sexta-feira, 27 de abril de 2012

As Várias Vidas de Zack – 2


“E se eu disser que aqui nessa caixa, tenho o que poderia ser o fim do mundo como conhecemos?”. O homem que segurava a caixa estava vigorosamente embriagado, concluiu Zack. O cheiro do whisky alcançava, forte e acre, as narinas do cansado bartender. O homem parecia uma mancha branca no Clube, vestindo camisa e calças brancas, coberto por um sobretudo inacreditavelmente reluzente e limpo. Cabelos longos e rebeldes, quase prateados, cobriam parcialmente seu rosto, mas era possível identificar um nariz pontiagudo acima de lábios finos; um único olho verde, injetado e delirante encarava Zack, enquanto um tapa-olho repousava em simetria.
Nada como um pirata moderno louco e bêbado para continuar esse dia pirado, pensou desanimado. “Eu diria que o senhor já bebeu o suficiente por hoje e comfiscaria sua chave... mas provavelmente deixaria a caixa”, respondeu afinal.
“Toque na caixa e eu arranco seu coração.” Zack congelou, sem saber como reagir diante da ameaça. A voz embargada transformou-se momentaneamente em um tom sóbrio e sério, sem qualquer traço da bebida, apenas intenções cruas e sinceras.
“Temos um problema aqui?”, finalmente perguntou o bartender.
“Não, desde que você fique longe de minhas coisas. Mais uma dose, dois dedos, sem gelo”.
Zack contornou o balcão e pegou a garrafa, servindo uma dose exagerada da bebida, contrariando todos seus impulsos. Sabia que se ficasse, iria escutar os problemas daquela figura exótica. Hey, a Regra de Ouro já estava quebrada de qualquer forma. Ele queria saber o que havia de tão perigoso naquela caixa e o sujeito estava bêbado o suficiente para contar.
No canto escuro do balcão, há diversos ano-luz de distância, um incessante tic-tic-tic denunciava a presença das três velhas.
Em apenas um gole, o estranho homem de branco bebeu metade do conteúdo que estava no copo. “Desculpe por antes. Assumo uma posição defensiva com essa caixa. Nem sei porque a carrego comigo, deveria enterrar essa maldita coisa no meio do deserto e explodir minha cabeça com uma .12, isso sim seria o...”, um arroto subiu pela sua garganta, “correto. Seguro.”
“Acho que está na hora de você sair do...”, um forte murro no balcão interrompeu Zack. Por alguns segundos apenas a voz de Robert Plant ecoou pelo Clube. Tic-tic-tic, disse um dos extremos do balcão, quebrando a atmosfera pesada.
“Peço desculpa por isso também. Fique e me escute por alguns minutos e sumirei da sua vida, sem ter de pedir desculpa pela terceira vez, eu prometo. Escute bem e não me interrompa, vou tentar ser o mais direto possível. Nessa caixa estão meus pensamentos, em sua forma mais pura e bruta.” Ele olhou Zack com o único olho no rosto. Um olhar embriagado e, no entanto, concentrado e penetrante.
A caixa, notou o bartender, era na verdade um antiga recipiente para cigarros, talvez apenas vinte e cinco centímetros em seu lado maior. Nada daquele volume poderia ser tão perigoso. Qual o tamanho de uma idéia?, uma voz ecoou em sua mente.
“Primeiro algumas coisas que você precisa saber sobre mim. Sou inteligente, não tenho vergonha ou falsa modéstia em reconhecer isso. A porra do meu QI beira duzentos. Eu trabalhava no desenvolvimento de novas tecnologias e hardwares para quem oferecesse trabalho. NASA, Apple, IBM, você cita uma marca e eu listo o que fiz por elas. Amava meu trabalho, amava pensar e colocar as coisas no papel, traçar novas bases para novos horizontes; meus limites ultrapassavam o céu, literalmente. Passava horas debruçado sobre algum projeto sem ao menos desviar o olhar. Eu era bom, é o que quero dizer. Dedicado e inteligente, o que mais poderia oferecer?” Secou o copo em outro grande gole e apontou para o tapa-olho. “Até esse carinha aqui aparecer. Perdi meu olho em uma pequena explosão na minha máquina de café. A ironia nunca me falha: café foi meu combustível por todos esses anos e acabou sendo minha sentença. O olho se foi com uma velocidade impressionante, um pop e pronto, lá se foi minha noção de profundidade. Aqui começa a parte estranha da minha história. Algumas pessoas estão destinadas, acredito, a realizações no mínimo impressionantes, elas mudam o curso da história e se libertam das nossas prisões pseudo-neoplatônicas”, Zack se peguntou quando estaria a japonesa. “Mas para a maioria dos Grandes, dessas pessoas tão incríveis, as condições são impostas, como uma piada de Deus ou dos deuses ou de qualquer filho da puta transcendental que brinca com minha miséria. A perda do meu olho direito foi um ato imposto, veja bem. E disso saiu toda minha... condição, por falta de palavra melhor. A primeira mudança que notei foi quando tiraram as bandagens do que agora chamo de ‘Buraco’, porque é justamente isso que tenho agora; você poderia ver parte do meu crânio, se eu ousasse retirar o tapa-olho.”
Zack colocou um pouco mais de whisky no copo e bebeu da garrafa que tinha nas mãos. A cerveja aliviou a garganta seca. Sentia algo estranho no Clube, algo que não deveria estar acontecendo. Seu balcão parecia o centro de confraternização de um hospício.
“Quando retiraram as bandagens, notei uma mancha negra no tecido que ficou sobre o machucado. Era um pequeno quadrado negro, nada surpreendente. Quando sai do hospital, peguei uma lupa e examinei aquilo com maior atenção. Você conhece a Sequência de Fibonacci?”
“0, 1, 2, 3, 5, 8”, ele recitou sem problemas.
“Exatamente. Lost, magia e Bolsa de Valores, meu bom rapaz. Quando estava de repouso no hospital, fique a maior parte do tempo lendo um livro sobre as diversas abordagens da Sequência e em que locais do mundo natural ela se aplicava com perfeição, como em bromélia, girassóis e crustáceos. Bem, aquele quadrado era na verdade duas imagens sobrepostas, descobri mais tarde. O espiral de uma bromélia e um girassol.”
“Os maiores exemplos da Sequência”, a voz de Zack saiu com dificuldade. Sentia que estavam olhando diretamente para as leis que mantinham a realidade estável. Ele odiou a sensação.
“Foi como ver meu pensamento impresso naquelas bandagens. Meu coração quase parou quando vi as duas imagens. Aos poucos a idéia se instalou na minha cabeça e se tornou natural, verdadeiro clichê. Comecei a testar com pequenos desenhos e equações: tudo que precisava fazer era me debruçar sobre uma folha branca e... imaginar! O raciocínio simplesmente jorrava do buraco no meu rosto e aparecia no papel. Era mágico! Projetos inteiros facilmente desenhados, imagens, quadros, desenhos... Se eu colocasse o tapa-olho e pensasse em plantas elétricas ou em imagens complexas com calma e em detalhes, páginas e mais páginas de material poderiam ser preenchidas em alguns segundos. Nomei qualquer coisa, bartender”.
Zack pensou durante alguns segundos. Na jukebox, outra música tocava, mas ele não registrou qual. “Calvin e Haroldo. E pode me chamar de Zack”.
O homem de branco sorriu e retirou um guardanapo que vinha com uma porção de amendoin. Fechou o único olho por alguns instantes e levantou minimamente o tapa-olho. Zack sentiu a própria realidade se dobrar, sua cabeça ficou leve e ele teve que se segurar em algo para não desabar no chão sujo do Clube. Uma fumaça negra caiu de onde deveria haver um olho humano e aos poucos a imagem de um tigre e de um garoto andando sobre um tronco morto se formou. Com mãos trêmulas, Zack pegou o guardanapo e estudou o desenho. Havia erros de proporção e pequenos detalhes trocados, exatamente como se alguém tivesse desenhado os personagens sem qualquer imagem para se basear, apenas contando com a memória para formar os traços. Um desenho espontâneo de um velho bêbado.
“Incrível, não?” Zack concordou com ele sem desviar o olhar do desenho. “Por alguns meses eu produzi como nunca antes, projetos e mais projetos eram criados e concluídos em questão de horas, minha conta bancária triplicou em algumas semanas. Assim, Zack, finalmente chegamos na caixa”, ele batucava na tampa de madeira. “Responda uma coisa, você sabe o que alguns... especialistas”, ele fez o sinal universal de aspas com as mãos, “dizem dos sonhos que não lembramos?”
Zack buscou resposta no labirinto confuso que era o seu cérebro naquele momento. “Eles... eles dizem que não lembramos de alguns sonhos como um mecanismo de auto-preservação. Acho que alguns sonhos dizem mais sobre nós do que gostaríamos de saber.”
“Exatamente. Alguns meses atrás acordei sem o tapa-olho, o elástico estava frouxo e a proteção deve ter caído no meio da noite. Todas as paredes da casa estavam cobertas com desenhos e equações, medidas e graus. Fiquei um tempo decifrando e montando o que era um manual e acabei com uma máquina gigante montada na minha sala. Um Oscilador Tesla. Quando o tapa-olho caiu, meus pensamentos estavam livres, sem o filtro cultural ou qualquer outro substantivo que você quiser aplicar aqui, o fato é que meus pensamentos mais... primitivos, menos convencionais, escaparam e montaram uma máquina de terremotos! Pior, uma máquina de terremotos que funcionava. Eu destruí um raio de três quilômetros quando a liguei no nível mais fraco. Depois disso, meus pensamentos... meu intelecto, ganhou vida própria. Comecei a perceber padrões e pequenos acontecimentos em corrente que acarretariam desastres. Os Efeitos Borboleta, se você quiser assim chamá-los. Percebi como derrubar governos com uma ligação ou causar pânico com uma notícia falsa, tudo muito fácil. Mas sempre, sempre para pior. Quando uma pessoa olha para seus pensamentos em seu estado mais puro e visualiza o fim de incontáveis vidas, Zack, está na hora de sair desse mundo.”
Zack pensou no poderia fazer pelo homem vestido de branco. Pegar a caixa seria perigoso e inútil, depois de lutar pelo pequeno retângulo de madeira que poderia causar guerras e catástrofes (não havia dúvidas, afinal o desenho do Calvin e Haroldo fora suficiente), o deixaria com algo muito perigoso nas mãos; isso sem considerar que as idéias iriam surgir em uma continuidade torrencial, fluindo pela cratera facial daquele homem. Pela segunda vez em menos de meia hora, o bartender se sentiu impotente. Duas pessoas chegaram com histórias fantásticas do tipo barato, que ele poderia ler nos livros editados com folhas de jornal, brochuras descartáveis que ele poderia comprar na banca de revistas que ficava naquela mesma rua, alguns quarteirões para baixo. Em ambas ocasiões ele não tinha qualquer oportunidade de interferir, ajudar ou interromper o caminho peculiar que aquelas pessoas cruzavam: ele ouvia e assistia os estranhos saindo pela porta. Alguns retornavam, outros não. Não era essa, no fim do dia, sua principal (e única) regra?
Tic-tic-tic.
Registrou em sua visão periférica as três idosas sentadas no canto do balcão e então entendeu as estranhezas daquele dia. Com um baque quase físico, ele viu novamente a realidade dobrar, desta vez em expansão. A presença daquelas três mulheres que alternavam a visão, que teciam eternamente explicava a última hora... Ele estava em um momento em que as leis que gerem o Todo não se aplicavam e o Paradoxo aproveitava seu espaço.
Zack fez o que podia fazer diante da situação: virou a garrafa de whisky no copo e o ofereceu para o homem de branco.
“Por conta da casa.” Olhou para os outros dois homens sentados perto da Jukebox. “Tenho que atender meus outros clientes. Pegue sua caixa e vá, faça o que você tem de fazer. Ache um lugar seguro... ache o deserto do qual falou, enterre essa merda que você carrega e coloque uma bala em sua testa, o que mais posso dizer? É o correto? Não sei. Mas não posso interferir em seu caminho. E também acredito que não iria adiantar queimar essa velha caixa de cigarros. Como queimar uma idéia, ainda mais uma que simplesmente se renova?”
Zack então deu uma última olhada para o homem de branco, o pirata moderno. Resistiu à intensa necessidade de tocar na caixa e começou a caminhar até as velhas.
Pensou melhor e foi até a Jukebox. Iria seguir o ritual.
Ele nunca viu o homem sair, certamente cambalenate. Ele nunca viu se ele levou a caixa ou se estava com o tapa-olho.
As primeiras notas agressivas de The Rime of the Ancient Mariner dispararam da Jukebox.

2 comentários:

  1. Acho que Roland de Gilead está com os dias contados, pois estou me apaixonando por Zack e vc é o responsável Sr. Maurício Ieiri. Adorei. Vc sempre deixa um gostinho de quero mais... EU QUERO MAIS... Ana Eliza...

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  2. Vc esta se superando a cada dia que passa...vc esta amadurecendo como Escritor em uma velocidade incrivel. Sei muito bem o "TAMANHO" de uma ideia, e vc tambem sabe!!! ;) Parabens!!! Meliza

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