A pilha de papéis crescia exponencialmente, ameaçando
encobrir o pôster de Albert Einstein que ela tinha em uma das paredes do
pequeno escritório. A sala era apertada e sem janelas, apenas uma lâmpada
balançava no teto e apenas quando ela se levantava e batia, com muita força, a
cabeça no lustre, derrubando partículas de poeira que brilhavam na luz
artificial, cena que sempre a fazia sonhar sobre os maiores mistérios sobre o
Universo e tudo mais. Porque para ela não bastava sonhar apenas sobre o universo: havia todo o resto!
Ela tinha embutido
em algum lugar do cérebro teimoso e mimado uma curiosidade nata, às vezes
respondia para as pessoas que sua profissão era ser curiosa. Era uma curiosa
profissional, por assim dizer. Atrás do poster do Einstein mostrando a língua, três diplomas estavam pendurados e esquecidos, mas,
caro leitor, não fique preocupado pois eles jogam poker todas as terças e não
ficam entediados. Afinal, deixe-me lembrar, eles são apenas pedaços de papel. Medicina, Filosofa e Física, diziam
em letras garrafais. (Mesmo sem importância para a trama, o leitor anônimo pode
estar se perguntando: ‘E quem geralmente
ganha as rodadas da jogatina?’. O narrador então responde: ‘A Física. Todos conhecem a regra do jogo,
mas ela é a única a se preocupar com o que está fora das regras escritas’. O cenário é na verdade impossível:
lembre-se, estamos falando de pedaços de papel presos entre um vidro e uma
imitação barata de madeira). Era o último diploma, entretanto, o que mais
justificava o ordenado com cinco dígitos que ela recebia por vasculhas os
mistérios do mundo da Física Teórica. Quando digo ‘mundo’ faço, na verdade, referência às infinitas possibilidades das
mais variadas teorias do Tudo, desde as Cordas, Loops e as partículas de luz,
qua ainda teimam em agir como partícula e
onda ao mesmo tempo, até os malditos neutrinos específicos que, para o engasgo
da protagonista, podiam andar mais rápido que a luz. ‘O que é rápido pra cacete’, ela explicou uma vez para uma freira
que cometera o terrível engano de sentar naquela mesa, naquele dia. Veja bem,
em praticamente qualquer outro dia ou horário (ou mesa), a pobre freira teria
uma refeição agradável após uma prece rápida; bem rápida porque o corpo tem
mais fome que a alma. Mas ela escolheu sentar-se ao lado da garota com cabelo
esquisito; gostava de se misturar, a freira. ‘Sabe o que isso significa?’, ela perguntou para a freira sem nome,
que negou com a cabeça, visto que a boca estava cheia após uma bocada glutona
em um sanduíche com carne de porco. A garota continuou: ‘Que podemos estar abrindo uma nova era de conhecimento! Quem sabe,
assim poderemos provar que seu amigo imaginário não existe!’. Depois de
comer um pouco mais ela concluíu: ‘Aliás,
o que uma freira está fazendo em um lugar dedicado a derrubar suas teorias?’.
A freira não tinha respostas para essa pergunta e a garota não abria espaço
para ela falar, explicando a maravilha do Big Bang e citando biólogos,
astrônomos, físicos e filósofos que explicavam como o Universo não precisava de
um Deus. ‘Em teoria’, ela continuou
falando como se não precisasse respirar, ‘em
teoria, se você socar uma porta tempo suficiente, eventualmente sua mão irá
atravessar a matéria! Seria necessário mais tempo do que... bem, o próprio
tempo que existiu até hoje, mas as probabilidades não mentem: uma hora sua mão
iria atravessar a madeira intacta. Bum! Bug na existência, cadê o seu Deus
agora, hein?’ Ao final da refeição a freira estava a meio caminho de fazer
perguntas para outros deuses, menores e um pouco menos antropomórficos e
passava a duvidar de todas suas crenças até aquele momento. Por outro lado,
aquele sanduíche estava realmente muito bom, o que valeria outra visita.
Voltemos ao
presente. Ela estudava os dados do último teste no CERN. Dados eram importantes
naquele lugar, talvez o único lugar do mundo em que eles eram de importância
mais vital do que em uma mesa cercada por adolescentes com fortes odores,
grandes espinhas, baixa estima e imune virgindade brincando de serem outras
pessoas. Amava os dados, cada partícula em alta velocidade podia gerar novas
perspectivas para entender o mundo. Era uma médica formada porque queria
entender o mundo interior, mesmo motivo pelo qual tinha cursado filosofia. O
que restava em sua busca poderia ser alcançado naquele lugar, com minúsculas
bolas se chovando e provocando energia suficiente para queimar qualquer coisa
viva em um raio de alguns quilômetros.
Aqueles números
eram, no entanto, impressionantes. Impressionantes além do que ela podia imaginar.
Eu vim aqui para isso, ela se
lembrou. Pegou o telefone e ligou para outro cientista, em outro lugar e em
outro CERN. ‘Estou vendo isso direito?’,
ela perguntou. ‘Essa é a verdadeira
partícula divina!’, respondeu o outro cientista, em outro lugar e em outro
CERN, ‘acertamos a loteria! Esqueça tudo
que você sabe, as possibilidades são infinitas. Não é mais Deus quem joga os
dados. Somos nós, minha querida. Nós jogamos os dados agora.’
Ela não acreditava
no que estava vendo. Derrubou a pilha imensa de cálculos todas as dimensões
testadas (algumas inventadas para justificar a complexidade matemática das
formulas utilizadas) e puxou o pôster da parede, derrubando o diploma de
Filosofia durante um de seus All in
(o primeiro que o triste pedaço de papel, impossibilitado de qualquer
sentimento uma vez que não era um ser vivo, iria ganhar em toda sua vida) No
armário, em um canto esquecido e mofado, retirou um grande tubo de cartolina e
espirrou por causa do pó. Desenrolou o novo poster e o prendeu na parede com
duas tachinhas. Olhou para a nova ordem, para o novo modelo de entendimento da
física moderna e chorou como nunca chorou antes ou depois em sua vida. Na
parede, Douglas Adams sorria com as feições hobbitiescas
que tinha. Era como se estivesse sorrindo em deboche do que fora feito até
então. Sabíamos tão pouco! Mas ela agora tinha a resposta: ‘42’, diziam os
dados. E os dados não mentem, pergunte ao mestre.
Ela, de repente,
pulou sobre as pilhas intermináveis de números desconexos. ‘Quarenta e dois’ diziam seus lábios. Ela
tinha a resposta, mas a pergunta ainda estava lá fora, perdida em algum lugar
do Universo. Ou em outro Universo, quem sabe em uma mesa de bilhar ou em uma
jukebox quebrada. Talve-
Zack parou e leu o
que tinha escrito. Fez uma careta, amassou o papel e terminou o drink que estava
ficando quente no balcão vazio do bar fechado. Tirou a jukebox da tomada.
Pensou um pouco mais e colocou-a de volta no plug; era melhor assim, algo dizia em seu interior.
Quando chegou no
pequeno quarto em que dormia, jogou fora a cópia que tinho d’O Guia do Mochilerio das Galáxias e foi
dormir, decidido a nunca mais tentar escrever outra vez.
Não fora feito para
escrever, cogitou. Às vezes eu nasci sem
histórias em mim. Tenho que me contentar em servir as bebidas, não é como se as
minhas histórias tivessem alguma importância.
Os Universos, todos
eles, tremiam com o caos e o paradoxo criados pela decisão de Zack. Ele,
entretanto, dormia tranquilamente, noite após noite.
Puxa Mau que texto "filosófico". Muito bom, muito gostoso de ler. Vc o "ensinador" (rsrsrs) de sempre. Adorei. Ana Eliza.
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