Do norte, desceu uma semana de
temporal. Uma sensação fria que não serviu para aplacar os espinhos da
alma. Era apenas alteração climática documentada. Observada por séculos e normalmente errada em previsões.
Era este pensamento que
permanecia em Ricardo enquanto aguardava a ebulição da água para o chá. Não
trouxe roupa alguma de frio, mesmo supondo que ele viria. Com a única manga
comprida que tinha, com leve marcas de uso nas axilas, e um short que não lhe
cobria os joelhos, sentia um frio que repousava em si como uma tristeza.
Projetando um falso desespero que escondia o trincar dos ossos.
Lembrou-se do pai lhe contando que quase o batizara de Richard para homenagear o avô britânico. Por muita insistência da mãe, além de uma cara feia que durou mais de um mês, desistiu. Deixando o nome como é conhecido na língua portuguesa.
Enquanto prepara o chá pronuncia
em voz baixa as variáveis de seu nome. “Olá, meu nome é Richard, em que posso
ajudá-lo?”, “Sim, sou eu, Ricardo”, “Hello, my name is Richard” e ri de si
mesmo ao pronunciar o nome inglês com sotaque brasileiro, richárdi.
Ricardo está sozinho as duas da
manhã de uma noite fria que não pôde ou quis prever. Sentado na cozinha desta
pequena casa que mal conhece, contemplando uma chuva feito uma personagem
romântica. Não sabendo se retoma a leitura, tentando se enrolar no único
cobertor da casa ou continua observando a chuva.
Sente-se deslocado de si por
estar há cinco dias em um lar pouco familiar. Esperando que a chuva que não dá
trégua termine para que possa sair do local, resolver os problemas que prometeu
ao pai que resolveria e regressar para a casa.
A cidade vizinha está
incomunicável por causa das estradas feitas de terra. Um rio temporário de lama
que interrompe os caminhos de aproximação. Por isso está na casa do avô Celso.
Uma herança usada por costume pelos outros familiares. Casa que não gosta pelo
vazio, pela lembrança do avô morto. Não entende porque deixaram a casa de pé
e não venderam quando foi possível. Agora é apenas monumento que lhe prende a
um momento anterior.
Enquanto a chuva não passa, permanece enclausurado. O computador não reconhece sinal da internet e tem
somente dois livros como amigos para passar o tempo. Um deles terminado ontem,
com o crime de tráfico de remédios placebo vendidos para o terceiro mundo
resolvido e protocolado. Resiste a prosseguir na leitura do segundo romance,
mas não há outra maneira de ver as horas passarem.
Ontem dedicou-se a explorar a
pequena casa, gaveta por gaveta. Encontrou retratos antigos e os vestígios da
última passagem das tias pela casa. Uma embalagem de Confete com poucos doces
que, aparentemente, pareciam comestíveis, mas não quis arriscar. Ir ao banheiro
implica sair na chuva, por isso tem comido pouco dos suprimentos que trouxe.
Agora sente-se arrependido de ter
assumido a vontade do pai. Lembra-se da viagem enjoada que fez até o meio do
caminho, do pneu furado, da sensação de vazio tão vasta quanto essa ao estourar
o pneu em uma rodovia pouco trafegada.
Os papéis estão dentro da
mala no mesmo envelope puído que o pai lhe deu. Um envelope tão velho e cansado
como o próprio pai. Por isso resolveu vir. Não achou que o velho suportaria a
viagem somente para reconhecer o corpo do irmão que não vê há tanto tempo.
Irmão que desgarrou-se do seio da família e agora retorna como morto, a cobrar
um tributo que nunca pediu em vida.
A chuva assola seus planos.
Deixa-o em um vazio que o faz pensar, regredir e pensar novamente. Mastigar sua
vida até este momento em que a dor parece projetar-se maior que a felicidade. É
a chuva, pensa. É a chuva.
Mas o frio penetra-lhe a pele e permanece em dor.
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