Zack abriu a cerveja que tinha nas mãos e a empurrou para o último cliente daquela noite. A garrafa esverdeada escorregou suavemente pelo balcão e pousou na mão do outro homem. “Pode contar, estamos sós.”
O homem levantou a cabeça, os olhos assustados. Seu rosto era bonito, olhos escuros como aquela noite e uma barba que subia até as frontes. Esta, igualmente escura; aquela, acompanhando o rosto quadrado. “Vo… Você falou comigo?” Na frente do homem, um vaso permanecia intocado por algum tempo. Uma orquídea estava cuidadosamente plantada na terra escura.
“Claro, acabei de falar que estamos sós. Com quem mais falaria?” Zack estudou a confusão na expressão do rapaz. “Eu faço isso há anos e posso dizer com segurança quando alguém tem algo a dizer. Normalmente, segurar essas coisas no seu íntimo não faz bem. Elas crescem e as raízes que criam podem sugar toda sua energia.”
“Por favor, não fale isso.” Ele se tornou subitamente pálido. “Eu… eu não sei se consigo. Nunca contei isso para ninguém.”
Zack puxou um banco e se sentou, o balcão entre eles. O luminoso estava apagado, a mesa de bilhar vazia e o barulho do banco sendo arrastado ecoou pelo Clube. De repente, Beatles começou a tocar na Jukebox, como se ela estivesse protestando pelo tom melancólico que tomava conta do lugar. A mesa de bilhar pareceu concordar. “Sua mente explodiria se eu contasse todas as histórias absurdas que á ouvi deste lado do balcão. Sua história estará segura comigo. E, no final do dia, quem melhor para contar algo difícil do que um bartender?”
Os olhos negros se iluminaram e um pouco da cor voltou para o rosto quadrado. “Eu a conheci enquanto acampava. Quando vi a tatuagem, estranhei e pergun-”, ele parou e virou a garrafa de cerveja, deixando apenas um terço da bebida. “Bem”, passou a manga na boca, “vamos começar do princípio. Sou botânico. Vivo em Porto de Amy há alguns anos, vim por causa de minha pesquisa. Sabia que essa cidade tem a fauna mais inusitada que você poderia encontrar? É sério, chega a ser bizarro. Espécies novas aparecem aqui, como se fosse… O Mundo Perdido, ou algo do gênero.”
“Eu sei como é, acredite.”
“Eu já presenciei uma espécie de orquídea surgir e desaparecer em menos de três semanas, inacreditável. Eu estava acampando no sul da ilha, procurando por novas espécies, quando a encontrei. Ela tinha o cabelo cinza, lindo. É estranho, certo? Sempre que eu fantasio em cenas como a que aconteceu, a mulher é ruiva. Ou oriental. Talvez espanhola, mas nunca com o cabelo cinza. Ainda assim, ela não seria tão bela… não, hipnótica, caso tivesse outra cor. Eu havia caminhado por mais de quinze quilômetros, entrando no coração de nossa mata, coletando espécimes e amostras de terra e água. O trabalho completo. Todos os músculos do meu corpo doíam e no momento em que terminei de montar o acampamento, deitei e dormi por algumas horas. Nunca faça isto, aliás, um acampamento completo pode ser a diferença entre vida e morte. Eu simplesmente estava cansado demais para qualquer outra atividade.” Parou de falar e terminou a garrafa de cerveja. “Mais uma?”
Zack buscou duas.
“Quando abri os olhos, uma sombra estava parada na entrada da barraca. O primeiro pensamento que cruzou minha mente, foi que logo estaria no estômago de algum carnívoro - o ciclo da vida, certo? -, então vi que o vulto era humanoide e meus medos se acentuaram. Melhor acabar morto por um animal do que sofrer nas mãos de… bom, de outro animal. ‘Você tem alguma comida para partilhar?’, eu escutei na voz mais sedosa do mundo. Peguei minha lanterna e a iluminei. O que vi, fez meu coração parar por alguns segundos. Os olhos eram amarelados, como âmbar, o queixo fino e o corpo esguio, as roupas estavam surradas, mas estranhamente limpas e o cabelo acinzentado a deixava divina. A mulher mais linda que vi em toda minha vida. Era estranho, ela parecia estar naquela mata há algum tempo já e, ainda assim, suas roupas estavam bem conservadas. Sem rasgos ou manchas de lama. O cabelo estava penteado e a pele limpa. ‘O que você está fazendo aqui?’, eu perguntei, ainda um pouco torpe. Ela sorriu e respondeu: ‘Eu moro aqui, bobo. O que você está fazendo aqui?’ Eu não soube o que responder, apenas levantei e saí da barraca, procurando por madeira para iniciar uma fogueira. Nada de andar com pequenos botijões de gás pela floresta: se é para fazer a busca na natureza, vamos fazer à moda antiga. ‘Faz tempo que você está aqui?’. ‘Seu bobinho’, ela me respondeu com um sorriso, ‘não vê pelas minhas roupas? Eu vim hoje. Eis minha nova vida. Sou uma delas agora’, respondeu antes de ajudar a recolher os galhos caídos por perto”. Ele parou novamente. Zack viu pelo brilho de seus olhos as lágrimas beiravam suas emoções. “Ela se movia com facilidade entre a mata fechada e tocava as plantas como se fosse a sensação mais natural. Parecia que ela estava mais acostumada com a madeira áspera do que com o toque suave das teclas de um computador, por exemplo. ‘Qual seu nome?’, eu perguntei enquanto carregava alguns galhos para o monte que fazíamos. ‘O que mais gosto daqui é que não precisamos de nome. Uma vez que meu tempo passar, vou fazer parte do todo’, ela respondeu, com um sorriso pesando nos lábios. Eu realmente não entendia o que ela dizia, por isso achei melhor ficar calado. Coletamos a madeira necessária e começamos a cozinhar a comida que eu tinha. Fizemos um belo ensopado e comemos pão com pasta de atum. Bebemos uma garrafa de vinho e observamos as estrelas, revezando o binóculos astronômico que tinha comigo. Foi uma noite agradável, ainda que poucas palavras foram trocadas.”
A Jukebox terminou de trocar o disco e Elvis Presley iniciou uma canção, algo sobre um hotel. Zack estava confortável bebendo a cerveja e escutando a história que estava sendo narrada. Às vezes parecia que o balcão era uma espécie de divã para lunáticos e o Clube com certeza funcionava como ímã para pessoas com histórias estranhas para contar. Zack olhou para o canto escuro do Clube e se perguntou quando as três velhas haviam levantado e se retirado, nunca percebia quando elas saíam ou chegavam. Voltou-se para o homem e pegou uma frase pela metade.
“…eu falei, mas então ela não respondeu, ficou olhando para as estrelas, como se fossem a única vista que teria até morrer. ‘Eu não tenho muito tempo’, ela disse, uma voz diferente e profunda, ‘já estou morta, praticamente, apenas esperando para acontecer.’ Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela esticou os braços e retirou a blusa que usava. Admirei-a nua, os seios assimétricos balançando com seus movimentos, a barriga branca refletindo a luz prateada do luar. Acho que foi esse o exato momento em que me apaixonei perdidamente por ela. Ela se virou e me mostrou uma pequena tatuagem no centro de seu dorso. ‘Como você viveria, se soubesse que tem pouco tempo nesta terra?’, seus olhos estavam voltados para o outro lado, mas eu podia sentir as lágrimas escorrendo, chovendo de seus olhos escuros. ‘A tatuagem, essa é a minha sentença. Por anos eu percorri o mundo na procura de quem realmente sou. Meu nome não importa, minha alcunha é agora um punhado de cinza jogado contra o vento. Eu vaguei por essa terra, posso afirmar; talvez mais do que qualquer um em séculos: eu vaguei por essa terra. Estive no coração de 5 continentes, visitei as florestas equatoriais e vaguei a solidão do Atacama; molhei meus pés no Nilo e no Rio Amarelo; dormi sobre as estrelas de Burma. E nunca, nunca me encontrei. Vivi uma vida egoísta, envolta no meu próprio umbigo, oca, superfícial, vivendo de noite em noite, de parceiro em parceiro, uma festa atrás da outra… uma droga nova toda semana. Abortei, entrei em overdoses, paradas cardíacas e comas alcoólicos. Eu fiz de tudo. Até me cansar, até meu espírito pedir - não, implorar - por algo diferente. Dizem que a mais longa das viagens começa com um simples passo. Então um dia eu comecei a andar e nunca mais parei. Quem eu era ficou para trás. Quem serei, está ao nosso redor.’ Ela ainda estava parada, sentada de costas para mim, banhado pela luz prateada da lua perfeita pendurada acima de nós, como se estivéssemos em um palco da broadway. Porto de Amy é uma cidade realmente linda, se você souber procurar. Mas estou divagando. Ela tinha uma tatuagem, como eu já te contei: uma mudinha de planta, recém brotada de uma semente. Sem terra, sem adubo, sem água. Apenas uma semente arredondada e uma muda. ‘Eu aceitei uma bebida em Goa’, ela me disse, ‘e quando acordei, senti uma pontada de dor nas costas. Uma velha de, sei lá, trocentos anos, a mesma que me deu a bebida, disse que em breve, eu seria parte da do todo, que estaria integrada onde deveria estar. Essa tatuagem? No começo era só uma semente. Agora já tem uma muda, certo?’ Eu assenti com a cabeça, era tudo que podia fazer. Todas as palavras haviam fugido de meu cérebro por causa daquele absurdo. Uma tatuagem que se transforma? Quem ela pensava que eu era? Ray Bradbury?”
“Porto de Amy nunca deixa de nos maravilhar”, Zack estava taciturno. “O Clube é um farol para histórias malucas, escreva o que estou dizendo.” Escreva, gritou uma voz na mente de Zack, mas ele logo a sufocou.
“Ela se virou e me pediu para beijá-la. Eu o fiz, claro. Fizemos amor quatro vezes, as estrelas em nosso teto e um pano entre nós e o solo. O cabelo, tão prateado quanto a luz da lua, me cercava e cobria, varria suavemente o meu peito. Ela estava sedenta pelo meu toque, minha saliva, minhas próprias sementes. Queria me secar, tomar toda a vida que havia em mim para somar ao pouco tempo que tinha. A mulher com a tatuagem nas costas consumiu todas as minhas energias. Quando acordei, estava sozinho e minhas amostras haviam sumido. Eu entendi o que ela quis dizer, para não aprisioná-la, não fazer com outras plantas o que poderia fazer com ela. Nas próximas semanas eu retornei para o mesmo lugar, mas ela apareceu apenas uma vez, quase seis semanas depois. Estava diferente. Os cabelos acinzentados cresciam selvagens até o quadril nú; as unhas das mãos desciam como raízes por mais de cinco centímetros e em seu torso, protuberâncias eram visíveis de onde eu estava, como se algo dentro dela tentasse romper a pele e se libertar. Ela não se aproximou, não disse nada. Apenas se virou, lentamente, os pés grudados na terra, e desapareceu na mata. Pude ver a tatuagem, uma maldição que seguirá meus pesadelos até que seja a minha vez de morrer. A semente estava inteiramente desenvolvida e caules enrolados cobriam toda as costas. Os galhos maiores formavam elevações nos músculos e em alguns pontos, sangue escorria na pele perfurada, tingindo de vermelho o verde da tinta. Eu nunca mais a vi. Não com vida.” Ele parou e molhou a garganta seca, depositando sobre o balcão mais uma garrafa vazia. Zack não se preocupou em pegar outra bebida: aquela história estava no final e ele estaria apagando as luzes em poucos minutos.
O homem tocou na planta e, horrorizado, Zack notou pela primeira vez que a orquídea no vaso era cinza. “Semana passada eu a encontrei, pouco tempo antes de um caçador passar pelo corpo e chamar a imprensa. Restavam apenas os ossos e alguns tufos do cabelo. Sei que ela pediu para não ser presa, mas não pude deixá-la naquele lugar, tão longe de mim. Eu a trouxe. Pelo menos um pedaço. Uma orquídea. Engraçado, sempre pensei nela como uma papoula. Algo mais… entorpecente. Essa é a minha história, bartender. Obrigado por me ouvir, obrigado por seu meu farol.”
Ele jogou duas notas de vinte reais sobre a mesa e desapareceu para sempre.
Onde antes estava o vaso com a orquídea cinza, Zack viu o jornal local, a data de três dias no passado. A manchete dizia em letras escandalosas que um novo mistério havia começado e a foto mostrava o porquê: uma ossada quase completamente soterrada por um emaranhado de caules e flores, dezenas… talvez centenas de orquídeas, todas elas cinzas, cobriam o esqueleto. Zack não precisou ler a reportagem para saber que os peritos identificaram ossos de uma mulher, na casa dos trinta anos, sem sinais de doenças severas ou mal-tratos. Abuso de drogas não são facilmente identificados nesses casos, ele bem sabia.
Zack fez como sempre. Aceitou o ninho de histórias bizarras que rodeava sua vida, olhou por cima dos ombros para se certificar de que as três velhas tricotando não estavam sentadas perto do balcão e apagou as luzes. Desligou a Jukebox, recolheu os tacos de bilhar e saiu pela porta.
Quando estava andando perto da orla, olhou para cima e viu a lua inchada no céu, como um queijo prateado. Pensou nas flores cinzas, que naquela mesma ilha, estariam ainda mais prateadas naquele exato momento, banhadas pela luz lunar, singelas e lindas, como ela sempre fora.
Excelente conto, parabéns!
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UAU!!! Que conto sensacional Maurício. Muito, muito, muito bom. Ana Eliza.
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