- Quando roubaram minha bicicleta eu saí para correr...
- Quando você saiu para correr roubaram sua bicicleta, você quer dizer?
- Não. Quando desci a vizinha me disse "cadê a bicicleta?" e eu disse "não sei". "Pois estava aqui às 7h e às 9h não estava mais", "Então roubaram", respondi. Ela disse "E o que vais fazer?", "Vou sair pra correr. Boa tarde, feliz páscoa".
- E daí?
- E daí nada. E daí que só corri. Terrenos baldios são campos floridos na primavera. Atrás do cemitério há uma favela, dentro dele também. Um submundo de cada lado, suponho. Depois o vizinho falou "Vá lá ver se acha a bicla".
- A que?
- Bicla. É bicicleta em Portugal. Bike, magrela, tu sabe. Aí eu disse "Não, magina, não vou procurar problema". E ele fez cara de enfado e disse "Mas devia de ir lá, aqueles moleques podem estar por aí com ela". E é, podiam, mas que eu ia fazer? E pra quê? Saí pra correr, novamente.
- Duas vezes?
- Não foram no mesmo dia.
- Ah.
- No cruzamento há um rato esmagado, fresco, ainda quente. Passo ao lado, reverencio, penso na morte dele e sigo correndo. Uma vez pisei num gafanhoto que grudou no meu shorts enquanto eu corria. Por descuido eu fiz de rato o gafanhoto. Corremos juntos por 2 quilômetros e, de repente, na curva, ele caiu. Só vi quando ouvi o barulho trovejar dele morrendo a meus pés. Sob meu pé, na sola do pé, no meu tênis preto de correr.
- E?
- E nada. Foi foda, na hora, dei meia volta e corri feito um filho da puta, sem pensar em nada. "Porra, porra, por que não presta atenção por onde corre?" Mas não havia mais o que fazer. Ele estava morto e eu continuava correndo.
Joana retirou a garrafa vazia de cima da mesa, serviu outra cheia e amendoim.
- Na rua de entrada ao cemitério, que eu sempre corro, também sempre vejo um senhor deficiente andando por ali, esperando o ônibus, depende do tempo que levo pra ir e voltar. Não sei o que ele tem, mas não usa bengala: em vez disso, tem um cajado. Acho que é mais fácil pra se locomover. Eu corro por ele.
- Como assim?
- Eu corro por quem não pode correr. Corro por ele, pelo rato morto, pelo gafanhoto, pelo cavalo aleijado que é sacrificado no morro, por todo mundo por quem passo enquanto corro. Tu consegue imaginar o quanto de velhinhas obesas maquiadas com bengalas eu encontro no caminho? São várias, é impressionante. Corro por elas também. Corro pelos tubarões.
- Porra, pelos tubarões?
- É. Quando pescam tubarão e içam pro convés do barco eles não tem pernas nem tem braços pra escapar, pular pro mar de volta, fugir dali. Corro por quem não pode correr.
- Pelo Stephen Hawking?
- É, por ele também. Por todo mundo eu faço essa volta todo dia na cidade, correndo do lado de carros e ultrapassando congestionamento.
- Hey!, quer tremoços?
- Boa ideia. Joana...!
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