Ele sorveu um pouco do café. O líquido amargo desceu por sua garganta e ele pôde sentir os músculos relaxando com o jato de cafeína. Era ridículo, bem sabia, o fato de estar tão viciado na droga que não mais o estimulava: relaxava, como se a própria química de seu cérebro tivesse mudado. Talvez tenha heroína misturada no café, pensou, procurando justificativa para si mesmo.
De repente, sua expressão mudou. Um brilho, o brilho do olhar curioso que apenas as crianças têm o direito de possuir, tomou conta de seus olhos e ele se ajeitou na cadeira, assumindo uma postura mais confortável. Colocou os dedos sobre o teclado e começou a disparar palavras, tecendo a trama do café misturado com heroína. Imaginou toda uma distopia horrível, o pior cenário possível. Uma sociedade ele criou, cheia de controle, de supressão e censura, uma obra digna de meados da década de oitenta, que faria chorar o grande Bradbury. O combustível de suas piras megalômanas não eram, no entanto, os livros que queimavam na temperatura de 451ºF, mas o café, moído ou em grãos. Assistiu, com crescente horror, o fogo que consumia toneladas do grão escuro, sentindo o cheiro doentio do café queimado e destruído. Toda distopia precisa de uma resistência organizada, como um Moriarty precisa de Holmes. Deu vida para os traficantes de café e para os viciados que percorriam as ruas escuras e perigosas das cidades por todo o mundo, procurando o tráfico da nova droga ilícita. Todo um mundo nasceu e morreu em seus dedos.
Mas não estava satisfeito. Não era bom o suficiente. Precisava de uma linha mais ambiciosa.
Apagou as páginas escritas com dois simples comandos e estudou, desanimado, a tela em branco. O café estava frio. A noite avançava em direção da aurora.
Dedos ansiosos procuraram pelas letras certas e ele criou uma combinação única de palavras em corrente, formando frases, parágrafos e páginas. Escreveu e bebeu o café gelado, fazendo uma careta a cada gole. Desta vez, visitou uma Europa devastada pela Segunda Guerra Mundial, manchada pelo sangue de milhões. Nela, um soldado Aliado procurava cruzar a França para encontrar os pais de uma criança sob seu zelo. Era o batido cenário de um mundo infestado por zumbis, as mesmas privações, dificuldades e desconfiança; as escolhas difíceis tomavam conta da narrativa e atos abomináveis marcavam as personagens irreversivelmente. O perigo era outro, no entanto. Os nazistas eram inteligentes e bem treinados, máquinas perfeitas de destruição e capazes de maldades mais chocantes que as dos mortos que caminhavam. Os sobreviventes da terra ocupada ofereciam riscos; era necessário roubar. O soldado e a criança avançavam, sem apoio, sem destacamento, sem esperanças.
Ele parou.
De um minuto para o outro, estava na pele de uma criança que podia trocar os Planos com sua vontade. O garoto vivia cada dia em uma realidade, trocando de casas, famílias e amigos. Mas havia uma pessoa que constante, o farol de sua jornada. Trocou de tantas vidas que se esqueceu quem era.
Não, não estava bom.
Japão, século XVII. Um ronin atravessa o sul do país, deixando para trás um rastro de sangue e perseguição, até encontrar um padre português, clandestino em solo japonês. Ele deveria arrancar seu pescoço e obter perdão para todos seus crimes, mas cria um laço com o europeu: são dois párias daquela sociedade absurda, duas almas renegadas pelo seu tempo e espaço. O ronin decide que precisa ajudar o velho jesuíta alcançar a praia e fugir do shogunato. Mesmo que custe sua vida.
Não, não, não! O que escutava era ainda outra canção. Um zumbido constante ainda dominava sua mente e atrapalhava os pensamentos. Era outra história que pedia para ser contata.
Um grupo de leprosos que fugiam da Peste Negra? Hilário, mas não. A história do mundo manipulada pelos cavalos de grandes generais? Talvez, mas não naquele dia. Cartas trocadas entre dois velhos amigos, um deles morto há décadas?
Eram tantas as opções que ele não conseguia decidir qual delas escutar, qual clamava por sua atenção.
Entre as vozes das histórias de sua cabeça, verdadeira histeria narrativa, ele se deixou cansar, pulando entre uma e outra.
Amanhecia. Naquele dia não houve escrita. A televisão ficou ligada no volume máximo.
Ele abriu uma cerveja e escolheu a poltrona mais confortável e afogou as vozes de sua cabeça.
Maurício, o teu texto é uma excelente reflexão do efeito da cafeína. E não só.
ResponderExcluirVi-te por dentro. Reconheci aquele rapaz com a cabeça tão cheia que passava de um assunto para o outro no intervalo de uma pulsação.
Cheio de vida, cheio de coisas para contar, imaginação transbordante, ligações únicas... Saudades.
Tânia