A chuva torrencial castigava o
guarda-chuva. Vestia capa para chuva e deixava sua pasta estrategicamente
posicionada em seu corpo para melhor proteger os importantes papéis, mas sabia
que invariavelmente a água iria arruinar meses de trabalho. Novas reuniões,
novos acordos para conseguir todos os envolvidos sentados na mesma mesa ao
mesmo tempo. E assinar os malditos documentos. Pela segunda vez. Tudo por causa
de sua persistência em não ter um carro. Aquela cidade tinha metrôs
suficientes, não havia necessidade de um carro para suas tarefas.
Os próximos
meses seriam um inferno. Minha vida é um
inferno, ele pensou desanimado. Um súbito baque em seu ombro esquerdo
causou um choque em sua mão e a pasta, feita com um couro barato, já desbotada
e descascada, foi ao chão. O impacto destravou o sistema de segurança e
diversos papeis rodaram pela calçada, arruinando qualquer conteúdo neles
impresso. Alcançou rapidamente a pasta, procurando salvar parte de seu trabalho
e em seguida, olhou para o imbecil que o empurrara. Segurando o guarda-chuva
entre o queixo e um dos ombros, viu uma silhueta feminina, pernas torneadas sob
uma calça preta, agarrada. Cabelos loiros, empapados pela chuva. Os tênis de um
rosa, acentuado pela água. Perfeita, ela corria apesar da chuva. Mais tarde,
pensaria que ela corria pela chuva.
Uma mão levantada, um pedido de desculpa. Ela corria na chuva, se distanciando
até sumir no horizonte.
Ele continuou ajoelhado,
a pasta a meio caminho entre o chão e seu corpo, o guarda-chuva comicamente
pendurado em seu pescoço, vendo a mulher correr até desaparecer. Logo, ele
tinha apenas os tênis cor-de-rosa na cabeça.
Naquela noite,
pendurando os papéis molhados no pequeno varal de seu apartamento, ainda
molhado pela chuva, com o nó frouxo da gravata que usou por toda a semana,
ainda pensava na corredora. Via aquela bunda redonda balançar, as pernas em
perfeita coordenação, avançando determinada. Contou os passos dos tênis
cor-de-rosa, contou as gotas que molhavam o cabelo dourado.
Durante o
jantar, quando percebeu que as assinaturas estavam irremediavelmente
arruinadas, apenas um conjunto sem nexo de manchas azuis e negras sobre o papel
sujo, pensava como seria o rosto da mulher. Como seria o rosto de alguém que
ele não conhecia? Como era o nariz de uma pessoa que ignora o que parecia ser o
segundo dilúvio para sair de casa e correr? Ele se prendeu a cada detalhe
daquela pessoa perfeita que existia somente em sua imaginação, desenhou na tela
de sua mente a curvatura de seus olhos durante um sorriso, escutou o som de sua
risada doce e sincera, uma mulher perfeita que em sua (absurda)mente, seria o
simulacro dos tênis cor-de-rosa que derrubaram sua pasta. Traçou um esboço de
seus seios, fartos, consistentes. Mamilos rosados, endurecidos pela água que
caia do céu. A marca da apendicite em sua barriga lisa, ela com certeza tinha
feito uma operação para retirar o apêndice, ele sabia.
Enquanto
escovava os dentes, levantou o pijama e sentiu nojo de seu próprio corpo, a
gordura vazando dos limites de sua roupa, os músculos flácidos balançando livre
em seus membros. As unhas dos dedos do pé estavam gigantes e tortas, os pêlos
de sua costas estavam se espalhando ganhando terreno e iniciando novas
colônias. Criada pela comida hipercalórica e pelo abuso constante de doces e
cervejas, a barriga se destacava de seu tronco. O que estou fazendo com minha vida, onde fiz as escolhas erradas?,
começou a se indagar. Às vezes sentia que estava deslocado de onde deveria
estar, tinha coisas importantes para fazer, mas não ali, não na vida que
levava. Vivia fora do que era para ser. Se ele corresse, se fosse rápido,
poderia alcançar o que lhe era suposto. O real.
Dois pensamentos
simultâneos cruzaram sua cabeça, confortavelmente afundada no travesseiro de
penas. Imaginou do que ela estava correndo. Sabia que estava vestida para se
exercitar, mas do que ela corria? E
até onde poderia ir, essa era o que ele queria mais saber sobre ela, a
corredora sem face. A mulher que mais cedo havia derrubado a pasta de couro
barato na água e destruído as assinaturas, preenchia agora tênis cor-de-rosa na
mente do homem que dormia. E os tênis avançavam, um de cada vez, altenando e
trocando, indo e vindo... Determinados e regulares, desviavam da água, dos
galhos; paravam nos sinais fechados, pulando e correndo no lugar para não
perder o ritmo. E avançavam. Desciam ladeiras, subiam avenidas. Não importava o
número de horizontes, ela percorria até desaparecer gradualmente. Até quando,
ele não sabia, mas em seu sono ela corria para sempre.
Seus pensamentos continuaram a cruzar
paisagens irreais com a mulher. A fantasia continuou por todo aquele dia. Nas
estações de metrô e em sua mesa de trabalho, enquanto diferentes pessoas gritavam
com ele por causa dos papéis, agora secos, amassados e das assinaturas
indistinguíveis, durante o café e depois ainda, quando novamente as mesmas
pessoas apontavam um dedo gordo em sua face, berrando com uma expressão maligna
enquanto grãos de comida caíam junto à saliva.
Ela ganhava
quilômetros, ganhava ruas, avenidas e cidades. Nada poderia Pará-la. Estava no
controle das ações em seu cotidiano.
Quando um
sujeito particularmente desagradável estava sendo especialmente agressivo,
ameaçando seu emprego e também, por que não, sua própria existência, suas
pernas se tornaram inquietas. Enquanto suas mãos alcançavam a mesma pasta de
couro desbotado para quebrar o nariz e três dentes do gordo infeliz que gritava
e cuspia em seu rosto, ele planejou entrar na pequena loja de materiais
esportivos que havia não longe dali. No momento em que seus pés encontravam os
computadores do escritório, começou a refletir que tinha de começar em um ritmo
mais lento, estava fora de forma. Com as calças no joelho e a urina caindo
pelos corredores do andar, ele sabia que tinha que começar a correr
imediatamente: dois seguranças avançavam em seu caminho.
Com os novos
tênis nos pés, azuis e com longas listras brancas, desenvolvidos para corridas
de curta distância, deu os primeiros passos na sua nova atividade. Para cada
metro vencido, um pouco de sua rotina se desintegrava. As pessoas olhavam com
ar inquisidor para o homem que corria de terno e tênis azuis com listras
brancas. Sentindo calor, se livrou do terno e da gravata, deixando-os cair. Vão, estão libertos, pensou com um
sorriso no rosto. Eu estou livre!
As pernas doíam,
sua barriga balançava desconfortavelmente, os ombros gritavam a cada rotação
corporal, mas ele continuou. De repente, um novo encontrão quase o derrubou.
Pernas perfeitas passaram por ele. Os cabelos loiros, agora presos, balançavam
lindamente. Os tênis eram pretos, os outros estavam secando em algum lugar,
deduziu. Ele acelerou e esticou a mão para agradecer a pessoa que mudara sua
vida, mas hesitou.
Em sua mente ela
continuava a correr. Imponente e certa do que seria preciso. Se olhar para seu rosto, ela será mais uma
pessoa. E pessoas não podem correr incansavelmente, elas se deixam grudar
onde estão e terem suas faces lavadas com a saliva de seus superiores.
Retraiu o braço
e, sem colocar um rosto em sua corredora perfeita, continuou para descobrir até
onde poderia ir.
Sem o terno, sem
gravata, sem a velha pasta, ele correu.
Lembro-me bem quando fui apresentada a este conto...estou lendo-o pela segunda vez e continuo o adorando. Parabens!!! Meliza
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