“E se esse fosse nosso último encontro?”, ela perguntou.
Era linda e isso, essencialmente, era o que passava em sua mente, nada mais:
encoberta por uma nebulosa formada por martinis e scotchs, ele não podia formar
pensamentos coerentes no presente momento, ao menos era no que acreditava.
Fazia anos que não a via e, para sua surpresa, daquela garota com ranho
escorrendo pelas narinas uma musa havia sido esculpida, capaz de cultivar os
mais belos poemas líricos que uma pena poderia conceber.
“Por que diabos seria a última
vez?”, perguntou com a voz embargada.
“Estou pegando um avião daqui
algumas horas, para… para a União Soviética! Descobriram que sou uma espiã dos
comunistas e vou me abrigar atrás da cortina de ferro. Nunca mais poderíamos nos
ver, seria perigoso…”, ela sorria com o calor de mil sóis. Podia vê-la na pele
de Ingrid Bergman em Casablanca, outro cenário mesmo situação. Paris tinha uma
mística mais atrativa, mas Moscou não deixava de ser interessante. Ilsa… eu costumava saber isso.
Porra, estou bêbado… Deus, como
é linda!
“Uma idéia besta. Estamos em pleno
século vinte e um”, saiu como uma só palavra,
vintum, “e não existe mais nenhuma cortina no leste europeu. E a
U.R.R.S caiu, caramba!”
“Por todo a Europa do Leste?
Nenhuma cortina?”
“Não. As pessoas acordam no
primeiro raio de sol por lá, não sabia?”
Os dois deram uma risada alta e ele
deixou um pouco de scotch sair pelas narinas, sentindo o forte ardor. Os
Beatles cantavam sobre a revolução e a música se misturava ao som de algumas
dezenas de vozes, todas animadas, todas cuspindo palavras amigáveis ou tentando
convencer alguém a ir para a cama. Ela parou por alguns segundos e balançou a
cabeça ao ritmo da batida e bebeu um pouco mais da cerveja que esquentava no
balcão do Clube. Ergueu a cabeça e tocou no cabelo do velho amigo, empurrando
uma mecha negra que caía sobre a bochecha esquerda. “Você está bem diferente.”
“Eu tive de crescer. É que devemos,
não é? Você está bem diferente também, está linda.” O elogio saiu natural e ele
não sentiu qualquer indício de vergonha. Você sabe como é, seu corpo afogado no
álcool não abre espaço para sentimentos mundanos como vergonha.
A mulher corou no mesmo segundo e
recolheu a mão. “Obrigada. Eu era bem gordinha na nossa época.”
“Não foi isso o que eu quis dizer.”
“Tudo bem, estou ciente disso, de
verdade. Todos devemos crescer uma hora. No colégia éramos grudados e você me
conhecia como ninguém. Acho que nunca me senti tão segura com outro alguém,
mesmo hoje”, ela rodou com o dedão a aliança que pesava no outro dedo. “Por que
nos afastamos? Eu não consigo me lembrar.”
Ele brincou com o copo, enxugando
um pouco do suor que escorria pelo vidro e jogou algumas castanhas na boca,
mastigando lentamente. “Também não recordo”, respondeu por fim. “Você cresceu,
eu suponho, e eu não. Simples assim. Eu continuei a ouvir Led Zeppelin e
Beatles e a sonhar com a fama que eu ganharia com minha banda, lendo Tolkien e
King, enquanto você começava a usar maquiagem e conhecer caras mais legais.
Caras com carros. Ou motos.”
“Isso não é crescer, é algo
impossível de definir. Acho que foram as outras garotas falando em minha
cabeça, mostrando esse outro lado que eu poderia ter, uma outra garota que
poderia ser. Maquiagem, carro, festa, sexo… coisas fora do meu alcance, eu
pensava. Não poderia ser feliz com isso tudo na cabeça. Eu acordei e resolvi
que a menina que gostaria de ser estava presa em uma jaula íntima, uma
calabouço dentro de minha cabeça.”
“E eu tinha a chave.”
Estudou seu rosto por alguns
momentos. “Odeio quando você coloca palavras em minha boca.”
“Odeio quando você deixa tudo
subentendido e me dirige esse cinismo.” Entornou o que sobrava da bebida e
praticamente jogou o copo contra o balcão, pedindo mais uma dose. Abriu a boca
e desistiu, franzindo a testa. “Desculpe, eu não preten-”
“Tem razão.” Ele parou de falar e a
encarou, sério. “Me afastei porque nunca poderia ser quem gostaria estando
perto de você. De repente, eu era a garota que você sonhava, uma estranha para
mim mesma. Entenda, por favor.”
A bebida chegou e o bartender disse
qualquer coisa sobre ter cuidado com os copos, ele acenou com a cabeça - sinal
de entendimento e pedido de desculpas - e deu outro grande gole. “Entendido.
Era uma péssima influência para você.”
“Não, jamais uma má influência. Eu
diria… bom, eu diria que era uma paixão juvenil.”
“Sério?”
“A mais pura verdade. Avassaladora,
como aqueles tufões que encontram incêndios e destroem qualquer coisa no
caminho. Eu te amava com todas as minhas convicções, mas nunca vi um único
sinal de que era correspondida. E cresci, acho. Fui para longe, me casei, fui
promovida. O pacote todo, qualquer clichê que você quiser mencionar.”
Sentia-se ainda mais perdido na
nebulosa mental. “E é por isso que estamos aqui?”
“Estamos aqui porque eu me arrependi.”
“Arrependida?”
Ela mordeu o lábio e qualquer sinal
de ira foi embora. Queria beijá-la naquele instante, entrelaçar-se no corpo
despido da mulher e se perder em suas curvas, ignorar que ela estava
comprometido ou que havia ferido seus sentimentos tantas vezes no passado.
Queria apenas sentir seu sabor, impregnar-se no seu cheiro suave. “Às vezes
acordo no meio da noite e escuto um ou outro trovão. Algumas vezes chove,
outras não. Mas em todas elas eu me levanto da cama silenciosamente, preparo um
café e fico olhando pela janela por longas horas, relembrando todos meus erros,
contando nos dedos das mãos os relacionamentos vazios que tive e porque nunca
superei o que senti por você. De qualquer ângulo que eu analise, você é a raíz
de todas as minhas angústias. Resolvi que deveria te encontrar e ver como sua
vida transcorreu. Eu te devia isso, acho. Uma espécie de encerramento. E uma
desculpa sincera.”
Desculpa, saboreou a palavra. Estamos
repetindo essa palavra inúmeras vezes, não? Era um gosto insosso, vazio. Sentia
apenas a palavra e não o sentimento a ela ligado, como se ela estivesse naquele
lugar apenas para fugir do tédio que sentia.
“Aprendi muito nesses anos”, a
mulher continuou, “e minha lição mais valorosa foi a necessidade que senti em
te buscar, em ver seu rosto novamente. Diga algo, por favor.”
Havia muito para digerir. Todo o
tempo que havia passado sentindo-se isolado após perder a única amiga - e
primeiro amor - de sua juventude, as longas horas sentado, enterrado em algum
livro, ocupando a cabeça para tentar esquecer a garota que agora o ignorava.
Ele queria ficar sobre as próprias pernas e fazer um discurso humilhante,
culpar a bela mulher por todas as derrotas em sua vida miserável. Mas essa era
uma atitude reservada para os protagonistas de Hollywood. Na vida real, ele
refletiu, as pessoas raramente dizem o que realmente querem vomitar nos ouvidos
ao seu redor. Ele abriu a boca e disse: “O que aprendi nesse meio tempo foi que
o melhor tratamento para alguém que vê sangue na própria urina é mijar com a
luz apagada.”
Ela sorriu um sorriso amarelo e
endireitou as costas no banco de madeira. “As pessoas precisam se despedir
todas as vezes, era o que estava falando antes. Sempre pode ser a última vez
que você estaria encontrando alguém. E se eu morresse dormindo, ou estivesse
indo para a lua? Você não se despediria de mim se soubesse que nunca mais me
veria?”
“Seria a última vez que nos
veríamos?”
“Seria”, ela agora sorria com
sinceridade.
“Eu não diria ‘tchau’.”
“Não?”
“Não, eu diria para você se foder.
Bem fundo.”
Explodiram em risadas e ela
continuou, depois de recuperar o fôlego, a tecer cenários que justificariam sua
permanente ausência do planeta e como seria importante ele se despedir pela
última vez. Pelo resto da noite, foram novamente os jovens apaixonados que
estavam perdidos em algum lugar, fundo nos labirintos de condução social que
agora eram suas personalidades. Conversaram e beberam, sorriram e se abriram.
Ela contou sua vida, ele reclamou dos últimos anos; contaram de seus casos e
narraram os acontecimentos engraçados, até o momento em que atingiram o lugar
estranho que existe em todas as conversas, onde não há nada mais a ser dito e
as pessoas permanecem encarando o próprio copo por um longo período de tempo.
“Sobre o que eu disse antes, o
motivo que te procurei…”, ela acariciou seus dedos. Um toque leve e macio,
ainda assim com o peso de cinco mil bombas atômicas.
Ele retraiu a mão, desviando o
olhar dos olhos penetrantes da mulher e nada disse. As antigas feridas
sangravam. Era Casablanca novamente. Ele não teria a garota, mas saberia sempre que foi por ela desejado. Isso teria de ser suficiente.
“O que você esta pensando?”, ela
perguntou, depois de um longo silêncio entre eles.
“Que scotch é uma merda.”
“Hum…”, respondeu. “Eu não saberia
dizer o que é um scotch, mas deve ser realmente muito ruim.”
Ele se levantou, deixou sobre a madeira úmida do balcão uma quantia que considerou suficiente e, cambaleando
levemente, olhou para o relógio. “Tenho de ir. Eu te ligo outro dia”, prometeu
antes de começar a andar para a saída, sem se despedir.
Permaneceu sentada, olhando para a
costas do velho amigo que se afastava. “Ei!”, gritou e todos os presentes se
voltaram para ela. “Vá se foder!”, berrou o mais alto que pôde.
“Bem fundo!”, respondeu. O homem
sorriu e acenou de volta antes de sair pela porta e desaparecer para sempre.
Texto muito bom Mauricio. Adoro seu estilo. Parabéns. Ana Eliza
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