sexta-feira, 30 de agosto de 2013

O Cavaleiro e o Troll (final)

Primeira parte: http://oscarasdoclube.blogspot.com.br/2013/08/o-cavaleiro-e-o-troll-1.html

Deluc ergueu a espada e, num furioso ímpeto, cortou na direção do monstro. Quando a lâmina encontrou a pedra dura da ruína, o cavaleiro sentiu a horrível onda de choque percorrer seu corpo, quase fazendo com que derrubasse a arma. Deluc tinha o equipamento e o cavalo, mas estava longe de ser o cavaleiro que sonhava ser. Distante até mesmo do bravo herói que pensava ser. Jean Deluc continuava com o infeliz costume de descobrir as coisas um pouco tarde. Por exemplo, no exato instante em que o fio da espada encontrou a pedra, ele descobriu que lhe força e boa constituição. Seus braços tremiam por causa da fraqueza de seus músculos e as pernas tremiam por um motivo diferente.
De repente, Jean Deluc sentiu o líquido quente jorrar pelas pernas. Ótimo, ele pensou, Jean Deluc, o incontinente.
O Troll carregava um machado e, depois de saltar para trás e evitar o lento golpe do francês, avançou com a arma: o cabo feito de madeira e cabeça talhada em osso. Deluc tentou se mover, mas o peso da armadura atrapalhava os movimentos dos pés e o despreparo físico clamava o esforço da batalha. Ele sentiu o impacto, uma onda de dor explodiu em seu ombro esquerdo e sua mão ficou dormente. Tudo bem, a armadura absorveu o corte, você vai ficar bem. Você vai ficar bem. Você vai ficar-, o Troll disparou mais um golpe contra ele, errando por pouco; depois, realizou um corte transversal, e outro, e outro, e outro ainda. Deluc esqueceu da urina que escorria para fora da armadura. Era difícil esquivar dos golpes do monstros e a qualquer momento poderia cair morto, ou com algum membro quebrado. Precisava atacar o quanto antes.
Corte após corte, o monstro esverdeado grunhia em fúria e girava o machado improvisado. Quando finalmente encontrou uma abertura na defesa do Troll, Deluc estocou com seu braço direito e sentiu, com prazer quase sexual, o metal cortando carne. Uma carne macia, para sua surpresa. A criatura verde soltou um berro de dor e se escondeu nas sombras, desaparecendo antes que ele pudesse atacar novamente.
Ele respirou fundo, tentando acalmar o coração e controlar os movimentos novamente. Sentia-se surreal e infalivelmente forte, apesar das dores musculares dizerem o contrário. Olhou para trás por alguns instantes, prestando atenção nas dores que o molestavam. Deveria se recolher e disparar sobre o cavalo, voltar para casa e se calar com Mariè? Poderia tirar alguma felicidade durante as colheitas e nas horas em que ela estaria lá para aquecer a cama? Mariè Delamoure e suas coxas gordas, seios fartos e buraco quente. Talvez pudesse voltar e esquecer toda aquela loucura. A armadura estava amassada, é verdade - e mijada, não posso esquecer que ela está mijada - mas ainda poderia vendê-la por um bom preço. Principalmente se a espada fosse junto. Ficaria com o cavalo, ele seria útil no campo, mas o que poderia fazer com a vestimenta e a arma, se tudo contra o que teria de lutar era o calendário? Jean Deluc cheirou seu próprio mijo e decidiu que aquela não era sua vida. A invencibilidade esvaiu-se de suas veias, tão rápida quanto chegou. Aos diabos com fama e glória. Mariè, minha gorduchinha linda, estou chegando! Abra as pernas para seu varão!
Começou a andar com passos apressados, passos que ecoavam pela ruína como o arrastar de cadeiras em uma biblioteca silenciosa. Se fosse rápido, talvez o Troll não atacasse novamente. Ao menos era para o que rezava.
Já perto dos pilares que marcavam os limites da ruína, Jean escutou um movimento há pouco metros e disparou em uma corrida. Ezequiel estava amarrado a árvore fina e os dois camponeses haviam desaparecido. Filhos de meretrizes, cheios de escrófulas! Olhou para trás e viu o Troll, agora de baixo do sol. Foi então que notou que havia algo de errado com aquele monstro.
Trolls, ele bem sabia, deveriam temer o toque do sol, pois eram atormentados por uma maldição que os transformava em pedra. Mas aquele espécime, em especial, parecia não se importar com o calor da gigantesca bola de fogo que iluminava e aquecia o céu. O monstro ainda corria em sua direção, machado em mãos e gritando furiosamente. Trolls têm o sangue vermelho? O monstro, ele notou afinal, não tinha nada de monstruoso. Jean Deluc olhou bem para o homem barrigudo que corria em sua direção, gritando como uma criança que atacava uma matilha de cães. Ele vestia um pano esverdeado, um pedaço de tecido que já conhecera dias melhoras, dias gloriosos em que seu tingimento estava vivo e limpo. Mas agora, agora era um pedaço velho e sujo de cores desbotadas, rasgado em mais de uma parte. O homem tinha ainda uma máscara de madeira pendurada no rosto, com dois olhos pintados sobre um fundo marrom, a boca negra em um esgar cômico. A máscara sequer é verde!, ele pensou, irritado.
Sentiu vergonha de sua covardia dentro da ruína e pulou sobre o homem vestido de Troll, enterrando a espada no centro de seu peito. Com o choque entre eles, a máscara de Troll se desprendeu e caiu na terra batida que rodeava a antiga igreja. O homem dirigiu um olhar surpreso, quase magoado, para o cavaleiro francês antes de deixar o último suspiro escapar pelos lábios entreabertos.
Jean Deluc puxou a arma de rasgou ainda mais o corpo já sem vida. Ele retirou o elmo e tentou enxugar, sem sucesso, o suor que ardia em seus olhos. O Troll era, afinal, um dos camponeses que contaram a história do Troll, o gordo que sabia falar latim. Ele estava mais feio, morto. Meu primeiro Troll, Deluc pensou. Agora, onde estaria o mudo? Havia outro monstro para caçar. Deluc, caçador de Trolls. Fama e fortuna. Fama. Fortuna.
O cavaleiro francês, também ele um camponês, mas com sede de riqueza e reconhecimento, pensava sobre moedas de ouro empilhadas e mulheres que se jogavam aos seus pés. Quando a flecha entrou em seu crânio e estourou um dos olhos em um sonoro pop, Jean Deluc, novamente atrasado em suas descobertas, entendeu que gostaria de levantas as pernas de Mariè e se deliciar em seus buracos. Plural. Dado o devido tempo, Deluc subiria em seu cavalo e voltaria ao lado da mulher gorda, de onde nunca mais sairia. A última coisa que registrou antes de morrer, foi o cheiro acre da própria urina.
O camponês teve dificuldades em retirar a armadura do francês. Ele xingou enquanto enxugava, o melhor que podia, o mijo que se acumulava no interior do metal. Andou até o corpo do francês e o perfurou com uma flecha que tinha em mãos, a mesma com a qual havia retirado sua vida. Isso o fez se sentir um pouco mais calmo. Quando ele estava completamente vestido e com espada em mãos, o sol já começava a desaparecer no oeste. Escutou um cavalo se aproximando e se voltou para a origem do som, descobrindo dois cavaleiros e seus escudeiros.
“Acalme-se”, disse um deles em perfeito espanhol, “estamos apenas de passagem.”
“O que aconteceu aqui?”, o outro perguntou com um tom alarmado.
O camponês subiu no cavalo- O nome dele é Ezequiel e é melhor eu segurá-lo com mãos firmes -, que relinchou em protesto, na esperança que o odor do eqüino anulasse o cheiro de mijo que ele exalava. “Esses dois me ajudaram a lutar contra um Troll, o sacrifício deles nunca será esquecido. Meu nome é Jean Deluc e sou um matador de Trolls.”
Os dois cavaleiros trocaram olhar e apertaram a empunhadura de suas armas. “Onde está o corpo do monstro?”
“Dentro da velha igreja. Vá ver com seus próprios olhos, se duvida de minha palavra. Mas esteja preparado para embate, quando voltar de lá, defenderei minha honra.” O camponês, conhecido na pequena vila por ser mudo, gostava de brincar com as palavras e tinha aptidão para ameaçar com apenas uma breve alteração na voz.
“Não há necessidade”, o cavaleiro respondeu, lambendo os lábios que ficaram repentinamente secos. “Esse lugar já viu violência o suficiente. Eu não sabia que havia Trolls em nossa terra, acreditava que ele viviam para o norte.”
O mudo apontou para a ponte de pedra, tão velha quanto a igreja. “É o que dizem, onde há pontes…”
Após concordarem com a cabeça, os dois homens convidaram o novo companheiro para beber com eles e contar sua história. Deluc, o matador de Trolls. Era uma história digna do tempo deles.
Era, afinal, o início da história do cavaleiro que matava monstros, carregando apenas sua espada e seu arco.

Jean Deluc, o flagelo de monstros, deflorador de donzelas. Pela fama. Pela fortuna. 

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