sexta-feira, 2 de agosto de 2013

"Mi" - "Lá"

A lua brilhava no céu, sorrindo como o gato nas histórias da pequena Alice. O Trompetista tomou fôlego, fechou os olhos e deixou suas notas correrem soltas pela noite gelada. Elas subiram e seguiram o vento, belas e suaves, enchendo a noite gelada com o a alma do Trompetista. Eram notas longas, prolongadas além do suposto, traduzindo no Jazz, o verdadeiro olhar de blues do homem que segurava o trompete, olhos como duas bolas de gude brilhando sob o sol que morria por trás dos telhados altos que o cercavam, um brilho que em breve se extinguiriam, carregados da saudosa lembrança por algo que nem mesmo eles reconheciam. Uma tristeza que existia pelo bem de existir, pura e simplesmente. Por isso ele fechava os olhos e derramava os sentimentos pelo trompete.
As notas subiram em cadeia, sem nunca deixar de soar em direção à lua que, impassível, ria no céu escuro.
Pessoas, passos apressados, tosse seca, o som insuportável de celulares. No meio da multidão, o Trompetista declamava poesia, dizia as verdades mais enterradas em seu coração e seguia ignorado. Vez ou outra, o tilintar das moedas no seu chapéu virado de ponta cabeça aos seus pés, moedas que vinham em sua direção mais por hábito do que por reconhecimento.
O Trompetista de olhos fechados tecia a narrativa. Contava sua história no Jazz, ainda que a única a escutar era a lua a sorrir, o sorriso cruel: o gato da Alice.
Foi então que ela chegou, toda ouvidos. Primeiro, aproximou-se com timidez, passo atrás de passo atrás de passo, balançando ao sopro do Trompetista. Carregava a enorme caixa com formato de contrabaixo, jogando todo o peso do corpo magrelo do outro lado, tentando compensar o peso do instrumento.
O fôlego morreu e a nota extinguiu-se pela metade. Segurando o trompete silenciado, estudou a garota. Ela era bonita, os olhos negros e selvagens, o cabelo preso numa confusão de fios e curvas. Nas orelhas, dois brincos em formato de clave eram molestado pelo vento frio. Colocou o instrumento nos lábios molhados e uma nota se seguiu, curta e repentina: sonora questão. A garota sorriu e deitou a enorme caixa, dobrando o corpo sobre os joelhos protegidos por uma calça desbotada. Seus dedos ágeis liberaram o contrabaixo e ela o apoiou na calçada, dedilhando em resposta para o Trompetista. Em seguida, apresentou-se em escala de dó sustenido.
Ele escutou com atenção, absorvendo o que ela dizia. A lua, vacilou o sorriso. Ressoou o trompete e respondeu com três notas rápidas, seguido de um longo grave. A Baixista batucou a madeira e correu os dedos pelo braço cheio de cordas, pressionando com velocidade e precisão; exclamando para o metal.
Puxou novo fôlego e disparou nota sobre nota, escala seguida de escala, exclamação, interrogação, tese, antítese e síntese.
A garota concordou com vigor, balançando a cabeça rapidamente e girando o contrabaixo no próprio eixo. Ela exclamou em mi, ele perguntou em . E logo conversavam em melodia, madeira e metal em perfeita sintonia. Falando ao mesmo tempo, dizendo em vozes baixas e altas, eles se conheceram. Souberam tudo um sobre o outro, sem nunca trocar palavras, fizeram amor melódico - uma jam perfeita -, fumaram em seguida as partituras improvisadas.
Entre um solo e outro, o blues ficou apagado e os olhos do Trompetista se iluminaram na mais pura bossa.
A lua, sem poder sorrir para a tristeza do Trompetista, desapareceu e o céu escureceu, deixando apenas o Jazz para enfeitar a noite gelada.

Um comentário:

  1. Muuuuuuuuuuuuuuuuuito bom Mau. Texto delicioso. Vi o trompetista e a baixista, vi a lua, ouvi a melodia. Vc me coloca dentro do texto. Parabéns e obrigada pelos momentos de prazer, pelas emoções. Ana Eliza.

    ResponderExcluir