No primeiro golpe de vista eu soube que estava perdida
novamente. O mergulho seria súbito e eu estaria em outra vida, em outro mundo.
Há mundos perdidos, saiba desde já. Nada à lá Conan Doyle; mundos inteiros,
quase infinitos, perdidos e esquecidos pelo tempo. É engraçado pensar em algo
que seja quase infinito. Exatamente como o Universo. Sabemos que a exploração
de boa parte de nosso bairro galático nunca ocorrerá, a escala de distância e
tempo tornam impossível a tentativa séria e que esse monstro ainda está em expansão,
mas ele não é infinito, está comprovado que existe uma barreira onde o
Universo... simplesmente acaba. O que mais gosto de pensar não é no que existe
além da barreira, não. Mas exatamente no tamanho
do Universo. Ele é, portanto, quase infinito. Quase. E isso faz meu cérebro
explodir. Mas estou divagando.
Eu posso entrar nos
mundos perdidos e é por isso que estou escrevendo essas páginas que agora você
tem em mãos: para poder saber que eu existi. Eu consigo entrar e sair dos mundos
esquecidos pelos homens, eu tenho a chave e sempre que posso a uso, deixando a
porta atrás de mim aberta. Eu entro e saio. Sou uma mochileira de mentes.
Quando olhei para a
aquelas letras, sentindo o papel velho na ponta dos meus dedos, a textura
porosa e empoeirada do texto ancestral, não entendi muita coisa. As letras
estavam embaralhadas, trêmulas, intrincadas e eram meramente legíveis. Por
algumas horas eu fiquei encarando as palavras, aprendendo aquela nova
caligrafia. Grafologia é uma ciência interessante. Através da análise de pontos
de pressão, dos cortes nas letras e na inclinação da escrita, você pode traçar
um quadro do estado do escritor naquele momento. Infelizmente deixaremos para
as futuras gerações apenas textos virtuais e a grafologia será uma arte
esquecida, talvez com uma aura de arte proibída e isso seria legal, legal pra
caramba. Mas estou divagando novamente. Grafologia, vamos lá. O texto era
estranhamente sereno e claro, falando sobre a luz e sobre a bondade divina e, principalmente
sobre a esperança de novamente ver o nascer do sol. As letras, no entanto, eram
a demonstração pura do medo. As pressões apresentaram uma mudança brusca entre
um fólio e outro, como um grito desesperado por ajuda, o agarro teimoso à vida.
Eu comecei a ler,
palavra por palavra. E de repente eu estava em outro lugar. Era outra pessoa.
Fechei os olhos e deixei esse mundo. A cadeira em que estava sentada começou a
balançar, para cima e para baixo de forma constante, ritmada. Um barulho alto
me cercava.
Dois odores
atingiram minhas narinas como um punho fechado. Era uma mistura nauseante,
quase tóxica. O primeiro dos cheiros era acre e pesado, impregnado na paredes
de madeira que me cercavam. Aos poucos percebi que sentia, com asco, o cheiro
do meu próprio corpo. Eu vestia um manto de algodão grosso, algo entre um
desbotado marrom e o bege. Longos, os pelos da minha barba grisalha tomavam
conta do hemisfério sul do meu corpo e de meu peito. Eu suava, transpirava em
litros e sentia o cheiro doce de fruta que saía de meus poros. Simplesmente não
havia forma de saber porque meu corpo cheira daquela forma adocicada e doentia
ao mesmo tempo, mas estava com um severo caso de diabetes e logo estaria morto
de qualquer forma; não queria apressar as coisas, no entanto. Às vezes, essa
seria uma justificativa plausível para a aparente calma: todos morremos
eventualmente. Não fossem as letras a me denunciar, poderia passar calma para
meus companheiros. Meu suor grudava com ímpeto em minhas roupas e camada após
camada de transpiração formavam aquele cheiro desagradável, um extrato
concentrado de meu corpo que estava somado aos tantos outros nas mesmas
condições.
Salgado, o segundo
atingia o lugar em que estava com violência. O ar era abafado e o sal parecia
grudar em minha pele ressecada e quebradiça, como uma capa que rodeava a todos.
Trovões explodiam lá fora e o barulho da água doce da chuva era, de alguma
forma, mais alto que os choro dos homens com quem dividia espaço, impotentes
diante da força dos ventos e das ondas. Desta forma eu pude me situar. Estava
em um dos cômodos de um navio velho, castigado pela ação do tempo e dos
elementos. Cada madeira, cada laço, gemia ao quebrar da maré e a embarcação,
provavelmente um grande caixão para todos nós, estava em seu limite. No próximo
segundo poderíamos estar espalhados nas águas geladas de qualquer oceano que
porventura eu me encontrava. Uma fina placa de madeira separava-nos da morte
molhada e congelante do oceano escuro; tal era a diferença banal entre vida e
morte, entre o seco e o enxarcado: alguns centímetros de madeira. Madeira que
estava podre em grande parte de seu total, privada de cuidados e manutenção.
Olhei para minhas
mãos e vi uma pote de tinta equilibrado pelos dedos velhos, dobrados pela
artrite até o ponto em que pareciam mais garras do que membros humanos. A tinta
poderia cair nas folhas parcialmente preenchidas e o custo de tal desperdício
estava além de qualquer tesouro perdido no mesmo mar que agora ameaçava me
engolir. O papel era caro e raro, a tinta preciosa. Mas talvez fosse essa a
minha última carta, um testamento de meus últimos momentos e pensamentos
finais. As folhas eram instrumentos do meu registro definitivo, anunciando
minha vida e morte para meus irmãos espalhados por todo o mundo cristão.
Derramar tinta seria o mesmo que calar a trombeta de meu anjo anunciador. Não,
eu tinha de escrever mesmo no balanço violento das ondas. Olhei com pesar para
os outros homens doentes ao meu redor e senti um peso enorme por não estar
oferencendo alívio espiritual para aquelas pobres existências atormentadas. A
carta era o que importava naquele momento. Que queimem no inferno.
...dos brauos homens que nauegam nesta grande barcaça que
avança na direção dos gentios, escrevi com
letras minimamente legíveis. A força da
natureza se mostra certeira e agora a incerteza me atinge como quando era um
mancebo ainda sem qualquer qualidade de bem e vivia próximo da natureza baixa
daqueles que vivem uma vida sem sentido e longe da luz. A luz. A luz agora
entra pelas frestas da madeira quase podre e rezo para Noffo fenhor para que
sua mao misericordiosa poffa guiar o mastro principale para águas calmas até
Goa. Tudo que quero é chegar ao meu destino e fazer como o Bispo ordenou e
terminar meus dias na santa tarefa de pregar aos gentios contra os santos
falsos e fotoques de camisama que tanto prejudicam a vida deffa gente boa e
trabalhadora. Saiba aquele que encotrar minhas últimas letras que eu vivi e
morri como um homem de Deus, que meus últimos segundos foram calmos e todos
aqueles ao meu redor foram iluminados pelo calor divino em um suspiro calmo.
Vamos juntos para o lado de Noffo Senhor e viveremos em santa paz. A
mentira escapou fácil de minha mão. Reli o que escrevi e pensei no meu caminho
até ali. O Bispo de Roma me enviara até a terra quase desconhecida para pregar
e salvar almas condenadas, usaria da melhor forma possível o que me restava de
tempo. Meu corpo dava sinais de expiração, meus pés estavam doloridos, roxos;
os olhos, embaçados por uma substância leitosa. Embarquei então para morrer
longe de minha nação, dos homens que aprendi a amar, ia para longe, para além
da borda do mundo; Goa era agora uma
Jerusalém, perdida entre uma neblima de esperança por trás das sombras
traiçoeiras do oceano escuro. Sou agora parte
de uma tripulação sem Deus. Os homens gritam não por Deus, mas pelo sonho de
poder nouamente entrar em uma prostituta européia, escrevi com sinceridade.
Pela primeira usava tais palavras sem qualquer pudor. Ao inferno com todos! Que morram em dor e medo e desespero e sem
perdão. Malditos gentios de pele amarela. Eu deueria estar no conforto de meus
irmãos, rezando calmamente nos meus horários estabelecidos. Que sejam engolidos
nas chamas eternas, é o que merecem!
O navio então parou
de dançar loucamente sobre o oceano. Os gritos dos marinheiros cessaram ao
mesmo tempo e um segundo de silêncio tomou conta de todo o barco. De repente,
todos estouraram em manifestações de alegria. A tempestade deu lugar a uma
brisa marinha, forte o suficiente para no impulsionar, mas gentil como um beijo
de mãe. Viveríamos para morrer um outro dia. Um homem com três dentes, uma
doninha perigosa e furtiva, agarrou meu rosto e beijou meus lábios, sorrindo e
falando algo sobre pagar uma meretriz para mim. Todos gargalharam com a idéia.
O que poderia
fazer? Risquei as últimas linhas em arrependimento e pedi por perdão. Durante a
manhã todos se reuniriam no deque principal e eu teria de arrastar minhas
pernas febris pela madeira molhada da escada e faria um sermão. Em pouco tempo
estaríamos longe do Cabo das Tormentas – sempre será o nome deste lugar
amaldiçoado – e pelo Índico nós iremos, vivendo no das rações que temos e
conservando o melhor possível nosso vinho e nossas galinhas.
Fechei os olhos e
voltei para minha vida ao final do relato. Novamente eu vestia meu próprio
corpo. Isso explicava as linhas riscadas. No próximo fólio, outra caligrafia
anunciava a morte do velho jesuíta, dois dias antes de chegarem ao destino. Goa
fora, afinal, o seu descanso último. A realidade para aquele pobre velho com
medo do mar era agora um mundo esquecido, uma forma única de interpretar o
mundo em que estava inserido, a não ser por aqueles que liam as últimas
palavras grafadas naquelas folhas amareladas.
Esta é a minha
habilidade: entrar em mundos esquecidos pelos vivos. Acho que Neil Gaiman
escreveu uma vez que cada cabeça é um mundo inteiro. Ele tem razão... Neil
Gaiman sempre tem razão, eu descobri quando
ganhei juízo. Sempre que leio uma carta ou um relato, minha mente cira uma conexão
com a cabeça de quem estou lendo e sou aquela pessoa por alguns momentos, em
outro lugar, em outro tempo. Eu recupero os mundos perdidos, viajo pela Roma
antiga, antes mesmo da ascenção de Bizâncio, despeço-me de minha noiva enquanto
me preparo para vagar nas trincheiras da Primeira Guerra, construindo um cruel
desapego pela vida. Vivi e morri na proa de barcos esquecidos pelos ventos,
comendo bolachas estragadas, tomadas pelo mofo e por insetos, bebi o vinho
azedo e a água fétida para resisitir ao menos mais um dia em vão. Já vesti a
pele de um camponês no sul da França, buscando por cura através das moedas do
rei taumaturgo, andei com os Andarilhos do Bem, fui queimada como uma bruxa,
enterrei o aço de minha espada em um estômago inglês, senti uma flecha francesa
perfurar meu joelho e fui enforcado como rebelde inúmeras vezes. Com o nariz
enterrado nos manuscritos, vivi mais vidas que a maioria das pessoas. Eu
conheço melhor o passado do que o mundo em que estou. Os historiadores dizem
que os homens são produtos de seu tempo: eu sou o produto de todos os tempos,
eu tenho a chave e sei os caminhos.
Eu sou muitos. E já
não sei quem sou.
Por isso escrevo
essas linhas. Rasguei uma página de meu caderno de pesquisa e o escondi neste
antigo tomo. Anos, décadas, séculos se passarão antes de você encontrar as
páginas deslocadas deste documento esquecido até mesmo pela biblioteca. Você
não me conhece, não sabe meu nome ou como é meu nariz, as cores dos meus olhos
heterocromáticos. Mas está ciente de minha existência. Eu andei pela terra em
vários mundos, em vários tempo e em incontáveis vidas. As palavras que agora
escrevo irão chegar ao seu tempo e eu estarei há muito morta e enterrada, mas
viverei em sua mente. Você está conectado comigo, pode ver a mulher magra
debruçada sobre velhos livros iluminados por uma lâmpada demasiadamente fraca.
Eu vivi. E vivo agora.
Nossas mentes estão
conectadas.
Eu existo.
UAU!!! Li num fôlego só! Que texto delicioso. Muito, muito bom. Adorei Maurício. Vc é muito bom cara. Parabéns. Ana Eliza.
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