sexta-feira, 13 de julho de 2012

42


A pilha de papéis crescia exponencialmente, ameaçando encobrir o pôster de Albert Einstein que ela tinha em uma das paredes do pequeno escritório. A sala era apertada e sem janelas, apenas uma lâmpada balançava no teto e apenas quando ela se levantava e batia, com muita força, a cabeça no lustre, derrubando partículas de poeira que brilhavam na luz artificial, cena que sempre a fazia sonhar sobre os maiores mistérios sobre o Universo e tudo mais. Porque para ela não bastava sonhar apenas sobre o universo: havia todo o resto!
Ela tinha embutido em algum lugar do cérebro teimoso e mimado uma curiosidade nata, às vezes respondia para as pessoas que sua profissão era ser curiosa. Era uma curiosa profissional, por assim dizer. Atrás do poster do Einstein mostrando a língua, três diplomas estavam pendurados e esquecidos, mas, caro leitor, não fique preocupado pois eles jogam poker todas as terças e não ficam entediados. Afinal, deixe-me lembrar, eles são apenas pedaços de papel. Medicina, Filosofa e Física, diziam em letras garrafais. (Mesmo sem importância para a trama, o leitor anônimo pode estar se perguntando: ‘E quem geralmente ganha as rodadas da jogatina?’. O narrador então responde: ‘A Física. Todos conhecem a regra do jogo, mas ela é a única a se preocupar com o que está fora das regras escritas’. O cenário é na verdade impossível: lembre-se, estamos falando de pedaços de papel presos entre um vidro e uma imitação barata de madeira). Era o último diploma, entretanto, o que mais justificava o ordenado com cinco dígitos que ela recebia por vasculhas os mistérios do mundo da Física Teórica. Quando digo ‘mundo’ faço, na verdade, referência às infinitas possibilidades das mais variadas teorias do Tudo, desde as Cordas, Loops e as partículas de luz, qua ainda teimam em agir como partícula e onda ao mesmo tempo, até os malditos neutrinos específicos que, para o engasgo da protagonista, podiam andar mais rápido que a luz. ‘O que é rápido pra cacete’, ela explicou uma vez para uma freira que cometera o terrível engano de sentar naquela mesa, naquele dia. Veja bem, em praticamente qualquer outro dia ou horário (ou mesa), a pobre freira teria uma refeição agradável após uma prece rápida; bem rápida porque o corpo tem mais fome que a alma. Mas ela escolheu sentar-se ao lado da garota com cabelo esquisito; gostava de se misturar, a freira. ‘Sabe o que isso significa?’, ela perguntou para a freira sem nome, que negou com a cabeça, visto que a boca estava cheia após uma bocada glutona em um sanduíche com carne de porco. A garota continuou: ‘Que podemos estar abrindo uma nova era de conhecimento! Quem sabe, assim poderemos provar que seu amigo imaginário não existe!’. Depois de comer um pouco mais ela concluíu: ‘Aliás, o que uma freira está fazendo em um lugar dedicado a derrubar suas teorias?’. A freira não tinha respostas para essa pergunta e a garota não abria espaço para ela falar, explicando a maravilha do Big Bang e citando biólogos, astrônomos, físicos e filósofos que explicavam como o Universo não precisava de um Deus. ‘Em teoria’, ela continuou falando como se não precisasse respirar, ‘em teoria, se você socar uma porta tempo suficiente, eventualmente sua mão irá atravessar a matéria! Seria necessário mais tempo do que... bem, o próprio tempo que existiu até hoje, mas as probabilidades não mentem: uma hora sua mão iria atravessar a madeira intacta. Bum! Bug na existência, cadê o seu Deus agora, hein?’ Ao final da refeição a freira estava a meio caminho de fazer perguntas para outros deuses, menores e um pouco menos antropomórficos e passava a duvidar de todas suas crenças até aquele momento. Por outro lado, aquele sanduíche estava realmente muito bom, o que valeria outra visita.
Voltemos ao presente. Ela estudava os dados do último teste no CERN. Dados eram importantes naquele lugar, talvez o único lugar do mundo em que eles eram de importância mais vital do que em uma mesa cercada por adolescentes com fortes odores, grandes espinhas, baixa estima e imune virgindade brincando de serem outras pessoas. Amava os dados, cada partícula em alta velocidade podia gerar novas perspectivas para entender o mundo. Era uma médica formada porque queria entender o mundo interior, mesmo motivo pelo qual tinha cursado filosofia. O que restava em sua busca poderia ser alcançado naquele lugar, com minúsculas bolas se chovando e provocando energia suficiente para queimar qualquer coisa viva em um raio de alguns quilômetros.
Aqueles números eram, no entanto, impressionantes. Impressionantes além do que ela podia imaginar. Eu vim aqui para isso, ela se lembrou. Pegou o telefone e ligou para outro cientista, em outro lugar e em outro CERN. ‘Estou vendo isso direito?’, ela perguntou. ‘Essa é a verdadeira partícula divina!’, respondeu o outro cientista, em outro lugar e em outro CERN, ‘acertamos a loteria! Esqueça tudo que você sabe, as possibilidades são infinitas. Não é mais Deus quem joga os dados. Somos nós, minha querida. Nós jogamos os dados agora.’
Ela não acreditava no que estava vendo. Derrubou a pilha imensa de cálculos todas as dimensões testadas (algumas inventadas para justificar a complexidade matemática das formulas utilizadas) e puxou o pôster da parede, derrubando o diploma de Filosofia durante um de seus All in (o primeiro que o triste pedaço de papel, impossibilitado de qualquer sentimento uma vez que não era um ser vivo, iria ganhar em toda sua vida) No armário, em um canto esquecido e mofado, retirou um grande tubo de cartolina e espirrou por causa do pó. Desenrolou o novo poster e o prendeu na parede com duas tachinhas. Olhou para a nova ordem, para o novo modelo de entendimento da física moderna e chorou como nunca chorou antes ou depois em sua vida. Na parede, Douglas Adams sorria com as feições hobbitiescas que tinha. Era como se estivesse sorrindo em deboche do que fora feito até então. Sabíamos tão pouco! Mas ela agora tinha a resposta: ‘42’, diziam os dados. E os dados não mentem, pergunte ao mestre.
Ela, de repente, pulou sobre as pilhas intermináveis de números desconexos. ‘Quarenta e dois’ diziam seus lábios. Ela tinha a resposta, mas a pergunta ainda estava lá fora, perdida em algum lugar do Universo. Ou em outro Universo, quem sabe em uma mesa de bilhar ou em uma jukebox quebrada. Talve-

Zack parou e leu o que tinha escrito. Fez uma careta, amassou o papel e terminou o drink que estava ficando quente no balcão vazio do bar fechado. Tirou a jukebox da tomada. Pensou um pouco mais e colocou-a de volta no plug; era melhor assim, algo dizia em seu interior.
Quando chegou no pequeno quarto em que dormia, jogou fora a cópia que tinho d’O Guia do Mochilerio das Galáxias e foi dormir, decidido a nunca mais tentar escrever outra vez.
Não fora feito para escrever, cogitou. Às vezes eu nasci sem histórias em mim. Tenho que me contentar em servir as bebidas, não é como se as minhas histórias tivessem alguma importância.
Os Universos, todos eles, tremiam com o caos e o paradoxo criados pela decisão de Zack. Ele, entretanto, dormia tranquilamente, noite após noite.

Um comentário:

  1. Puxa Mau que texto "filosófico". Muito bom, muito gostoso de ler. Vc o "ensinador" (rsrsrs) de sempre. Adorei. Ana Eliza.

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