As luzes vermelhas iluminavam a sala. Sombras se
transformaram na luz escarlate, tornando o ambiente ainda mais ameaçador. Hag
ouviu os passos apressados dos subordinados do outro lado do espelho de face
única. Ele fechou os olhos e os imaginou com pranchetas nas mãos, óculos sujos
e mal conservados nos rostos apreensivos, checando o batimento cardíaco nos
monitores e a porcentagem ainda intacta do DNA em outras máquinas quase
futuristas, muito mais complexas do que o conhecimento da inteligência militar do
país. Hag estava calmo, respirava profundamente enquanto esperava pela agulha
que logo romperia a epiderme de sua nuca e injetaria o Soro K. Revistos e repensados, os dados e planos estavam
redundantemente corretos na teoria, mas nem todas as redundâncias acumuladas o
salvariam de um erro prático dentro da teoria, por mais correta que fosse; Hag,
mesmo assim, estava calmo, confiante. Eram seus planos, seus sonhos que estavam
em andamento, afinal. Algumas pessoas simplesmente estão dispostas a se
sacrificar pela curiosidade. Ele iria romper a barreira e nada poderia mudar a
convicção que sentia.
Hag queria
sobreviver ao teste, voltar como que tinha aprendido no mais extremo método
empírico já proposto. Ele pensou no livro escrito por Kafka, nas maravilhas
possíveis dentro da fantasia... bem, nos limites do modelo kafkaniano; o mundo seria seu, toda a glória, toda a honra. Hag, o
Herói. Traria novas descobertas e possibilidades, quem sabe a cura para
doenças, talvez novos meios de exploração espacial.
“Está tudo pronto?”,
ele perguntou com uma voz profunda, grave.
“Últimos ajustes,
chefe.” Era a voz de Brenda. Ela era brilhante. Sabia que ela estava com o
cabelo preso em uma longa trança dourada e que usava um par novo de lentes na
armação preta de seus óculos. Coisas
estranhas para notar no que pode ser meu último dia na Terra, ele pensou
antes de sorrir. Brenda era perfeita, linda e inteligente. Seios fartos e
firmes, pernas longas escondidas pela beca impecavelmente branca, mas que se
deixavam ver, olhos azuis e penetrantes, vivos; curiosos. “Hag, tudo bem?”
Havia preocupação na voz dela.
“Estou, estou.”
Respirou com calma e retirou a mulher dos pensamentos. Em poucos instantes,
tinha novamente os batimentos cardíacos estabilizados, conforme indicado pelos
leitores.
Hag estava deitado
em 75 graus, fixado à mesa de metal por três faixas de couro ao longo do corpo,
além de duas em cada membro. Fios conectados ao couro cabeludo raspado liam as
ondas cerebrais e uma incômoda sonda media a temperatura do cientista.
As luzes piscaram
por um segundo e mudaram para o verde. Começou.
Hag sentiu uma
sensação de calor em sua nuca, seguida por uma picada e intensa dor. Ele
escutou, pelo espelho falso, os computadores ficarem loucos. Batimentos
cardíacos altos, dores fortes, náusea, vertigens e alucinações. Hag experimetou
todas as ameaças potenciais do experimento. Seu corpo entrou em convulsão e ele
fechou a mandíbula em uma mordida forte, errando a própria língua por pura
sorte.
A operação Kafka surgiu de um sonho de criança do
famoso cientista. Considerava por horas o que faria se fosse uma mosca. Pensava
em várias situações de onde poderia tirar proveito, muito além de bisbilhotar
mulheres no banho ou experimento roupas em alguma loja, as primeiras fantasias
da puberdade precoce; Hag iria mais longe: estudaria a dinâmica do corpo
desenhado para voar, poderia sentir os sensores de movimento e utilizá-los para
inúmeros fins. Defesa anti-aérea avançada, captadores que estabeleceriam um
novo sentido para os homens, afinal, como centralizar centenas de imagens
consecutivas em um único e lindo campo de visão? Se Hag pudesse ser uma
mosca... Quando tinha quatorze anos, ganhou de seu avô uma cópia do Metamorfose. Ficou obcecado pela
história do caixeiro viajante que acorda como uma barata gigante, apesar da
maçã apodrecendo em suas costas. Teria cuidado para criar um ambiente seguro e
estável para o teste, considerou. O adolescente introvertido não enxergou os
conceitos abstratos do livro, sequer cogitou a questão existencialista. O
romance de Kafka afirmou os sonhos improváveis em outro patamar, afinal a
personagem estava vivendo como um inseto, passando por problemas concretos com
o novo centro de gravidade, testando o exoesqueleto... pensando!
Ele estudou nos
melhores lugares, sacrificou tudo em sua vida para alcançar os objetivos,
investiu milhões e milhões, perseguiu patrocinadores, enfrentou o governo, as
forças armadas e o fanatismo religoso. Você
não pode brincar de Deus!, gritaram em uma entrevista, antes de três balas
se alojarem em sua cavidade pulmonar. Sobrevivera, de alguma forma. E esperava
estar vivo ao final do dia, ainda no laboratório desconhecido por todos os
órgãos governamentais e privados possíveis, se tudo ocorresse como planejado.
Seu corpo começou a
mudar. Os braços se alongaram, os olhos incharam como duas bolas vermelhas, com
as que crianças levavam para a praia; o queixo afinou, as pernas esticaram.
Poucos minutos depois, os leitores presos ao seu crânio balançavam no ar e as
faixas de protação jaziam despedaçadas no chão. Ele estava livre da mesa,
apoiado em seis magníficos membros, fortes o suficiente para atravessar
paredes. Hag era uma mosca enorme, grotesca. Como placas hexagonais, os complexos
sistemas de visão captavam detalhes minúsculos da sala em que estava, capacidade
impossível ao olho humano. Via o corpo segmentado em três partes no espelho
falso, perfeito. Sou um Deus, pensou.
Pêlos, grossos como os cabos dos computadores ao seu redor, expalhavam-se pelo
corpo bizarro de Hag, funcionando como antenas de recepção. Asas! Eu tenho asas!
Conseguia ler cada
movimento na sala ao lado. Contou cinco corações batendo de forma acelerada e
uma batida calma... Brenda, sempre foi
fria e calma. Vaca. As fibras musculares dos colegas produziam ondas a cada
movimento; os calçados em contato com o chão eram como britadeiras para ele.
Sabia onde cada pessoa estava e sua exata posição. Sem entender ao certo porque
o fazia, abriu as asas e se movimentou rapidamente, atravessando com facilidade
para a sala onde seus colegas estavam. O corpo humano, ele percebeu, era frágil
e fácil de quebrar. Quase nenhum esforço era necessário para atravessar os
corpos dos cientistas com as patas que saiam de seu abdômem. Ele tinha uma
precisão exata de cada movimento que seguiria e podia ler no ar tudo o que
acontecia. Era como viver dois segundos no futuro. Movimentou-se de acordo.
Deixou os instintos tomarem conta e uma ira insana obscureceu sua consciência.
O mundo apagou.
A primeira coisa
que notou, quando voltou ao controle da mosca gigantesca que agora era, foi que
algo estava preso ao prosbócide alongado de sua cabeça. Fez um movimento
instintivo e expeliu o objeto entalado na boca tubular. Brenda! Não!, pensou ao ver a cabeça rolando entre os corpos
desfigurados ao redor. Havia sangue nas paredes, membros espalhados nas mesas e
um corpo atravessado em uma das máquinas maiores. Um triunfo estranho ganhava
sua mente, no entanto.
Oh, Deus... Me perdoem, eu...
Novamente, o mundo
estava em completa escuridão.
O mundo era bonito
visto de cima. Hag percebeu que estava segurando algo. Os olhos compostos
traduziram a imagem e ele demorou alguns minutos para perceber que havia um
carrinho de bebê preso em um dos pêlos de seu corpo. Um carrinho vazio. Ele voava
rápido. Uma cidade pequena se aproximava? Não, era uma vila. Cristo, uma vila? Onde estou? Voava em
uma velocidade inimaginável e podia sentir as melhores correntes na atmosfera.
A vila cresceu rapidamente em seu campo de visão e logo podia sentir cada
pequena coisa que ocorria dentro das casas.
Hag viu apenas
imagens piscando em seus olhos. Cenários horrendos, mulheres nuas rasgadas ao
meio pela força de seus membros, carros virados, casebres destruídos. Sua
consciêcia migou rapidamente para o corpo gigantesco e, irreversivelmente, para
a mente de uma mosca. Algumas pessoas tentavam atirarcontra ele, mas as balas
eram muito lentas, os padrões no ar indicavam para onde ele devia girar para
evitá-las. Os projéteis que o atigiam eventualmente eram defletidos pelo
exoesqueleto. Conveniente, pensou.
Seu último
pensamento enquanto Hag, o cientista herói, foi sobre a fúria surpreendente que
a mosca sentia contra os humanos. Todo o conhecimento empírico, toda a
experiência... o potencial estava perdido no cérebro simples da mosca. Ele
estava se transformando em um monstro, sua mente estava se transformando. Não! Não era para acontecer desta forma!
Ele sabia que perderia controle sobre aquele corpo e que as únicas pessoas
hábeis a ajudá-lo estavam mortas. Sentiu terror quando viu os ovos que saíram
do corpo da mosca diretamente nos corpos dos desconhecidos. Não era um DNA
híbidro. Não era humano. Hag era uma mosca. Os ovos pulsavam e milhares de asas
ganhavam vidas.
A mosca estava
aliviada, ao menos até onde poderia estar na consciência simplória. A voz
estranha estava finalmente calada. Havia mais ovos em seu corpo e logo
encontraria mais humanos para desová-los. A voz atrapalhava.
Ela abriu as asas e
desapereceu no horizonte, continuando o belo e infinito ciclo de vida para seus
ovos preciosos.
Nao consigo me imaginar uma barata gigante. Pra dizer a verdade nem mesmo uma pequenininha... mas vc desperta em mim pensamentos mil. Adoro... Ana Eliza.
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