Nesta noite de inverno, ao colocar as calças do moletom marrom, primeiro a perna direita, depois uma pausa para equilibrar e colocar a esquerda,
Getúlio, nome de batismo em homenagem ao presidente,decidiu tornar-se um homem
mudo.
A decisão não aconteceu de repente como parecia. Se fez lentamente como as machas de mofo do teto. Uma a uma até o dia da incontestável afirmação de que o ambiente estava inabitável
e incomodava a respiração. Como gotas sulfúricas que caem em um copo, dissolvendo-o.
Então, na manhã seguinte, decidiu
ser o mesmo homem cordial que era, mas com menos palavras. Não poderia se dar
ao luxo de ser mudo sem parecer deslocado, sem evitar um julgamento prévio dos
vizinhos e do porteiro. O mundo exterior não lhe incomodava. Estava dentro de
seu campo neutro de convivência. Agudo era o outro, o circulo interior, que
ultrapassava as portas da casa imaginária.
Decidiu se fechar para os
conhecidos, os colegas, os amigos, a família. Um protesto que, por estar
silencioso, ninguém compreendeu a razão. Quando lhe indagavam os motivos de seu
silêncio, erguia uma das sobrancelhas, fazia um meio sorriso e balançava a
cabeça em negação, como se risse de todos.
Getúlio queria que o olhar
falasse mais que palavras. Um cinema mudo, anterior ao verbo, que expressasse,
de maneira mais nítida, os sentimentos sem a verborragia das línguas. Desejava
ser simples. E, em sua simplicidade, optou por ficar em silêncio.
Os amigos estranharam e só
perceberam uma relação de causa e consequência quando refletiram que todos, sem
exceção, recebiam o mesmo tratamento. Alguns se sentiram culpados, achando que
haviam feito algo ao rapaz. Retomaram mentalmente últimos diálogos, mas não
encontravam razão para seu silêncio, a não ser um sentimento que não
tinham observado ou loucura completa.
Mas Getúlio desejava ser simples.
Naquela noite enquanto aquecia-se do frio vestindo seu moletom, lembrou-se de
Laura e de como era difícil manter qualquer diálogo que fosse, até o mais
trivial. Laura, que conhecera há cinco anos, sempre parecia inserida em um
senso de abarrotamento e velocidade que nunca lhe permitia conversar com
Getúlio. Nenhuma mensagem. Nenhum olá. Nenhuma resposta as suas perguntas
ínfimas sobre assuntos que ela poderia gostar, apenas para manterem uma conexão
quase morta.
Ainda semi nu naquela noite, fez
de Laura a perspectiva de sua vida. Como cartas de baralho foi expondo cada
relação sobre a mesa. Cada morte antecipada por desentendimentos, acidentes
aéreos, despedidas involuntária, desprezo e uma sensação de quase morte que lhe
tirava quase toda vida.
O toque do tecido em suas pernas
lhe deu alívio. Dando-lhe uma sensação de completude responsável pelo
sentimento de clareza que lhe surgiu naquele instante. Então, decidiu emudecer.
Percebeu que como sua casa, a
vida dentro de seu imaginário abstrato, estava cheia de bolor. Laura, cuja a ida
para outra cidade matou mais que a amizade; Jonas e o casamento que o tornou um
homem melhor e indigno de viver com os solteiros; Amanda e a sensação de que
lhe fizera um mal irremediável; Carlos que lhe disse sem expectativas sobre a
amizade, por não ter aquilo que desejava; E até uma paixão do colégio, Natália,
lhe parecia estranha quando, após diversas semanas de encontros e expectativa,
parecia alheia a ele, como se tudo não passasse de uma simulação.
Getúlio preferiu fechar-se em si
mesmo. Deglutir a própria solidão e viver com seus fantasmas. Mudo sentia somente
a si. Na entrega que havia feito a outros, recebeu apenas tristeza. As relações eram fogos de artifício; brilhavam e morriam. Mudo completava a si mesmo. Negava a própria sensação de ser negado. Afastava-se para não assistir o definhar lento da morte. Das mortes de
cada um de seus entes queridos. A distância. O silêncio. A mentira. Se tudo
viraria cinzas, preferiu se calar.
Parecia infantil. Como o perdedor que vira o tabuleiro quando se encontra encurralado. Getúlio estava velho e infeliz. A vida o encurralou. A consciência de que tudo era transitório e, a cada noite, a cada pergunta não respondida de Laura, a cada desistência de encontros com Carlos, ele sentia-se um pouco mais só.
Parecia infantil. Como o perdedor que vira o tabuleiro quando se encontra encurralado. Getúlio estava velho e infeliz. A vida o encurralou. A consciência de que tudo era transitório e, a cada noite, a cada pergunta não respondida de Laura, a cada desistência de encontros com Carlos, ele sentia-se um pouco mais só.
Sozinho no meio de um salão que imaginava
cheio de entes queridos mas que, ao procurar diálogos, encontrava-se distante
de qualquer conversa. Um salão a meia luz, com um chão forrado de uma pós festa
sem nenhuma comemoração. O bolor das paredes como a única constante. O mais
antigo conhecido.
Getúlio se calou naquela noite em
diante.
Adorei o conto.
ResponderExcluirParabéns!