sexta-feira, 28 de setembro de 2012

História Romântica


No primeiro golpe de vista eu soube que estava perdida novamente. O mergulho seria súbito e eu estaria em outra vida, em outro mundo. Há mundos perdidos, saiba desde já. Nada à lá Conan Doyle; mundos inteiros, quase infinitos, perdidos e esquecidos pelo tempo. É engraçado pensar em algo que seja quase infinito. Exatamente como o Universo. Sabemos que a exploração de boa parte de nosso bairro galático nunca ocorrerá, a escala de distância e tempo tornam impossível a tentativa séria e que esse monstro ainda está em expansão, mas ele não é infinito, está comprovado que existe uma barreira onde o Universo... simplesmente acaba. O que mais gosto de pensar não é no que existe além da barreira, não. Mas exatamente no tamanho do Universo. Ele é, portanto, quase infinito. Quase. E isso faz meu cérebro explodir. Mas estou divagando.
Eu posso entrar nos mundos perdidos e é por isso que estou escrevendo essas páginas que agora você tem em mãos: para poder saber que eu existi. Eu consigo entrar e sair dos mundos esquecidos pelos homens, eu tenho a chave e sempre que posso a uso, deixando a porta atrás de mim aberta. Eu entro e saio. Sou uma mochileira de mentes.
Quando olhei para a aquelas letras, sentindo o papel velho na ponta dos meus dedos, a textura porosa e empoeirada do texto ancestral, não entendi muita coisa. As letras estavam embaralhadas, trêmulas, intrincadas e eram meramente legíveis. Por algumas horas eu fiquei encarando as palavras, aprendendo aquela nova caligrafia. Grafologia é uma ciência interessante. Através da análise de pontos de pressão, dos cortes nas letras e na inclinação da escrita, você pode traçar um quadro do estado do escritor naquele momento. Infelizmente deixaremos para as futuras gerações apenas textos virtuais e a grafologia será uma arte esquecida, talvez com uma aura de arte proibída e isso seria legal, legal pra caramba. Mas estou divagando novamente. Grafologia, vamos lá. O texto era estranhamente sereno e claro, falando sobre a luz e sobre a bondade divina e, principalmente sobre a esperança de novamente ver o nascer do sol. As letras, no entanto, eram a demonstração pura do medo. As pressões apresentaram uma mudança brusca entre um fólio e outro, como um grito desesperado por ajuda, o agarro teimoso à vida.
Eu comecei a ler, palavra por palavra. E de repente eu estava em outro lugar. Era outra pessoa. Fechei os olhos e deixei esse mundo. A cadeira em que estava sentada começou a balançar, para cima e para baixo de forma constante, ritmada. Um barulho alto me cercava.
Dois odores atingiram minhas narinas como um punho fechado. Era uma mistura nauseante, quase tóxica. O primeiro dos cheiros era acre e pesado, impregnado na paredes de madeira que me cercavam. Aos poucos percebi que sentia, com asco, o cheiro do meu próprio corpo. Eu vestia um manto de algodão grosso, algo entre um desbotado marrom e o bege. Longos, os pelos da minha barba grisalha tomavam conta do hemisfério sul do meu corpo e de meu peito. Eu suava, transpirava em litros e sentia o cheiro doce de fruta que saía de meus poros. Simplesmente não havia forma de saber porque meu corpo cheira daquela forma adocicada e doentia ao mesmo tempo, mas estava com um severo caso de diabetes e logo estaria morto de qualquer forma; não queria apressar as coisas, no entanto. Às vezes, essa seria uma justificativa plausível para a aparente calma: todos morremos eventualmente. Não fossem as letras a me denunciar, poderia passar calma para meus companheiros. Meu suor grudava com ímpeto em minhas roupas e camada após camada de transpiração formavam aquele cheiro desagradável, um extrato concentrado de meu corpo que estava somado aos tantos outros nas mesmas condições.
Salgado, o segundo atingia o lugar em que estava com violência. O ar era abafado e o sal parecia grudar em minha pele ressecada e quebradiça, como uma capa que rodeava a todos. Trovões explodiam lá fora e o barulho da água doce da chuva era, de alguma forma, mais alto que os choro dos homens com quem dividia espaço, impotentes diante da força dos ventos e das ondas. Desta forma eu pude me situar. Estava em um dos cômodos de um navio velho, castigado pela ação do tempo e dos elementos. Cada madeira, cada laço, gemia ao quebrar da maré e a embarcação, provavelmente um grande caixão para todos nós, estava em seu limite. No próximo segundo poderíamos estar espalhados nas águas geladas de qualquer oceano que porventura eu me encontrava. Uma fina placa de madeira separava-nos da morte molhada e congelante do oceano escuro; tal era a diferença banal entre vida e morte, entre o seco e o enxarcado: alguns centímetros de madeira. Madeira que estava podre em grande parte de seu total, privada de cuidados e manutenção.
Olhei para minhas mãos e vi uma pote de tinta equilibrado pelos dedos velhos, dobrados pela artrite até o ponto em que pareciam mais garras do que membros humanos. A tinta poderia cair nas folhas parcialmente preenchidas e o custo de tal desperdício estava além de qualquer tesouro perdido no mesmo mar que agora ameaçava me engolir. O papel era caro e raro, a tinta preciosa. Mas talvez fosse essa a minha última carta, um testamento de meus últimos momentos e pensamentos finais. As folhas eram instrumentos do meu registro definitivo, anunciando minha vida e morte para meus irmãos espalhados por todo o mundo cristão. Derramar tinta seria o mesmo que calar a trombeta de meu anjo anunciador. Não, eu tinha de escrever mesmo no balanço violento das ondas. Olhei com pesar para os outros homens doentes ao meu redor e senti um peso enorme por não estar oferencendo alívio espiritual para aquelas pobres existências atormentadas. A carta era o que importava naquele momento. Que queimem no inferno.
...dos brauos homens que nauegam nesta grande barcaça que avança na direção dos gentios, escrevi com letras minimamente legíveis. A força da natureza se mostra certeira e agora a incerteza me atinge como quando era um mancebo ainda sem qualquer qualidade de bem e vivia próximo da natureza baixa daqueles que vivem uma vida sem sentido e longe da luz. A luz. A luz agora entra pelas frestas da madeira quase podre e rezo para Noffo fenhor para que sua mao misericordiosa poffa guiar o mastro principale para águas calmas até Goa. Tudo que quero é chegar ao meu destino e fazer como o Bispo ordenou e terminar meus dias na santa tarefa de pregar aos gentios contra os santos falsos e fotoques de camisama que tanto prejudicam a vida deffa gente boa e trabalhadora. Saiba aquele que encotrar minhas últimas letras que eu vivi e morri como um homem de Deus, que meus últimos segundos foram calmos e todos aqueles ao meu redor foram iluminados pelo calor divino em um suspiro calmo. Vamos juntos para o lado de Noffo Senhor e viveremos em santa paz. A mentira escapou fácil de minha mão. Reli o que escrevi e pensei no meu caminho até ali. O Bispo de Roma me enviara até a terra quase desconhecida para pregar e salvar almas condenadas, usaria da melhor forma possível o que me restava de tempo. Meu corpo dava sinais de expiração, meus pés estavam doloridos, roxos; os olhos, embaçados por uma substância leitosa. Embarquei então para morrer longe de minha nação, dos homens que aprendi a amar, ia para longe, para além da borda do mundo;    Goa era agora uma Jerusalém, perdida entre uma neblima de esperança por trás das sombras traiçoeiras do oceano escuro. Sou agora parte de uma tripulação sem Deus. Os homens gritam não por Deus, mas pelo sonho de poder nouamente entrar em uma prostituta européia, escrevi com sinceridade. Pela primeira usava tais palavras sem qualquer pudor. Ao inferno com todos! Que morram em dor e medo e desespero e sem perdão. Malditos gentios de pele amarela. Eu deueria estar no conforto de meus irmãos, rezando calmamente nos meus horários estabelecidos. Que sejam engolidos nas chamas eternas, é o que merecem!
O navio então parou de dançar loucamente sobre o oceano. Os gritos dos marinheiros cessaram ao mesmo tempo e um segundo de silêncio tomou conta de todo o barco. De repente, todos estouraram em manifestações de alegria. A tempestade deu lugar a uma brisa marinha, forte o suficiente para no impulsionar, mas gentil como um beijo de mãe. Viveríamos para morrer um outro dia. Um homem com três dentes, uma doninha perigosa e furtiva, agarrou meu rosto e beijou meus lábios, sorrindo e falando algo sobre pagar uma meretriz para mim. Todos gargalharam com a idéia.
O que poderia fazer? Risquei as últimas linhas em arrependimento e pedi por perdão. Durante a manhã todos se reuniriam no deque principal e eu teria de arrastar minhas pernas febris pela madeira molhada da escada e faria um sermão. Em pouco tempo estaríamos longe do Cabo das Tormentas – sempre será o nome deste lugar amaldiçoado – e pelo Índico nós iremos, vivendo no das rações que temos e conservando o melhor possível nosso vinho e nossas galinhas.
Fechei os olhos e voltei para minha vida ao final do relato. Novamente eu vestia meu próprio corpo. Isso explicava as linhas riscadas. No próximo fólio, outra caligrafia anunciava a morte do velho jesuíta, dois dias antes de chegarem ao destino. Goa fora, afinal, o seu descanso último. A realidade para aquele pobre velho com medo do mar era agora um mundo esquecido, uma forma única de interpretar o mundo em que estava inserido, a não ser por aqueles que liam as últimas palavras grafadas naquelas folhas amareladas.
Esta é a minha habilidade: entrar em mundos esquecidos pelos vivos. Acho que Neil Gaiman escreveu uma vez que cada cabeça é um mundo inteiro. Ele tem razão... Neil Gaiman sempre tem razão, eu descobri quando ganhei juízo. Sempre que leio uma carta ou um relato, minha mente cira uma conexão com a cabeça de quem estou lendo e sou aquela pessoa por alguns momentos, em outro lugar, em outro tempo. Eu recupero os mundos perdidos, viajo pela Roma antiga, antes mesmo da ascenção de Bizâncio, despeço-me de minha noiva enquanto me preparo para vagar nas trincheiras da Primeira Guerra, construindo um cruel desapego pela vida. Vivi e morri na proa de barcos esquecidos pelos ventos, comendo bolachas estragadas, tomadas pelo mofo e por insetos, bebi o vinho azedo e a água fétida para resisitir ao menos mais um dia em vão. Já vesti a pele de um camponês no sul da França, buscando por cura através das moedas do rei taumaturgo, andei com os Andarilhos do Bem, fui queimada como uma bruxa, enterrei o aço de minha espada em um estômago inglês, senti uma flecha francesa perfurar meu joelho e fui enforcado como rebelde inúmeras vezes. Com o nariz enterrado nos manuscritos, vivi mais vidas que a maioria das pessoas. Eu conheço melhor o passado do que o mundo em que estou. Os historiadores dizem que os homens são produtos de seu tempo: eu sou o produto de todos os tempos, eu tenho a chave e sei os caminhos.
Eu sou muitos. E já não sei quem sou.
Por isso escrevo essas linhas. Rasguei uma página de meu caderno de pesquisa e o escondi neste antigo tomo. Anos, décadas, séculos se passarão antes de você encontrar as páginas deslocadas deste documento esquecido até mesmo pela biblioteca. Você não me conhece, não sabe meu nome ou como é meu nariz, as cores dos meus olhos heterocromáticos. Mas está ciente de minha existência. Eu andei pela terra em vários mundos, em vários tempo e em incontáveis vidas. As palavras que agora escrevo irão chegar ao seu tempo e eu estarei há muito morta e enterrada, mas viverei em sua mente. Você está conectado comigo, pode ver a mulher magra debruçada sobre velhos livros iluminados por uma lâmpada demasiadamente fraca. Eu vivi. E vivo agora.
Nossas mentes estão conectadas.
Eu existo.

Um comentário:

  1. UAU!!! Li num fôlego só! Que texto delicioso. Muito, muito bom. Adorei Maurício. Vc é muito bom cara. Parabéns. Ana Eliza.

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