sexta-feira, 3 de agosto de 2012

London Noir 1 – Duas Garrafas de Jack


Meu nome é Jonhatan Raymond. Todos os dias acordo e ando pelas ruas cinzentas de Londres, fazendo dinheiro e vivendo uma vida que adoro. Eu sou o cara que você encara no metrô, com um terno suado e uma gravata apertada no pescoço, e imagina o tipo de vida enfadonha que leva. E você está certo, minha vida é enfadonha e isso é tudo que sempre quis. Mas é melhor começar pelo início, como todas as histórias memoráveis. Meu nome não é Jonhatan Raymond e esse é o melhor começo para a minha história.
Perto do distrito londrino de Camden Town, há uma porta vermelha marcada pelo tempo, a tinta velha está descascada, a maçaneta opaca sempre suja pela gordura das mãos de viciados em heroína e imigrantes ilegais sem chances de melhores condições, seja lá de onde vieram. A porta se abre para um corredor escuro e claustrofóbico, do tipo que você precisa apoiar nas paredes e andar rápido até encontrar um aposento mais iluminado, porque a sensação de que algo está alí para te fazer mal é uma das características do lugar. Sua mão seguirá o papel de parede mofado até a escada no fundo, acredite. Suas pernas hesitantes farão com que cada degrau grite injúrias em rangidos secos e triturantes. O barulho de projéteis disparados, crianças chorando e casais berrando o mais alto que conseguirem é a trilha sonora do prédio esquecido pela cidade. Passar por esse corredor, caro Estranho, é um teste para sua sanidade. Se de alguma forma você for doente o bastante para atravessar os vinte passos até a escada e escalar todo o caminho, emergindo cada vez mais no lado escuro de Londres... bem, você está no lugar certo.
A porta do segundo andar parece ter saído de algum set de filmagens em Hollywood. Um vidro ocupa dois terços e nele está estampado meu nome, Chandler D. Humphring, próximo a um Olho de Osíris. Não é nada supersticioso; apenas um símbolo que parece funcionar para o tipo de pessoa que me procura, bastardos sem moral que acreditam em qualquer baboseira que venha de alguma terra distante e exótica. A terceira linha escrita na porta diz: Detetive Particular. Ela só não é perfeita porque não é em preto e branco.
Na sua mente você já sabe como pintar o cenário. Dezenas de páginas antigas de jornal estão espalhadas pelo cômodo, sobre a mesa central e pelas duas cadeiras sujas em que as pessoas colocam suas respectivas bundas na procura de minha ajuda, o desesperado último recurso. Uma planta quase morta permance, murcha e caída, em um grande vaso no canto esquerdo de quem sai; na parede da direita, um cabideiro com minha capa de sarja e meu Fedora; ao lado do cabideiro amarelo, o único arquivador de metal com quatro gavetas separadas, todas cheias até a capacidade máxima de pastas e arquivos, notas fiscais evasivas e fotos de pessoas mortas. Estou sentado na cadeira de encosto alto e, como você deve saber, com as duas pernas apoiadas sobre a mesa de madeira, um chiclete antigo em uma das solas de meu sapato estranhamente bem engraxados e um cigarro nos lábios. A fumaça sobe em colunas belas, quase mágicas. Na mesa, perto de meus pés, o único retrado de uma família feliz marca meu passado e o motivo da sombra carrancuda do que antes era. As gavetas da mesa estão trancadas, mas de alguma forma eu não preciso mentir sobre o revólver ou o litro de whisky consumido pela metade, o lugar de melhor acesso: como eu disse, a cena só não é perfeita por não ser em preto e branco.
Como manda o clichê, ela entrou pela porta com sedosas pernas longas e nuas, alvas como leite, tentadoras como o próprio diabo. O vestido curto, com certeza vermelho, exibia com exatidão as curvas sensuais da mulher, cobertas por um capa de seda azul. Um grande chapéu enfeitava os cabelos dourados. O rosto redondo dava espaço para lábios grossos e macios, um nariz delicado e dois olhos azuis que pareciam sugar minha alma. Um lobo em pele de cordeiro, pensei no mesmo instante. Os seios fartos, no entanto, apagaram qualquer pensamento de minha mente.
“Preciso de seus serviços”, ela disse com uma voz macia. Ela falava em Jazz. Sentei como um adulto e derrubei o cigarro terminado no cinzeiro de vidro. Aquele cinzeiro não estava alí por acaso, apenas porque fumo. Ele era pesado e repleto de quinas: uma arma nas horas de necessidade. Quero que você siga meu marido, pensei. “Quero que você siga meu marido”, ela disse musicalmente. Acredito que ele esteja tendo um caso, meus lábios quase se moveram, formando as palavras. “Acho que ele está me traindo”, retirou um lenço da bolsa e enxugou olhos lacrimosos. Quase, pensei.
Abri a gaveta e coloquei dois copos sobre a mesa, despejando a bebida âmbar em seguida. A garrafa de Jack Daniels pousou com um baque seco na madeira. Era uma garrafa de base quadrada, pesada e resistente. “Meus... serviços são caros, madame.” Eu bebi metade de minha dose em apenas um gole. A bebida desceu queimando pela garganta até meu estômago vazio.
Ela concordou com a cabeça, ainda sobre o grande chapéu, e jogou um envelope pardo entre os dois copos. Eu contei o dinheiro. Quatro mil libras. Impressionante. “Estou disposta a pagar mais oito mil depois que você concluir a investigação. Isso basta para suas despesas?” Que tal alguns beijos?, apenas concordei com um rápido movimento em meu queixo. Aqueles olhos. Havia algo de errado com eles. Não era apenas a decepção que ela sentia com o tolo homem com quem era casada, era algo... incerto, diferente. Talvez fosse o tom claro do azul naqueles olhos, talvez todo o conjunto; algo estava errado e eu estava hipnotizado pelas notas em sua voz, o que me fazia ignorar o alarme. Reformulando meu pensamento, ela não era um lobo. Ah não, meu caro Estranho, ela era uma sereia. E o canto invadia minha mente, meu barco ia na direção das rochas e não havia nada a ser feito. “Encontrei isso na carteira dele ontem, junto com uma conta da semana passada, ele gastou setecentas libras aqui”, ela continuou enquanto me entregava um imã para geladeira. Era um pedaço retangular estampado com o desenho de uma lua e uma flor branca. Hotel Dama da Noite, dizia em letras garrafais. Aberto 24h. TODOS os dias do ano! No fim da propaganda, três diferentes números para contato e um endereço de e-mail. Em seguida ela me entregou uma foto do meu alvo, ele era um banqueiro gordo e baixo, do tipo grotesco que usava grossas correntes de ouro, gel no cabelo que restava na cabeça calva e suspensórios. Eu não tenho outra opção que não seja odiar pessoas de suspensórios, esse é o principal motivo pelo qual quero matar todos os palhaços. Suspensórios de merda.
 “Ele parece uma pessoa perigosa”, a porra de um capo, pensei comigo mesmo. Não estava gostando do desenvolvimento daquela história.
“Um aleijado consegue correr mais do que ele, olhe para a barriga, pelo amor de Deus!” Ela bebeu o whisky. As mãos estavam impacientes.
“Armas?”
“Nunca vi uma única arma na casa. Ele evita usar facas pontiagudas porque sempre corta a mão. Armas de fogo estão fora de questão. Acho que ele atiraria no próprio pé, o inútil.”
“Você quer fotos dele com outra pessoa? Ou vídeos? Ou apenas minha palavra será o suficiente?”
“Sua palavra?”, ela sorriu. “Não será o suficiente, não as palavras de alguém que fica aqui, nesse prédio. Nunca.”
“Cuidado com sua atitude, madame. Nosso contrato ainda não está firmado. Você quer a investigação bem feita, com cuidado e sigilo, certo?”
“De preferência, sim.” Ela se mecheu na cadeira, desconfortável com o encontro. “Fotos. Algumas fotos e estamos de acordo.”
“Volte em dois dias, ele será minha prioridade.”
“Bob Merrygold, é o nome dele. Deus, até isso é uma piada. Bob”, dissem em um tom de desprezo.
Em seguida, ela se levantou e respirou fundo. Andou até a porta e a abriu. “Seu corredor fede a mijo”, disse antes de desaparecer no odor de urina. Poucos minutos depois, era a minha vez de atravessar o corredor apertado e fétido. Alguns clientes faziam piada sobre aquele lugar ser um ânus. Eu nunca achei graça, mas havia alguma razão no gracejo.
O Dama da Noite era uma espelunca. O dono não tinha a mínima vergonha em chamar aquele conjunto de quartos e banheiros cheios de baratas e drogados esquecidos pelos cantos de ‘Hotel’. “Filho da puta!”, gritei quando passei as rodas de meu wolks antigo por cima de uma garrafa de cerveja. Londres é uma bosta. Andar naquele estacionamento foi como dançar em um campo minado, era possível escolher em qual camisinha usada pisar ao invés de tocar o asfalto. “Bob, seu desgraçado, isso não é lugar para trazer uma mulher. Setecentos dólares nessa espelunca? Você viveu aqui por anos e anos?”
Nunca entendi os ricos que tinham amantes. De ambos os sexos, de qualquer gênero, incluindo o do meio. Em minha profissão você acaba esbarrando com certa regularidade no sexo que vai além do normal. Não entenda mal, não sou homófobo. Mas convenhamos que orgias de transsexuais com espancamentos e submissão é algo que está fora do interesse da grande maioria das pessoas. Em todo caso, atravessei aquele estacionamente me perguntando porque escolher ter relações em um lugar como aquele com outra pessoa se, no caso do Bob, uma das mais lindas mulheres deveria estar esperando em casa, deitada em uma cama ‘king size’ fria e solitária. Ele merecia o que estava por vim, eu me decidira. Bater as fotos era algo importante e seria feito, de uma maneira ou de outra.
A recepção do hotel era o que você esperaria estando em minha pele: suja, esfumaçada e apertada. Tirei meu chapéu e me certifiquei de que o sobretudo não encostaria em qualquer móvel daquele lugar horrível. “Importa-se de dividir uma informação, amigo?”, perguntei para um homem sentado no banco atrás do balcão. Ele estava com a barba por fazer e, apesar do frio daquele dia, usava apenas uma camiseta sem mangas, manchas amareladas por baixo de cada axila e um furo feito provavelmente por um cigarro um pouco acima do umbigo. Ele tinha as maiores bolsas abaixo dos olhos que eu já vi na minha vida. A pele plastificada pelo abuso de drogas pesadas.
“Isso depende do quê e de quanto”, respondeu em tom neutro. Ah, a doce vida de um investigador. Algumas vezes penso no meu sobretudo como um uniforme nazista. Coloque uma sarja comprida e um chapéu Fedora por cima de uma roupa descente e pronto, você é um investigador particular e as pessoas tratar-te-ão de acordo. Experimente usar uma suástica na França ocupada ou um turbante nos Estados Unidos de hoje e você saberá do que estou falando. Mas, hey, é o meu estilo de guarda-roupas, o que posso fazer? Andar como uma pessoa normal? Qual o sentido em sem um investigador particular se não for pelo pacote todo? É o estilo de vida, Estranho.
Joguei duas notas de cem libras por cima do balcão. Quatro olhos reais me fulminaram com reprovação quando o papel caiu na frente do homem. “Tudo que preciso saber é se você conhece este simpático indivíduo e com qual freqüencia ele aparece aqui.”
Ele pegou a fotografia com dedos roliços e a estudou. “Bret, velho Bret”, recolheu uma das notas. Prendi a outra com a minha mão.
“Continue”, incentivei.
“Ele vem... três, quatro vezes por semana. Às vezes cinco. Nos últimos dois anos, religiosamente.”
Ele puxou a nota, mas ela não saiu de baixo da minha palma. “Ele faz a peregrinação religiosa sozinho?”
“Não. Ele vem sempre com a mesma mulher, uma loira. Linda. Eu não a trocaria por nada nesse mundo, chefe. Olhos vermelhos, uma verdadeira boneca.”
“Quando ele veio pela última vez?” Ele me surpreendeu com um rápido puxão e, mais rápido que a luz, o dinheiro desapareceu no bolso da calça larga.
“Um pouco mais da Senhora Nossa Majestade e pode ser que eu tenha mais coisas para contar.” Olhei com ódio para o dono do Dama da Noite. Nada que eu poderia fazer. Estendi mais cem libras. “Pode ser que ele esteja aqui neste instante.”
“Qual número?”
“O quê? Para você entrar e matar o cara em um dos quartos? Estou atolado até o pescoço com a polícia, nada feito.” Ele, no entanto estendeu a mão em minha direção, palma para cima. Suficiente, eu decidi. Torci a mão gorda para trás em um rápido movimento e forcei o cotovelo na direção errada. Um baque seco ecoou na sala, ele esticou o pescoço e gritou de dor. Com minha mão livre agarrei o pescoço engordurado e afundei a testa do homem na balcão com força suficiente para fazer soar a pequena camapainha em um dos cantos da madeira fina. Sangue começou a cair no mesmo momento.
“Qual número?”, repeti com impaciência na voz.
“Tre... Treze!” Ele chorava, assustado e acoado. Que visão triste. “Mate-o em outro lugar, por favor, não em um dos quartos!”
Estiquei o braço que segurava a cabeça e peguei a chave do quarto doze. Subi as escadas rapidamente e entrei, furtivo, no quarto. Fui atingido pelo odor de suor, vômito, sexo e naftalina, não necessariamente nesta ordem, e quase vomitei. Colei meu ouvido na parede e escutei gemidos de uma mulher. Alcancei minha câmera fotográfica no bolso e desliguei o flash. Hora de trabalhar. Esperei alguns minutos, espiando pela janela do quarto para ter certeza de que não havia sido seguido e saí pela porta, abrindo-a com carinha e evitando rangidos desnecessários. O corredor do hotel estava vazio. Apenas uma barata corria pelo teto, desaparecendo pelas escadas. Os quartos tinham janelas voltadas para fora. Conveniente, pensei. O quarto treze tinha uma pequena abertura entre as cortinas de segunda mão e era possível enxergar o casal deitado na cama. Bret, também conhecido como Bob na vida pública, estava amarrado na cama, vestindo apenas meias pretas nos pés, a barriga flácida balançando com o peso da mulher. Dois lenços de seda o prendiam no colchão de molas. Ele o cavalgava vigorosamente. Era linda, com as medidas certas e curvas acentuadas nos melhores lugares. Os seios maravilhosos balnçavam sensualmente no esforço sexual e os gemidos altos podiam ser ouvidos do lado de fora. Eu cliquei sete vezes.
Rapidamente, fiquei de joelhos e olhei para as fotos na tela de minha máquina. Eu já tinha as provas: as expressões de êxtase de Bob eram visíveis em todas as fotos. “Seu bastardo sortudo”, murmurei com um misto de ódio e inveja.
Quando vi a terceira foto, no entanto, a história tornou-se confusa. Eu vi a mesma mulher sobre Bob, a loira que havia encomendado minha investigação. Os cabelos loiros, os fartos lábios e as coxas luxuriosas eram indicadores. Era a mulher de Bob naquele quarto. O que ela está fazendo aqui com ele? Minha mente entrou em torpor. Parte pela visão do corpo feminino em um dos mais perfeitos exemplares, parte pela perplexidade que sentia.
“Oi! Seu desgraçado!” Virei o rosto na direção do som e vi a porta do quarto treze aberta. Bob estava do meu lado, o pênis ereto perto de minha face. A última coisa que vi foi o corpo esbelto com os braços erguidos. Quando ela desceu a garrafa de Jack Daniels na minha cabeça, perdi a consciência imaginando como gostaria daqueles seios rodeando meu rosto. Pensei também o quanto eu adorava Jack Daniels.
O mundo, no entanto, tornou-se escuro.

2 comentários:

  1. Muuuuuito bom. Adorei. <vc mais uma vez se superando. Muito criativo e detalhista. Parabéens. Ana Eliza.

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  2. Adoraria ver contos eróticos contados por você, você parece ser bem pervertido.

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