A reforma obrigou-o a realocar a
biblioteca. Estava em pânico com qualquer dano que os cadernos de desenhos,
guardados desde a adolescência, poderiam sofrer. Eram um item precioso
catalogado em ordem cronológica desde os quinze quando começou a ilustrar e
percebeu que esta seria sua maneira de expressar-se para o mundo.
Realocando-os em caixas, evitava
o mergulho na memória. Mas de 1990 caiu uma pétala morta de uma rosa.
Pegou-a nas mãos como se a lesse.. Caiu atrasada demais, pensou.
A garota chegou atrasada.
Combinaram no início da tarde. Veio as quatro. Ele estava desesperado. A empregada
avisou-o da chegada e o garoto foi recepciona-la. Fez uma mesura,
abriu-lhe o portão e ela entrou em silêncio, na sua frente, sem importar-se em ser
conduzida.
Trajava um vestido preto com botões até a cintura. A pele leitosa gritava. Evitou olhar para as pernas mas não conseguia distrair-se. Viu as veias embaixo da pele branca.
Ela se vestira para ele.
Ainda envergonhada por estar no
quarto do garoto, abriu a bolsa e retirou uma rosa. Era uma flor murcha, amassada,
colocada as pressas e roubada pelo caminho. Esticou-a a sua frente dizendo:
para que me desenhe com elas. Como Marilyn Monroe.
Eles haviam folheado algumas
revistas de fotografia do pai dela. Ela achou bonita uma imagem de uma mulher quase
desnuda com rosas pelo corpo. Mas não era Marilyn Monroe. Ele não sabia quem
era.
Já havia desenhado a garota
antes. Desenhava-a desde que a conhecera há quase dois anos. Esboços distintos
naqueles cadernos. Esboços feitos com ou sem a presença da garota, tamanha sua
memória por ela.
O homem procurou na sala
desarrumada seu atual caderno de esboço. Com o lapis na mão desenhou-a mais uma
vez. Uma imagem que só existia por conta de sua memória. Riu ao descobrir que
ainda lembrava como se fosse ontem.
A pétala de 1990 era a única
lembrança física que restou. Anos depois, a esposa obrigou-o a jogar três
cadernos inteiros por conta daqueles desenhos e, contra a vontade, após uma
discussão que terminou em uma noite dormida na casa dos pais, ele cedeu.
As velhas mãos ainda reproduziam
os traços daquela garota que a esposa tentou apagar. Mas certas memória, sabia,
não se apagam mesmo que tente sufoca-las.
Ela estava na cama, com as
pétalas espalhadas sobre si. Deitada de lado e a posição realçava suas formas.
O garoto sentia-se feliz pela garota sentir-se tão a vontade. Pediu que ela
mudasse de posição, deitando de costas, com os cabelos avolumados sobre a cama e
as pétalas em volta. Poderia desenha-las como quisesse, mas gostava de vê-la
assim. Registrar a cena além dos desenhos.
Sentado de frente para a garota,
conversavam pouco para que ele desenhasse compenetrado. Ela estava linda.
Quando se mexeu levemente, cansada da posição com as mãos acima da cabeça,
uma pétala curiosa atreveu a entrar em seu vestido.
Ele riu. Ela perguntou porque. A
pétala, disse. E ela, também rindo, olhou-o e abriu um botão do vestido. Fica
melhor assim? Os olhos do garoto faiscaram. F-fica, gaguejou. Desenhou com os
olhos livres do papel, fixos na garota.
Novamente realocou as pétalas.
Deixou que caissem sobre seu pescoço e sobre a pele agora desnuda da abertura
do vestido. Estava ao seu lado quando ela percebeu sua intenção. Sem dizer
palavra, levou as mãos até o próximo botão e abriu-o.
O velho se recorda da discussão
com a esposa. Dos gritos, do pedido de silêncio para os vizinhos não pensarem
que ali havia um futuro assassinato. Eram desenhos, apenas. Diversos desenhos
de adolescência que ajudaram a desenvolver o seu trabalho. Para ela não
importava se eram importantes ou não. Ela sabia quem era e desejava que tudo
fosse destruído. Enquanto ela gritava, ele pegou um dos cadernos e folheou. O
tom subiu mais ainda enquanto ele admirava as ilustrações que havia feito.
Ela sabia que o garoto estava
nervoso. Deitada na cama dele, com os botões do vestido aberto, entrevendo o
volume dos seios, ela sentia-se em um misto de timidez e adoração. Ele olhava
de uma maneira tão terna. E soube o que a garota faria em seguida quando uma das mãos posou levemente sobre o vestido e desceu. Se olharam, cúmplices.
As revistas que os meninos
trocavam, escondidas sob o material escolar não lhe preparam para o momento.
Não havia a tensão, o respirar acelerado e contínuo e uma sensação acolhedora
que parecia esmagar-lhe por completo. Lembrou-se de um filme que assistiu com a
mãe em que ela censurava a semi nudez da mulher e que ele, desconcertado, passou
horas depois lembrando das imagens exibidas pelo tubo da televisão.
Mas era a primeira vez que
observava as formas femininas dessa maneira. Ele soltou uma prece quase em
silêncio e a fez rir. O movimento de seus seios o deixara surpreendido. Era
como uma novidade reconhecer que, ao contrário das imagens, eles não eram um
figura sem dimensão e tinham volume.
Ele desenhou-a durante a tarde
toda naquela cena. O vestido aberto, os seios a mostra e as
pétalas destruídas mas que restauravam-se em suas mãos no caderno. Atentava-se
aos detalhes, maravilhado com a descoberta. As vezes, concentrava-se no
entorno, no interno, na composição, nos traços do rosto, pescoço e colo.
Estava exausto. Nunca havia
desenhado tanto o mesmo objeto e desenharia-o novamente se a mão direita não
estivesse como se em chamas. Tracejou um último esboço, trêmulo, e avisou que
finalizaria.
Ainda desalinhada, ela sorriu,
perguntando como tinha se saído. Bem, ele disse. E, aos poucos, a garota
fechava o vestido. Enclausurando, ele pensava, sua novidade.
Sentou-se ao seu lado, pedindo para olhar os desenhos. E ele entregou o caderno
com as mãos ainda trêmulas e ressecadas pelo esforço.
O garoto respirava fundo enquanto
ela olhava os desenhos. Ainda confidente do que ele achava, até então, misterioso e intocável.
Olha, disse sem jeito, você é
muito bonita.
E você desenha muito bem. Adorei.
E deu-lhe um beijo terno no rosto.
O velho havia desenhado três ou
quatro vezes a mesma imagem, recordando-se de uma lembrança que, não fosse a
memória e a pétala, seria nada. Na beleza juvenil situava-se a transição. A descoberta
nítida do menino para o homem, como diria seu pai. Ele amaldiçoou a si por ter
destruído os cadernos mas observou que pouco se importava as evidências
sensíveis.
Ela estaria sempre em seus traços
até a morte. No passado de carvão, lápis e papel. Memórias que ultrapassavam a expressão das ilustrações; das explicações dada a esposa; da pétala que jogou ao lixo após colhe-la nas mãos.
Onde ela poderia estar?, pensou.
Lembrando-se da última vez que a vira, há mais de quinze anos. Não importava seu destino. Ela sempre seria residente daquele mil novecentos e noventa e seus traços de aprendiz.
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