem
paciência, notando os ossos protuberantes no corpo fino. “Saiam”, disse
imperativamente, sem olhar para trás. Sabia que suas ordens seriam prontamente
obedecidas, principalmente pelo que estava prestes a realizar.
Era um homem de
estatura média e um rosto comum, olhos um pouco baixos, talvez. Usava roupas
que poderiam ter saído de um armário em 1930, com ternos riscados, uma rosa
vermelha saltando por um dos bolsos e um colete marfim por baixo da primeira
camada que vestia. Grunn não era um homem que parecia estar deslocado em 2012,
não: o tempo parecia deslocado ao seu redor, como se o mundo inteiro fosse
anacrônico por causa da existência de um homem de feições simples e olhos
caídos. Charles Grunn possuía uma habilidade extraordinário o suficiente para
ser uma peça peculiar no Grande Plano do Universo, gostava de pensar. Uma
realidade anacrônica era um preço relativamente baixo pelo que era capaz de
fazer. Algumas pessoas nascem para escrever histórias apaixonadas e ricas em ideologias,
pontuadas em analogias sociais e políticas aqui e ali; são pessoas que mudam o
modo de pensar dos homens e causam revoluções no sentido de um mundo mais
justo; outros vêm a este mundo para liderar seus iguais até batalhas
sanguinolentas e realizar massacres em nome de um ideal; outros apenas podem
encostar os dedos na costas das mãos. Charles, único dentro de suas capacidade,
estava naquela sala abafada para continuar seu papel, acreditava piamente.
O quarto, mobiliado
em estilo vitoriano, estava lindamente iluminado pelo sol. Ele andou até uma
cadeira pesada e a arrastou próxima a cabeça do velho. Depois de descansar o
peso de seu corpo no móvel, Grunn retirou um pequeno lenço de pano e enxugou a
testa suada. Olhou ao redor para certificar de que estavam sozinhos e estudou o
quarto quase vazio. Quadros completavam o cenário de opulência, encaixados
perfeitamente na parede trabalhada em detalhes de ouro; uma mesa de mogno
permanecia esquecida no canto do cômodo, sustentando um volume coberto por um
lençol, provavelmente egípcio, constatou.
Na vida de Charles
Grunn não havia espaço para moralidade ou reflexão. Ele chegava em seu destino,
puxava o lençol, colocava a mão direita em algum moribundo e a esquerda na pele
macia, livre de rugas, e se concentrava sem pensar, sem hesitar. Deixava as
energias fluírem em um ritmo constante, servindo apenas como intermediário para
as energias que corriam livremente. Depois de manipular a ordem natural do
ciclo da vida, afrouxava a gravata borboleta, recebia a maleta com o valor
combinado e desaparecia por meses, até mesmo anos. Até chegar a hora de
trabalhar novamente.
O cheiro do velho
era nauseante. “Abra os olhos”, disse. Depois de alguns segundos, lançou um
violento tapa contra o rosto enrugado e se deliciou com o baque produzido no
choque. Os olhos cansados do velho se abriram com surpresa e dor, os lábios
finos contorceram em uma expressão de choro, mas o orgulho ferido era ainda
forte naquele corpo quase sem tempo. Quatro dedos marcavam o rosto magro. O
olhar que ele dirigiu para o homem sentado causaria medo em qualquer outra
pessoa. “General”, comprimentou Charles, deliciando-se novamente com medo
estampado no velho. “Eu sei quem você é, General. Eu resolvi quebrar uma das
regras e pesquisei o único nome de minha lista e para minha surpresa, bem, você
sabe, não sabe?”, um sorriso malicioso crescia no rosto de Grunn. “Ah, as
coisas que descobri. Meu preço é justo, gosto de pensar. Em troca de alguns
milhões eu entrego para homens como você uma dádiva quase divina. O medo da
morte deixa de atormentar suas noites pelo quê? Cinco, seis décadas? Os homens,
General, são mesquinhos a ponto de achar que suas vidas importam mais do que a
de outros, que o tempo que têm se torna mais valioso do que a própria vida,
como se a existência de vícios e pecados que levaram tivesse o direito de ser
esticada ao máximo. Quantas pessoas você esmagou sem piedade em suas garras,
General? Quantos foram passados para trás, enganados em conspirações complexas
apenas para engordar seu poder político e os dígitos em seu patrimônio?”, o
velho general encarava o homem sentado em uma de suas cadeiras, ele tentava
falar, mas estava demasiado fraco para prounciar qualquer palavra.
Grunn se levantou e
andou até a janela. Uma brisa fresca aliviou o calor que sentia. “Quando se faz
o que faço, pensar se torna em um luxo perigoso”, continuou, “então eu criei
quatro simples regras que me trouxeram até aqui, General. A primeira regra é
nunca, nunca, pensar no que estou
fazendo. Eu devo entender meus clientes como objetos e nos sacrifícios como...
bem, como um sacrifício, entende? Às vezes gosto de me imaginar como um xamã na
beira de um vulcão, sacrificando virgem após virgem para saciar a gula de nosso
deus pagão. Por algum motivo eu tenho essa... habilidade? Podemos assim
classificá-la? Acho que sim. E não colocá-la em prática... seria um
desperdício, certo? Como se o homem com o maior pinto de todos decidisse se
tornar num padre. Pense nos pobres meninos da paróquia, seria terrível.” Grunn
alcançou um cigarro do estojo dourado e riscou um fósforo, deixando a fumaça
criar um halo ao seu redor. O general lutava para tentar dizer uma palavra
sequer, sentindo o perigo que se aproximava; sempre tivera um ótimo instinto,
quase um assassino natural.
“A segunda regra me
força a desaparecer por certo tempo.” Tragou longamente e soltou a fumaça pelas
narinas. “Nunca realizar o mesmo trabalho duas vezes. Eu vou desaparecer e você
nunca mais irá deitar os olhos em meu rosto, tenha certeza. Tenho feito isso
por tempo o suficiente, sou a melhor pessoa para sumir sem deixar rastros.
Deixo a poeira baixar, por assim dizer. Tempo é o que tenho. A terceira regra é
mais complicada. É quase uma tentação, General. Sabe quantos homens como você
eu encontrei em minha vida? Deixe-me contar um história. Durante a década de
1960 jovens americanos eram mandados para a Ásia com a missão de barbarizar
vidas inocentes, destruir a vida de milhares e milhares de camponeses, de
vilarejos e de crianças que ainda não podiam entender o intrincado cenário
político que se desenvolvia diante de seus olhos. Esses joves não sabiam se
voltariam para suas famílias e qualquer racionalismo moral que existia em suas
personalidades era adormecido pelas balas que voavam noite adentro ou pela
heroína que corria em suas veias. A cada pente disparado pelas M-16s algo mudava
um pouco mais dentro deles. Um jovem, apenas mais um nome em um colar de metal,
chegou no Vietnã como um católico fervoroso, cheio de fé e certeza de estar
lutando contra o mal que havia no mundo; um perfeito soldado de Cristo. Bang,
bang, bang, ‘veja como eu faço do mundo um lugar melhor!’. Nietzsche disse que
quando você olha para o abismo, ele te encava de volta. E foi o que aconteceu.
O jovem mergulhou em sua ideologia e se tornou na própria imagem que condenava
e a ironia é que ele nunca percebeu. Ele apenas seguiu a correnteza. Aos poucos
sua atuação chamou atenção dos estrategistas de patente maior e ele melhorou
enquanto máquina de guerra, sem demonstrar qualquer arrependimento ele subiu
até o posto de general. Depois de adquirir poder, nada poderia pará-lo, certo?
Apenas mais uma vila queimada, mais uma mulher estuprada, mais uma criança
rasgada ao meio pela minha munição... nada pesava em sua consciência. Alguns
acreditavam que ele gostava da carnificina, outras que a nuvem química que
envolvia sua mente era a responsável pelos atos bárbaros que ficavam encobertos
pela Inteligêngia de guerra. Mas eu não, General, não acredito nessas coisas.”
Grunn apagou o cigarro no carpete persa e puxou o lençol egípcio, revelando uma
cesta de vime. Pequenas mãos e pés balançavam para fora da cesta e um riso da
criança encheu a sala. Grunn sorriu e fez cócegas na barriga branca. Ele pegou
o bebê no colo e deixou-o brincar, curioso, com a rosa pendurada em seu terno. “Acho
que o jovem se deixou levar, apenas isso”, continuou enquanto balançava
suavemente a criança. “Depois de um ponto, General, uma morte é mais uma morte,
nada além. Um estupro é um orgasmo, um ato antes de acabar com o sofrimento de
uma mulher.” Charles arreganhou os dentes para o velho. “O que você sentiu com
o sangue pingando de sua faca enquanto seu pau ainda estava duro e molhado, seu
filho da puta? Eu posso imaginar a impassividade gelada em seu rosto enquanto
crianças eram estripadas.” O bebê ameaçou chorar quando as palavras cortantes
de Grunn saíram em um tom agressivo. “Não, não, não. Está tudo bem, tudo bem”,
ele disse por fim, com o som mais doce que poderia sair da boca de alguém.
“Eu também me
imagino como o Caronte. Sem as moedas, é claro... isso seria clichê demais. Eu
sou um Caronte invertido, eu cruzo o rio entre a vida e a morte no outro sentido.” Grunn levou o bebê até a
cama do general e o deitou suavemente. “A quarta regra é na verdade um segredo.
Além do dinheiro eu pego dez por cento do trabalho. General, você nunca
acreditaria nas coisas que vi! As torres caírem naquele dia em setembro, o muro
em Berlim, a festa em maio de 1945, as pessoas pulando dos prédios em 29, o fim
da guerra em 18... porra, eu vi Napoleão voltando da Rússia, olhei para os
olhos devastados daquele que já fora o homem mais poderoso da Terra. Eu dei os
anos que ele teve depois desse dia, sabia? Ele teria vivido mais, os acontecimentos
fossem outros. Mas o que aconteceu, aconteceu e não podemos fazer nada para
mudar. Eu nasci em 1690, General. A margem de lucro que eu tomo me trouxe até aqui.” Colocou uma ampulheta na
cama e pousou a mão direita na testa do velho, que soltou um suspiro aliviado,
e a outra na barriga infantil, quente e cheia de vida. “Eu ganho minha vida
assim, literalmente.”
“Desta vez eu
quebrei algumas regras. Descobri quem você era, por exemplo. Li relatórios ao
seu respeito. Sei quantas mulheres choraram enquanto você as rasgava, quantos
homens viram a família fuzilada com um puxão de seu dedo no gatilho de uma
metralhadora. Sei quantas mortes você encomendou na construção de seu império,
General. Uma regra quebrada, eu
pensei comigo mesmo, por que não quebrar
as outras? Então eu me dei o luxo de pensar
e decidir. O que faço é simples,
General: eu manipulo a morte, sou o Caronte moderno. Eu retiro a vida de
recém-nascido e transfiro os anos de uma vida toda para homens deitados em seu
leito de morte, homens que acreditam na superioridade de sua existência, que
aceitam privar uma vida inteira para ter mais tempo.” Grunn inverteu as mãos,
cruzando os braços. Uma lágrima solitária percorreu o rosto do velho monstro.
“Eu pensei e decidi. Eu sinto o cheiro da morte, essa é outra de minhas
habilidade. E com o passar dos séculos, aprendi a estimar o tempo de vida.
Acontece que você ainda teria oito, dez anos de vida. Acho que esse carinha vai
aproveitar bem, não vai?” Grunn sorriu novamente e olhou nos olhos do velho
enquanto sentia a energia do general passar para o bebê. A ampulheta invertida
tomou seu tempo, um grão por vez enquanto Charles Grunn roubava do velho um dia
por vez, deixando-o sentir o tempo se esvair de qualquer lugar que sua vida
ficasse estocada. O trabalho poderia ser rápido, com um estalar de dedo, mas
Grunn queria se divertir daquela vez, ele estava quebrando quase todas as
regras. Não iria tomar seus anos desta vez, ele tinha algumas décadas ainda e
logo outro rico desesperado cairia em seu radar. A criança exalava energia e
saúde.
O último grão caiu.
Um último suspiro deixou o hálito fétido do velho general. “Apodreça no
inferno”, cuspiu antes de sair, a ampulheta esquecida sobre o corpo sem vida do
General.
A casa era
gigantesca e ele se perdeu algumas vezes. Em seu braço direito ele segurava a
criança e a cada empregado que encontrava e que ousava questionar o que tinha
feito, seus dedos da mão esquerda roubavam mais tempo para o menino que dormia
pacificamente.
Estava mais fresco
fora da casa. Charles Grunn sorriu e segurou firmemente a criança. Ele tinha
que comprar fraldas, leite, roupas, brinquedos...
Não iria se
preocupar com tudo aquilo agora: ele tinha tempo.
Charles Grunn
obeceu a única regra intacta e andou calmamente sob o sol quente, até sumir da
vista de crianças que jogavam futebol na rua, observando o homem de roupas
restranhas com um bebê dormindo em um dos braços.
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