Há momentos em que o tecido da realidade
permanece fino, instável em sua própria natureza. Nesses momentos, uma física
anárquica toma conta de pequenos espaços mundanos; o caos impera e o paradoxo
reina. São momentos mágicos, musas quase sobrenaturais para poetas loucos ou
romancistas psicóticos, momentos esses que são causados por eventos aleatórios
ou entidades poderosas.
Zack,
proprietário e bartender do velho Clube da cidade, estava preso em um desses
momentos, desencadeado pela presença de três entidades míticas. Naquela singela
tarde, uma tarde sem nada de especial na ignorante opinião de Zack, a vida de
algumas pessoas tomariam rumos inesperados. Na verdade, o próprio passado iria
mudar. Assumindo um ponto da sinceridade ainda maior, caro leitor, durante
todas as mudanças, os destinos, os caminhos sempre permaneceriam os mesmos,
pois seriam únicos, eternos.
Vestia uma
camiseta branca com os quatro símbolos do Led Zeppelin estampados, calça jeans
desbotadas e um velho par de tênis, confortáveis justamente por estarem
desgastados. Zack tentava levar a vida na maior leveza possível; quando não
estava repondo o estoque de cerveja ou preparando batatas ou limpando as mesas,
ele lia grossos livros sobre a história da ciência e escutava discos velhos de
rock setentista. Ficava fora dos problemas de seus clientes, oferecia apenas um
pouco de batata frita e conforto etílico. Sempre parava de servir os que
deixavam para trás a linha da sobriedade e ficava fora de seus problemas
pessoais, essa era a única Regra de Zack.
A vida do
bartender seguia suave e sem surpresas. Zack era, no entanto, infeliz. Sentia
que vivam em um prisão temporal. Não acreditava que vivia o destino certo, estava
sempre deslocado. Mesmo em no conforto de sua cama, na familiaridade da pequena
biblioteca particular, algo estava errado. Zack não era quem deveria ser, esse
era o problema.
No Clube, as
mesmas pessoas engoliam batatas fritas e cervejas; a jukebox tocava Stargazer, do Rainbow e a televisão
passava algum silencioso tumulto estudantil. O Clube não era famoso pela
televisão pendurada atrás do balcão: era a jukebox que trazia de volta os
clientes. No Clube você poderia, com uma moeda de 25 centavos, escutar todo o Rubber Soul, dos Beatles ou um dos Remasters, do Zeppelin. Terminou de
lavar um copo e andou até o fim do balcão, onde uma mulher terminava a terceira
cerveja da noite. Ela era japonesa, baixa e magra. Diria que estava na casa dos
cinquenta, mas não se atreveria a adivinhar a idade de um japonês, eles têm uma
estranha mania de sempre paracer jovens.
“Mais uma?”,
perguntou.
Ela considerou
por alguns instantes. “Não, obrigada. Vou pegar a estrada.” Ele a estudou mais
atentamente. Vestia uma jaqueta de couro e tinha ao lado um capacete vermelho.
“Você está em
condições de dirigir?”
“Não me julgue
pela aparência, jovem”, ela sorriu. Não conseguia se lembrar da última vez que
fora chamado de ‘jovem’. “Consigo lidar bem com minha bebida. Além disso, acho
que a cerveja vai me acalmar um pouco, vou fazer uma viagem longa.”
“Para onde?”
Ela olhou com
profundidade para o bartender, talvez medindo a confiança que ele emitia. Por
fim, decidiu contar o que iria fazer naquela tarde, confiava em alguém que
gostava tanto de Zeppelin, pensou. Não fazia diferença alguma, concluiu, apenas
alguns quilômetros e nada teria importância. “A pergunta está errada. Para quando eu vou, você deveria perguntar.”
Ela colocou uma chave sobre o balcão. Era uma chave comum, Harley Davidson dizia em seu corpo.
“Uma chave”, ele
respondeu sem qualquer emoção.
“Não, não,
jovem. A chave. Estou com a moto do
meu marido... falecido... falecido marido. Ele sempre amou motos e mesmo
levando uma vida simples, juntou dinheiro suficiente para comprar uma Fat Boy.
Ano passado ele morreu. Câncer, essa Vadia. Eu me conformei”, segurava algumas
lágrima, Zack percebeu, “e continuei a viver, o que mais poderia fazer? Nunca
tivemos filhos ou amigos próximos, vivíamos um pelo outro... bom, ele vivia
pela moto também. Sabe que cheguei a ter ciúmes da moto? Uma noite peguei um
martelo, decidida a destruir aquela máquina maldita que dividia comigo meu
marido, como aqueles primeiros artesãos que se rebelaram contra as primeiras
fiadeiras que vi em um documentário.” Ela ponderou alguns segundos e retomou: “Os
artesão não diviam os maridos, quero dizer. Eles destruíram as máquinas que
roubavam os empregos. Por fim, não fiz nada, não tive coragem de destruir parte
importante da vida do Tezuko. Ele andou naquela Fat Boy até quase o fim de suas
energias, era impressionante a determinação de rodar alguns quilômetros, mesmo
fraco e passando mal por causa da quimioterapia.”
Zack olhou ao
redor. Um homem estava sentado perto da televisão, abraçado a uma pequena caixa
de madeira como se fosse o maior tesouro da Terra; três senhoras sentavam na
outra ponta do balcão, uma lia o jornal do dia com a ajuda de grossas lentes.
As outras duas senhoras tricotavam com visível esforço para enxergar o que
faziam. Outras duas pessoas sentavam perto da jukebox. Stargazer se aproximava do fim.
“Não vou demorar
muito”, ela soltou em um tom ofendido.
“Não se
preocupe, acho que todos estão bem. Continue, por favor.”
Ela o encarou,
com os olhos pequenos e brilhantes. Vivos,
ele pensou, como os olhos de uma criança
que ainda acredita em magia.
“A quimioterapia
era um veneno para meu Tezuko. Ele vomitava e vomitava e vomitava. Às vezes
dizia que iria virar do avesso. Se arrastava pela casa, branco e sem energia,
mas quando estava perto da moto, um pouco da cor voltava nas bochechas e rugas
de seu rosto”, lágrimas caíam livremente. “Ficava longas horas limpando cada
centímetro da Harley, medindo o nível do óleo, polindo o tanque, verificando as
marchas. Acho que a moto lhe deu alguns meses de vida. Mas no final, o terrível
dragão venceu e agora ele é um punhado de pó. Depois que ele morreu, pensei em
me livrar da moto e achei um comprador, mas no dia antes de receber quase o
mesmo valor de uma moto nova, um envelope escorregou por baixo da minha porta.
Meu coração gelou e caí de joelhos no chão da cozinha. Era a letra do Tezuko!”,
a velha japonesa agarrava Zack pelos ombros, com força suficiente para deixar
marcas vermelhas de dedos.
Mais
uma maluca com muito álcool na cabeça, ele
amaldiçoou.
Ela largou o
bartender e apontou para a chave pousada na madeira do Clube. “Dentro do
envelope tinha essa chave. Com mãos trêmulas, fui até a moto e a testei.
Precisei de um pouco mais de força para dar partida, mas a chave funcionou como
deveria. Quem tinha me mandado a chave? Meu nome no envelope tinha um smiley, um brincadeira que ele sempre
fazia quando escrevia algo importante para mim. Fazia anos que não andava na
moto, mas a tirei da garagem mesmo assim, vesti minha velha jaqueta e coloquei
o capacete. Foi maravilhoso sentir o cheiro do cabelo de Tezuko, ainda que
fraco. Quando percebi, estava na estrada, longe de casa. Dirigi nove horas
seguidas. Sem parar, sem descansar, sem precisar de mais combustível. Aliás, o
tanque continuava cheio. Dormi em um hotel qualquer e voltei para casa. De manhã,
quando peguei o jornal, vi que marcava o dia anterior na capa. As mesmas
manchetes, as mesmas fotos, os mesmos assassinatos. Achei que era um erro do
entregador, mas tudo bem, sem problemas, não iria causar confusão por causa de
um jornal errado... não sou esse tipo de pessoa. Resolvi preparar um pouco de
café e separar os documentos da moto. A volta tinha sido boa, o barulho do
motor agradável, mas o que eu iria fazer com uma moto? Achei, naquela hora, que
o Tezuko queria que eu tivesse dado uma última volta e pediu para algum amigo
para entregar a chave”, ela brincava com o objeto, rodando entre os dedos.
Zack não sabia o
que dizer, apenas se debruçou no balcão e alcançou uma cerveja. Estava fisgado
pela história da velha japonesa. Mesmo ferindo sua única regra, queria ouvir a
história.
“É claro que
separei a chave que chegou no envelope, tinha a intenção de guardar com
carinho: a última lembrança do meu amor de toda a vida. O comprador, no
entanto, me ligou e disse exatamente as mesmas coisas que tinha dito no dia
anterior, na mesma ordem, na mesma animação, marcando para o encontro para o
próximo dia. Será que eu tinha circulado o dia errado no meu calendário? Liguei
a televisão e o jornal de ontem
estava passando. Então eu pensei que...”
“Você viajou um
dia no passado”, ele concluiu.
“Exatamente.
Agora, você deve estar achando que sou apenas uma japonesa velha e bêbada, mas
estou bem sóbria, apesar de ainda continuar velha. Eu pense, hey, não posso deixar isso assim, tenho que
testar. Coloquei o casaco e voltei para a moto sem pensar... afinal, quem
iria continuar essa loucura toda se tivesse parado para raciocinar? Liguei a
moto e dei a partida. Antes de sair, tive uma idéia louca. Precisava de alguma
prova, alguma marca. Desliguei a moto e, com a chave, fiz um pequeno corte no
meu braço. Tive que voltar para casa e fazer um curativo, saiu mais sangue do
que eu queria. Dirigi as mesmas nove horas, dormi no mesmo hotel. Ninguém falou
comigo como se me conhecesse, como se eu estivesse voltando para o mesmo hotel
pelo segundo dia consecutivo. Quando voltei, o jornal, a televisão, o
telefonema... tudo igual. Meu braço estava sem o corte... até mesmo o curativo
havia sumido, meu corpo viajou junto,
percebe? Não fui contra a correnteza do rio, a própria água andou comigo.
Testei novamente, mas dessa vez dirigi dezoito horas. Saí de casa na
quinta-feira e retornei na terça-feira da mesma semana.”
Ela se levantou
e deixou o dinheiro das cervejas perto do copo. Sorriu deliciosamente para ele.
“Tenho que ir...”
“Zack.”
“Tenho que ir,
Zack. Você pode achar que sou louca, mas isso não tem qualquer importância,
tem? Você não vai se lembrar de mim. E se lembrar, não vai se perguntar onde
está aquela velha louca, mas quando
está aquela velha louca”, ela piscou para ele e começou a andar para a saída. “A
estrada me chama e tenho muitos quilômetros até conseguir voltar para um
diagnóstico precoce... assim vamos matar a Vadia. Quando chegar no dia certo,
depois do tratamento do Tezuko, venho com ele para tomarmos uma cerveja.”
Zack assistiu a
velha japonesa comicamente vestida e disse a única coisa que poderia ser dita:
“Boa sorte!”
Ela agradeceu,
sem se virar, e saiu.
Ao fundo, o bartender
ouviu risadas agudas e olhou para as três idosas. A mulher que lia jornal
retirou os óculos e passou para a que estava sentada no meio, ela pousou no
rosto as grossas lentes e começou a assistir o que passava na televisão,
enquanto guardava as agulhas de tricotar. Perturbado, ele viu que ela havia
feito apenas uma longa linha com a lã. Na esquerda, a terceira velha desmontava
uma coluna feita com a mesma lã, apenas para começar a tricotar novamente.
Kashimir
tocava na jukebox.
Enquanto andava
até o homem que portava a pequena caixa, Zack se pergundou quando estaria a
velha japonesa.
Muito muito bom! Fantastico! Meliza
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