Para Paulinha, com carinho.
O chá esfriava na caneca. Allan estava entediado,
cotovelos apoiados no descanso da janela; o peso da cabeça sobre os punhos
fechados. Olhava o jardim pela janela, atividade que fizera todo aquele mês,
sentado na cadeira de rodas e com as duas pernas quebradas suspensas. Allan podia ouvir os gritos de outras crianças
brincando no parque logo ao lado. O sol brilhava sobre as árvores e o jardim
explodia em vida, mas Allan só pensava em explodir tudo aquilo. Não com vida,
mas com napalm. Ele sentia raiva, queria sair e correr, pular fogueiras, cair
de sua bicicleta e ralar os joelhos; queria as pernas sem a armadura branca que
usava.
Desanimado, estudou
o jardim novamente, talvez pela centésima vez naquele dia. Uma pilha de livros
de fantasia e alguns quadrinhos jaziam, logo esquecidos para sempre, no canto
da sala. Era um leitor ávido e em poucas semanas havia facilmente devorado a
limitada biblioteca da casa. Agora, só restava assistir novelas com sua mãe ou
olhar pela janela. Então ele olhava pela maldita janela, o maior tempo
possível, esperando por algo que pudesse mudar seu mundo.
Como se tivesse
nascido epontaneamente das sombras, um gato negro pulou dentre as plantas. Era
um gato comprido e de olhos vermelhos; duas orelhas peludas enfeitavam a cabeça
redonda do animal. Ele parou no meio da grama e sentou pacientemente, estudando
o garoto com a cabeça apoiada nas próprias mãos. O gato piscou os dois olhos e
lambeu uma das patas. De repente, outro gato pulou ao lado do gato negro, este
branco com listras amarelas por todo o torso. Os dois gatos circularam-se,
formando por um único segundo o símbolo de yin e yang quanse perfeito, não
fosse a cor que diferenciava o animal branco.
Os gatos sentaram
um pouco mais perto da casa e ficaram, impassíveis, assistindo o garoto por
trás da janela. E assim ficaram, completamente imóveis, excluindo piscadas
eventuais. Mais dois gatos pularam do muro, um castanho e outro branco e
juntaram-se aos outros dois felinos. Allan olhou o quarteto, perguntando-se o
que diabos estava acontecendo.
Cinco minutos
depois, um total de nove animais ocupavam o gramado verde. Um deles, um gato
castanho sem a orelha esquerda, miava. Quando ele parou, dezesseis gatos se
espalhavam em toda a vista da janela, alguns miando em dissonância, outros
andando com os rabos levantados e, Allan viu com empolgação e vergonha infantil,
copulavam ao lado de uma árvore.
O menino resolveu
então girar a cadeira para longe da janela, deslizando de forma ágil o assento
especial para a cozinha, onde pretendia arranjar uma maneira de tirar o leite
da geladeira e preparar um achocolatado: uma tentativa fútil de tirar o
pensamento dos animais que estavam do outro lado do vidro. Por quanto tempo
eles se limitariam a estar do outro lado, Allan não sabia e, para encostar na
verdade mais profunda, não queria saber. Quando chegou no outro cômodo, havia
outro gato na janela, sentado no parapeito externo, olhando com olhos
estranhamente sagazes. Ele esqueceu instantaneamente do leite e impulsionou as
rodas laterais da cadeira até a primeira gaveta da pia, de onde ele revelou uma
longa faca para carnes. Retirou também a pedrar de amolar que sua mãe sempre
usava. Ele não tinha idéia do que fazia, mas passou a pedra na lâmina do que
seria sua arma e olhou, o mais ameaçador que podia, para o gato. Suas mãos
tremiam e ele quase cortou um dos pequenos indicadores.
O gato de olhos
sagazes miou em tom grava, um miado longo e rouco, perturbador; gutural. Logo, oito
gatos surgiram na janela e começaram a procurar por uma entrada, aumentando o
número de animais na cozinha. Allan viu, sentindo o medo escalando por sua
espinha, que um dos vidros no canto mais afastado dele estava aberto. Ele
tensionou os braços com força de atravessou a cozinha como se houvesse um
pequeno motor na cadeira. A cadeira bateu na pesada mesa de madeira e deu um
pulo, derrubando o garoto e arrastando-o pelo chão limpo. Sentindo uma explosão
de dor em uma das pernas. Allan griou e agarrou o gesso, chorando pela mistura
de dor e desespero. Os gatos chegavam rápido, ele não tinha muito tempo.
Agarrou-se à mesa e levantou o corpo imobilizado. Duas novas explosões tomaram
conta das pernas do garoto, que mordeu os lábios até sentir o gosto metálico do
próprio sangue.
Era difícil
mover-se daquela forma, além de extremamente dolorido, mas ele não tinha outra
escolha: deu dois passos largos, cômicos, com as pernas retas e abertas em mais
de setenta graus, alcançando a janela e fechando-a, prendendo a pata de um dos
gatos, que miou rispidamente. Os nove felinos em sua janela mostravam os dentes
e arranhavam o vidro.
Allan voltou para a
cadeira, primeiro se jogando sobre a mesa, depois em uma cadeira que fazia
parte do conjunto da cozinha para, finalmente, voltar à cadeira de rodas. Tinha
pouco tempo para se preparar. Agarrou navamente a faca, esticando o corpo até o
chão e quase caindo novamente, sem reconhecer a sorte por estar vivo depois de
ter caída com uma faca daquele tamanho nas mãos; a pedra de amolar estava para
sempre perdida, como se tivesse atravessado o fino tecido da realidade e
pousado em uma Terra alternativa, por baixo de uma Jukebox que permitia a
música na posição 42-B ser tocada repetidas vezes.
Ele foi até a
lavanderia e pegou uma vassoura, desencaixando o cabo para usá-lo como uma
lança. Pegou também álcool e fósforos. Novamente na cozinha, transformou um
rolo para maças e um pano velho em uma tocha encharcada no álcool, apenas
esperando para ser acessa e usada como arma contra os felinos. Estava armado. Que venham, ele pensou e deixou as
lágrimas secarem no rosto.
Voltou para a
janela em que estava no começo daquela tarde e se deparou com incontávei gatos
no jardim. Eles estavam em todos os lugares, por baixo das árvores; na entrada
da casa; pendurados no portão verde; espalhados pela grama, agora um caos de
fezes e urina felina; verdadeiro campo minado. No meio deles, estava o gato de
olhos sagazes, olhando de forma mortal para o garoto. Ele miou um única vez. E
os animais ficaram loucos, soltando ginchos diabólicos e disparando ataques
contra a porta de entrada e, principalmente, contra o vidro frágil que os
separavam. Era lutar ou morrer, Allan percebeu em determinação frenética. Ele
segurou a tocha improvisada em um das mãos e, com a caixa presa entre os
dentes, riscou um fósforo na outra. Esperou. O vidro ensaiava as primeiras
rachaduras.
Como a cavalaria em
um dos filmes em preto e branco que seu pai amava, o portão automático abriu
passagem e em poucos segundos, o carro de seus pais surgiu na entrada da casa.
Antes deles passarem pelo portão, porém, os gatos sumiram magicamente de vista.
Havia apenas as fezes na grama, nada mais.
O garoto apagou o
fosforo com um movimento rápido e escondeu, na caixa de brinquedos, suas armas.
O cabo da vassoura poderia ficar em qualquer lugar; seria fácil de explicar,
decidiu. Quando seus pais entraram, carregando mais sacolas plásticas recheadas
com legumes e carnes do que poderiam aguentar com facilidade, ele perguntou com
audível excitação:
“Compraram o livro
que pedi, aquele com os hobbits?”
“Desculpe filho, a
livraria estava fechada. Mas alugamos um filme que sua mãe queria assistir”,
ele respondeu com voz cansada.
Allan olhou para
fora novemente, torcendo a boca para os pais. Um único gato estava no muro,
encarando-o com olhos sagazes. Amanhã,
prometiam aqueles terríveis olhos, ou
depois, eu sou paciente. Mas vou comer sua carne, pequeno humano, e festejar
com seus olhos. Amanhã ou depois, marque minhas palavras. O gato virou o
corpo e desapareceu pela rua tranquila e vazia.
Meia hora depois e
o chá estava frio, horrível. Allan estava entediado, apoiou os cotovelos no
descanso da janela; o peso da cabeça sobre os punhos fechados.
Nada de emocionante
acontecia em sua vida, lamentou em um suspiro.
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