“Três, em Dudinka”, anunciou enquanto movia as peças
vermelhas no lugar nomeado. Lançou os dados da mesma cor, específicos para o
ataque, e franziu a testa diante do resultado medíocre. Alexandre arremessou os
dados amarelos e sorriu. Dario estava derrotado em todos os ataques. “Tudo bem,
você venceu hoje. Mas sempre há o próximo turno.” Suas palavras tentaram soar
sérias, mas assim que fechou a boca, os três gargalharam.
O tabuleiro estava
pintado pelas cores dos três jogadores, dividindo o mundo em facções de poderes
equivalentes. Ao redor do simulacro de mapa mundi, cartas e peças descartadas
estavam espalhadas, circulando copos e caixas de cigarros. Cinco horas de jogo
e o ânimo dos amigos continuava o mesmo do começo da noite.
Alexandre segurava
um copo com whisky e gelo. Perdera a conta de quantas vezes entornou a bebida,
trocando as pedras de gelo entre uma dose e outra; sabia apenas que ainda
sentia alívio no pescoço, livre da gravata cinza que havia usado a semana toda.
“O que você está dizendo é que poderíamos sair do planeta, é isso?”, respondeu
para Dario, quase meia hora depois do comentário do astrônomo amador.
Carlos concordou
com um único aceno e moveu as peças. “É o que o Dario falou desde... ontem,
quase. Dois na Inglaterra.” Jogou os dados: cinco e seis.
Alexandre cerrou os
olhos e realizou a defesa, obtendo dois e três. “Essas merdas estão viciadas,
não é possível!” Examinou os cubos amarelos de perto, estampando um sorriso
etílico na boca.
“Não, não estão”,
comentou Dario, encarando Dudinka ocupada pelas tropas de Alexandre.
“Não são os dados,
minhas tropas são eficientes. Oataque foi feito pelo Tâmisa, tomei Londres
despreparada e parti para o resto da ilha com velocidade e ferocidade. O pior é
que a Europa não faz parte do meu objetivo,” fez uma cara de escárnio, “mas gosto
dos Beatles. Com eles no meu poder, vou conquistar essa porra toda”, completou
apontando para o mapa e empilhando algumas unidades verdes na Inglaterra. Tinha
metade da Europa.
“Com a propulsão e
velocidade suficiente, sim, poderíamos sair do nosso planeta para sempre e
colonizar Kepler”, respondeu Dario. “Parece que confirmaram a temperatura média
do planeta e que ele é rochoso. Uma rocha perdida no espaço, com água líquida,
atmosfera como a nossa e temperatura agradável. Estou falando, vou para lá na
próxima férias”, entregou o jornal para Alexandre, cuja manchete principal
anunciava a descoberta da nova Terra.
“Pode ser, mas por
enquanto você está sendo atacado na Autrália.” Alexandre atacou.
“Você deveria ter
parado na Índia, sabia?” Dario jogou os dados e perdeu. “Mas que droga, cara.
Você está fodendo meu jogo.” Ele ainda tinha a mania de procurar a aliança
fantasma com o polegar da mão esquerda. Os outros jogadores notaram o
movimento, mas evitaram falar qualquer coisa; percebeu o que fazia e resolveu
ocupar a mão com uma garrafa de cerveja, levantando até a geladeira. Pegou mais
chá gelado para Carlos.
“Eu sentiria falta
dessas coisas se deixasse nosso mundo para trás”, Carlos respondeu, pegando a
bebida.
“Do que você está
falando?”, Alexandre estudava o tabuleira, tentando decidir o que fazer em
seguida.
“Estou falando das
coisas mais simples, como essa partida...”
Ainda estudava o
mapa e contava mentalmente os inimigos fechando o cerco. “Devo dizer que ‘essa partida’ não está nada simples,
cara. Pense em todas as famílias chorando os soldados mortos, a miséria causada
pelo estado de guerra total de todos os
países do mundo, nas plantações devastadas pelo gás mostarda, as reuniões entre
líderes que se odeiam, os atentados terroristas, os fanáticos religiosos...”
“Eu vejo apenas
peças”, Darios bebeu meia garrafa da cerveja em apenas uma golada.
“Você não enxerga a
poesia do jogo”, Alexandre puxou uma carta do monte e indicou que estava
satisfeito com o turno, bebeu mais do whisky.
“Poesia? Minha vida
já está uma merda, eu jogo isso para descançar um pouco da realidade e tenho
que ficar imaginando quantos jovens eu mando para a morte? Aqui somos líderes
políticos e militares atrás de uma mesa, transformando soldados de papel em
máquinas de guerra, em homens de família que pilham e estupram depois das
conquistas.” Movimentou algumas peças. “Por falar nisso, três em Dudinka.”
Novamente, os dados rolaram números baixos e ele xingou. “Sentiria falta de
algumas coisas, Carlos, mas estaria feliz por deixar outras para trás”, o
polegar novamente acariciava a linha pálida no dedo gordo.
“Todos nós”,
continuou Carlos, já iniciando sua rodada. “Mas veja bem, você ficaria o quê,
dez, quinze anos em uma nave para chegar em um planeta sem nada, apenas as
condições mínimas para sobrevivência e exploração. Imagine que todas as coisas
são dependentes, que o mutualismo entre os seres vivos é a única coisa que
importa em nossas vidas... fazer parte do todo,
peça única e insubstituível do tabuleiro, integrado e sincronizado com as
outras coisas”, ele brincava com um soldado verde nas mãos. “Você renunciaria
todas as cores da manhã, quando o sol está nascendo e há uma caneca cheia de
café está na suas mãos. Talvez uma mulher esteja dormindo embolada no seu
lençol, nua e linda. O som dos pássaros, a brisa matinal, pense nisso tudo que
ficaria em outro mundo, literalmente. A bondade dos desconhecidos, a diferença
que suas ações poderiam fazer na vida de outras pessoas. Tudo está conectado.”
Ele sorveu o chá preto. “E só agora eu enxergo sem uma névoa em minha mente.”
“Quanto tempo?”
Dario olhou com culpa para a cerveja, enquanto Alexandre derrubava mais do
líquido ambar no próprio copo, confiante e sem censura. O gela estava
derretendo e ele teria de jogá-los na pia.
“Dois anos já e sem
uma única gota”, ele levantou o copo e fizeram um brinde. “Um dia por vez, como
dizem. Um dia por vez”, a voz de Carlos estava repentinamente cansada,
arrastada.
“Eu sentiria falta
das tardes de sábado”, disse Alexandre. “Aquele sentimento específico das
tardes de sábado, quando você poderia dormir o resto do dia e ainda sobraria o
domingo para relaxar, assistir um filme na TV ou sair para caminhar um pouco.”
Refletiu um pouco mais e continuou: “Filmes, sentiria falta de filmes. E de
sushis.”
“Cheiro de talco
para bebês, café, comida caseira, pantufas e condicionador feminino, adoro o
cheiro de condicionador feminino.” Dario não percebia que suas escolhas
demonstravam o efeito devastador do divórcio. Da noite para o dia, os conceitos
de família, abusados e forçados por ele nos últimos anos, tornaram-se sagrados
e objeto de culto. Era um caso em que a ordem dos fatores alteraram o
resultado.
“Pantufas?”, ecoou
Alexandre antes de gargalharem novamente.
“É mais confortável
do que parece.”
“Sexo”, cortou-o,
antes de iniciar um novo turno. “Daqueles que você fica desnorteado quando
acaba, todo suado e sem forças, os músculos doloridos e um pouco de boa culpa
cristã na caixola”, ele movimentou as peças e jogou os ataques.
“Haveria sexo em no
novo mundo”, Carlos disse. “Desde que você tivesse alguém para fazê-lo, é claro.
Ou uma mão.” Riram novamente. “Acho que é a primeira vez que podemos falar de
um admirável mundo novo no sentido mais literal possível.”
Dario terminou o
chá gelado e coçou o couro cabeludo, movimento que fazia sempre que estava
imerso nos pensamentos. “As viagens portuguesas durante as épocas de
descobrimentos podem ser comparadas, acho. Deixar tudo para trás, navegando por
meses para chegar em lugares desconhecidos, enfrentando a fúria dos oceanos,
fome, medo, doenças, solidão e o perigo constante dos ventos fortes e das
chances de ficarem parados, no meio do oceano por semanas inteiras. Nesse caso
também, retiravam-se da vida social quase que inteiramente, esquecendo o que
foi feito e o que poderiam fazer em suas vidas antigas. Há algo de belo nessas
escolhas. Às vezes, se pensarmos bem, tudo o que alguém precisa é precisamente
escapar.” O polegar esquerdo raspava desesperadamente o outro dedo.
Alexandre estudou o
amigo, sentindo um aperto no peito. Pensou nos cabelos grisalhos e nas olheiras
profundas que assinavalam seus olhos. “Quando nos tornamos uma piada? Você saiu
de um divórcio complicado e tem sorte por não estar respondendo por homicídio”,
virou-se para Carlos, “sua vida inteira foi queimada, um fundo de copo por vez.
Tenho uma úlcera do tamanho de uma laranja por causa dos filhos da puta em meu
escritório. Quando foi que pegamos as curvas erradas?”
Dario refletiu por
alguns instantes. Estavam todos em silêncio, apenas as pernas de Carlos faziam
barulho, balançando na cadeira em que estava sentado. Eram velhos, independente
da idade física; perderam, cada um deles por razões próprias, a confiança nas
pessoas, no amor verdadeiro e na esperança por um amanhã melhor. Liam nos
jornais sobre assassinatos, roubos e descaso generalizado. Carregavam
machucados escondidos, enterrados no fundo de suas personalidades, machucados
que sangravam em silêncio, cavando buracos cada vez mais profundos e
irreversíveis; de alguma forma, eram tesouros que guardavam para si, algo que
os deixava mais maduros e reais; experientes. “Algum dia vou para a nova Terra,
o planeta Kepler”, prometeu Dario, “mas vou sempre levar comigo os momentos com
vocês, são os dias mais preciosos e verdadeiros. Só consigo confiar em vocês,
caras, e nas conversas desencontradas e fragmentadas durante nossos jogos.
Desde pequenos, lembram? Apenas as conversas durante os jogos mudaram, ficaram
mais chatas, o resto não. Algumas coisas não mudam.”
“Que coisa de
menina”, disse Alexandre.
“É verdade, cara,
deixe de ser boiola”, completou Carlos.
Sorriram e
brindaram novamente.
“Três, em Dudinka e
dessa vez vou pilhar e estuprar seus civis”, Dario disse. Poucos instantes depois,
amaldiçoava os números baixos nos dados vermelhos.
Muito legal. Vc aborda vários temas em um único conto com "conhecimento de causa". Durante a leitura, no meio do caminho, percebemos que não é somente o conto sobre um jogo, mas também sobre historia com guerras e conquistas, comportamento humano, ciências, astrologia e etc... Gostei bastante. Ana Eliza.
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