O restaurante era confortável. Havia uma certa atmosfera
caseira por todo ambiente, talvez fosse por causa da iluminação fraca, que
certamente ajudava na hora de esconder as imperfeições incontornáveis da
arquitetura antiga, ou fosse possivelmente a simpatia natural dos garçons. Era
um lugar pequeno, afastado da cidade e jazz tocava, mais baixo que o barulho
das dezenas de boca mastigando e falando em simultâneo, suave, incorpóreo.
Na mesa, dois
casais conversavam animados. Garrafas de bebidas, acumulavam entre os pratos. Mãos
apressadas surgiam do nada, de tempos em tempos, para repôr as bebidas
alcoólicas. “Então, você está trabalhando em algum livro novo?”, ele perguntou
para o escritor. Estavam todos um pouco bêbados, resultado da demora dos pratos
com a disponibilidade de vinho e cerveja. Era estranho como passavam os dias
planejando como economizar dinheiro apenas para mergulhar o orçamento nas
bebidas inebriantes.
“Ele nao usa o
termo ‘trabalho’”, respondeu Beti em seu lugar, “ama escrever, então não é
trabalho...”
“O cacete que não”,
interrompeu Harry, o escritor, “é um trabalho, Beti, e é foda... foda pra
cacete. Cansativo, repetitivo e lento. Apaixonante, é verdade, mas deixo meu
rabo grudado naquela cadeira quente quase doze horas por dia. Minha lombar está
me mantado e o ciático já está aposentado. Fora a confusão da minha mesa, com
anotações, gráficos e linha do tempo para cada
personagem. Foda.”
“Você precisa
melhorar o vocabulário, cara”, zombou Carlos.
Harry levantou o
dedo do meio para o amigo e sorriu: “Que tal isso como vocabulário?”
No mesmo instante
um garçom apareceu, quatro pratos de salada equilibrados em uma bandeja e
ignorou o gesto chulo enquanto servia as entradas. Folhas de alface se
misturavam entre pedaços gordos de tomate, palmito e cogumelos variados, todos
banhados com um molho amarelado.
“Deus, quase
meia-hora de atraso e eles me dão uma salada? Porra”, reclamou a outra mulher
diante do prato servido.
“Podemos para com
os palavrões, estou ficando incomodada”, pediu Beti.
“Claro que podemos,
apenas escolhemos não fazê-lo”, Harry piscou para ela e passou a mão em sua
coxa, exposta pelo vestido curto. Seus olhos caíram sobre um casal atrás de
Beti, com quem estivera casado nos últimos quinze anos. Eram jovens, um rapaz
com não mais de vinte e cinco anos e uma garota, ainda mais nova, com cabelos
ruivos, caídos em cacho macios sobre os ombros. Ela era linda, a pele morena,
macia, em contraste com o vestido vermelho, recortado em uma das pernas
torneadas. Harry podia vê-la perfeitamente naquele instante, sensual e
engmática, uma sereia naquele oceano do quotidiano. E, Deus, como ele se
deixava seduzir pelo canto!
Desviou rapidamente
a cabeça, mas a garota continuou em sua mente. Agora ele a via em casa, debruçada
sobre um Murakami ou um Bukowski, virando as páginas lentamente, bebendo de um
vinho branco, diretamente da garrafa. Vestia uma camisola curta e deixava o
vento refrescar seu corpo, os cabelos como chamas ao sabor da corrente de ar. Seu velho nojento, você poderia ser mais
óbvio? Jesus, às vezes acho que não estou na profissão certa, reprimiu-se. ‘Como labaredas de fogo ao vento’, pareço um
romance adolescente e mal escrito sobre vampiros. Você é melhor que isso!
Usou a visão
periférica para estudar Beti. Ela parecia o contrário da Ruiva. Bela, era
verdade, mas... de algum modo eram como yin e yang. Beti ele conhecia, sabia de
seus defeitos e de suas qualidades, conhecia o corpo da mulher, cada curva,
cada estria. No escuro, poderia apontar as pintas e marcas de nascença de Beti,
reconheceria o grau de curvatura de seus mamilos em uma fila de peitos, tinha
certeza. Mas ela era uma terra conquistada, a grama verde de seu quintal, a
felicidade de seus dias, algo que estava acostumado e pior, havia decorado os
defeitos do terreno e aprendido a contorná-los, mas sempre que baixava a
guarda, lá estavam todos aqueles buracos, prontos para torcer seu tornozelo.
Amava os cabelos dourados de Beti, lisos e finos, diferentes dos pêlos púbicos;
gostava do toque carinhoso da esposa, do gosto do seu café e do omelete que
preparava quase todas as manhãs. Quando ela estava pintando ou tocando piano,
Harry sentia-se em casa. Era como se a definição de lar envolvesse o cheiro dela misturado com o odor tóxico das tintas
ou do Chopin saindo de seus dedos. Mesmo assim, sentia o impulso de pular
daquela mesa, agarrar a Ruiva e fugir, dirigir até despistar o resto do mundo e
fazer amor fervorosamente, mergulhando nos cabelos vermelhos da morena, no
sabor de seu corpo, na pele trêmula de medo e excitação.
Um policial nos pegaria, contiuou a
fantasiar, e pensaria nela como uma
prostituta, a puta mais linda desse mundo...
“O que você acha,
meu bem?” A voz de Beti chegou como um martelo arremessado contra a tela onde
se desenvolvia sua fantasia, estilhaços voaram em todos os cantos e ele trocou
olhares com as outras três pessoas sentadas na mesa.
“Prostituta!”, quase gritou, ainda recolhendo
os cacos de seus sonhos. Algumas pessoas ao redor olharam, soltando risinhos
semi-contidos. “Quero dizer... pode repetir?”
“Eu disse”, a voz
de Beti estava levemente impaciente, “que esse restaurante é bonito e tudo
mais, mas a comida demora muito!”
“Vocês são
exigentes!”, prostestou Carlos, “Nada está bom para vocês, nunca.”
“Não é isso. Se
estou pagando, quero o pacote completo, quero todos os detalhes perfeitos, ou
vou procurar um lugar que os tenha.” Beti ergueu a mão e pediu um drink de sakê
com kiwi.
“Como uma
prostituta, foi o que eu disse aquela hora”, improvisou o escritor. Beti o
incinerou com o olhar. “Não estou dizendo que você é uma prostituta, amor, mas
essa situação se compara com uma, ao menos poderia
envolver uma. Pense deste modo: se você... melhor, se eu ou o Carlos
pegarmos uma prostituta, estaremos pagando pelo seu...”
“Seviço”, Carlos
completou.
“Isso, serviço.
Mesmo que tenha algo errado, o trabalho da freelancer,
vamos chamá-la de algo mais simpático, será proveitoso e satisfatório, por mais
que não seja perfeito. Aliás, se fosse perfeito, estragaria”, olhou novamente
para a ruiva, estudando a cintura fina destacada pelo vestido. “É uma
prostituta, afinal. Como poderia ser perfeita?”
“Agora, se ela
utilizasse os dentes... aí seria um problema”, completou Carlos e brindaram.
“Viu, vocês
reclamam de tudo.”
“Bestas”, disse a
namorada de Carlos. Eles nunca se lembravam do nome dela, Carlos, agente de
Harry, tinha o problema crônico de trocar as mulheres de sua vida. “O que ela
quis dizer é que se há concorrência, você escolhe pelos detalhes. É mercado
puro, gente. Adam Smith e essas coisas todas, o melhor serviço entre dois
preços parecidos, ganha o cliente.”
“Não deixe essa aí
escapar”, Beti bebia a sakê com uma mão e apontava com a outra. “Ela sabe Smith
e Ricardo e essas merdas todas, Carlos. Não apareça com alguém diferente. Viu,
Harry? No empate, são os detalhes que definem onde você vai beber seu
dinheiro.”
As palavras de Beti
ecoaram na mente de Harry. E antes que pudesse parar seu cérebro extremamente
misógeno, estava construindo uma lista entre Beti e a Ruiva. Sabia que Beti era
tinha um bom coração, mas uma moça linda como aquela tinha de ser boa pessoa.
Empate.
Beti, no entanto,
era extremamente vingativa e rancorosa, além de insegura e indecisa. A Ruiva
ria com convicção e passava segurança, ao menos com o próprio corpo. Ponto para
a Ruiva.
“Agora se você
tiver duas prostitutas iguais... digamos que são gêmeas...”
“Eu escolho as
duas”, Carlos cortou Beti e todos riram. Harry, absorto, perdeu a piada.
“Deixe-me terminar,
caramba. São idênticas, mas uma usa fio dental e a outra uma calcinha velha,
provavelmente roubada da casa da própria avó...”
“São cheirosas?”
“Você é um porco
sabia? São, são cheirosas...”
“Então qualquer
uma!”
“Mentira!”
As vozes foram se
misturando ao ambiente. Harry estudou novamente a jovem, ela era linda. Pensou
em Beti e em toda a história que tinham juntos. Ela o machucara algumas vezes;
ele também carregava sua parcela de burradas. Mas com a Ruiva, tudo seria uma
página em branco. As possibilidades... as possibilidades. A estabilidade
emocional contra a loucura da novidade. A luzúria do desconhecido e o conforto
da segurança. Era um empate.
Beti era bem
sucedida, vendia os quadros com rapidez e grande lucro, amava o que fazia, era
apaixonada pela vida. O casal na mesa ao lado era jovem, estavam provavelmente
em um primeiro encontro e ainda cheiravam ao dinheiro dos pais. Ponto para
Beti.
Um empate, senhoras e senhores!
“E você”, perguntou
a mulher de Carlos, “qual escolheria, Harry?”
“A que fosse livre
de sífilis”, respondeu prontamente. Era bom em piadas rápidas.
Gostaria de largar
Beti? Voltaria para casa, faria uma mala e viveria, o resto do seus dias, com a
Ruiva do restaurante. Sem mais das besteiras da mulher, esqueceria rapidamente
o cheira da tinta, o som do piano e o gosto de seu suor. Talvez o café da Ruiva
fosse pior, às vezes ela não faria omeletes pela manhã, mas com certeza iria
embarcar em uma aventura, um novo romance, a emoção de descobrir um novo corpo,
algo que fazia falta em sua vida amorosa. Ela, afinal, tinha cara de quem
pintava quadros. Com um cabelo daqueles? Com certeza pincelava. Seria uma
grande virada, sabia disso. Mas o empate, o empate entre as duas mulheres
pressionava seus nervos. Iria ceder, sentia a urgência aproximando-se como um
trem. Tchu, tchu, seu filho-da-puta!
Era o empate, que
horrível! Eles ainda falavam sobre prostitutas, dentes, calcinhas e
restaurantes, falavam sobre mercado, sobre o novo livro de Harry, talvez
inacabado para toda eternidade; eles falavam de sua vida, da segurança do
conhecido, da rotina macia que eles tinham. Trocaria sua rede de segurança por
um salto de fé?
Quando o pedido do
jovem casal chegou à mesa, a Ruiva deu o sorriso mais lindo que ele já vira e a
bolha do empate estourou alto em sua mente. Ela havia petido omelete e filé,
cercados por batatas e cenouras. O prato era lindo e uma das comidas prediletas
do autor. O coração acelerou. Enquanto ela abria a bolsa e retirava um
telefone...
Harry disse: “Beti,
preciso dizer que eu estou te...”
... apenas para
bater uma fotografia da comida e, com dedos treinados, compartilhar em uma rede
social qualquer a foto de gosto dúbio e qualidade ainda pior. O jovem encarou
Harry com um olhar pesaroso, decepcionado. Isso tirava dois pontos da Ruiva, pelo menos dois pontos.
“... te lembrando o
quanto te amo!”, reagiu, novamente com sagaz velocidade.
Beti sorriu e
passou a mão por sua perna. Conversaram sobre prostitutas, ladrões, traficantes
e cafetões; livros, filmes, músicas e teorias econômicas. Harry inventou
desculpas para o agente, as mulheres comeram e beberam antes de irem, juntas,
para o banheiro. A Ruiva tirou fotos de todos os pratos do curso e Harry não
desperdiçou outro segundo nela.
Era uma vitória de
Beti.
Ela, afinal, não
usava celular. Ah sim, ele a amava. Isso devia contar algum ponto, certo?
Certo?
A Beti ia ficar bem melhor sem o harry...ela poderia ter ido embora com o namorado da ruiva??
ResponderExcluirTira o verificador de palavras por favor? eu sou cegueta e me mato pra ler as letrinhas...
Muito obrigado por ler o conto. De verdade.
ResponderExcluirO namorado da ruiva não era uma boa pessoa, eu posso assegurar. Talvez ela ficasse melhor processando o Harry, mas essa seria outra história.
Vou falar com o Thiago para rever o layout.
Abraços.