Einstein dizia que o tempo é relativo. O mundo da física,
quando pensado em modelos micro ou macroscósmicos, onde as massas atingem
proporções ridiculamente grandes, altera algumas de suas regras, tão certas e
confiáveis em nosso pequeno planeta rochoso. O que o cientista simpática de
língua para fora argumentava é que a força gravitacional dessas massas na escala
macro tinham uma... bem, força
suficiente para alterar o próprio tempo. Pense nisso. Eu espero. Pronto?
Fantástico, não é? A gravidade altera o tempo, isso tem de fazer seu cérebro
explodir, Estranho. O tempo está
passível aos campos gravitacionais e sua passagem é, portanto, relativa. E é nessa palavrinha que eu
quero me centrar agora: relativo. O tempo é
relativo. Por exemplo, quando aquela puta ergueu a garrafa de Jack e desferiu
um golpe em meu crânio, por sorte sem causar hemorragias ou concussões, o tempo
praticamente parou. Como nos filmes que passam na TV durante as tardes, quando
a personagem principal está no meio da rua e dois faróis aparecem virando a
esquina, em alta velocidade. Você, sentado no conforto de seu sofá, gritando em
desespero: O carro está vindo, imbecil,
saia da frente! Mas o seu protagonista está paralizado pelo medo. É
estúpido, não é? No entanto, acontece desta forma. Não desviei do carro, não
estiquei as pernas e dei o passo ao lado para não ser alegoricamente
atropelado. Não. Eu fiquei olhando, para os seios da mulher enquanto a garrafa
era registrada pela parte inteligente de meu cérebro. Duas coisas me chocaram
naquele momento e nenhuma delas fora a garrafa. O pênis de Bob, ou melhor, Bret
perto de meu rosto, ha uma distância incômoda, e a beleza do corpo daquela
mulher. Havia algo de errado, como já disse antes, Estranho. Uma espécie de
aura cobria a mulher, algo que... eu não sei, algo errado. Todas as
preocupações foram esquecidas quando a garrafa impactou sobre minha cabeça.
Acho que nessas condições as nossas preocupações também são relativas.
Quando voltei ao
mundo, emergindo das trevas profundas, encontrei-me amarrado a uma cadeira em
um quarto escuro, cujo ar carregado de horas e mais horas de sexo, suor, vômito
e abuso de drogas intercalava-se em alguns minutos de limpeza artificial.
Sentia o calor de meu próprio sangue escorrendo e secando ao longo de meu pescoço
e torso, mas não havia nada que podia fazer para remediar o machucado, não
enquanto estivesse amarrado daquele jeito. Minha cabeça explodia em ondas
constantes de dor e precisava manter um esforço contínuo para não apagar
novamente. Abri os olhos aos poucos, vencendo um milímetro por vez. A pouca
claridade do quarto era o suficiente para me fazer desejar estar na escuridão
profunda. Que dia interminável,
pensei miseravelmente.
Os raios de sol que
conseguiram atravessar as cortinas imundas do Dama da Noite iluminaram as pernas da mulher, sentada no canto
perpendicular ao meu. As pernas compridas acabavam no nada, em um corpo
obscurecido pelas sombras; apenas os olhos e a ponta de um cigarro acesso eram
visíveis: três pontos vermelhos na escuridão, brilhantes e carregados de
perigos camuflados. “Não tente falar”, ela me alertou. “Sua garganta está seca
e a dor de cabeça apenas ficará pior. Fique quieto, senhor Humphring”, maldição ela sabe meu nome, “e tudo
estará bem.” Como uma cobra, aquela boca destilava veneno. A luxúria era algo
natural para ela, jogos de sedução e manipulação sua segunda natureza. Eu
estava muito além de minha linha de conforto.
Minha carteira,
percebi, estava aberta na pequena mesa ao lado da porta do banheiro e seu
conteúdo espalhado, revirado e analisado com certeza. Preciso parar de carregar meus documentos. A iluminação súbta, no
entanto, estava atrasada. Eles sabiam quem eu era.
Três batidas ocas
na porta. Três explosões nucleares em minha têmporas. A mulher levantou
suavemente e andou até a porta, atravessando a coluna iluminada, revelando o
corpo semi-nu, coberto apenas por uma lingerie vermelha como seus olhos,
provocante... apenas como ela, falta-me comparação mais precisa. Novamente
senti que havia algo de errado na simples existência daquela mulher, como se
sua presença fosse um paradoxo que danificava os tecidos da realidade que nos
cercam. Outra explosão tomou conta de meus olhos quando a porta foi aberta e o
sol invadiu o cômodo, deixando-me parcialmente cego por alguns segundos. “Ele
acordou?”, escutei a voz de Bret. Ou de Bob. Ainda com os olhos fechados, senti
o peso dele apoiado na cadeira, o cheiro de cigarro e whisky exalava da pele do
homem, como se ele transpirasse partículas de tabaco e álcool. Ao menos ele
estava vestido. “Oi! Chandler está aí?”, o ar se movimentou instantes antes da
costas da mão gorda atingir minha bochecha. Mais sangue escorreu de um novo
talho feito pelo anel que ele usava.
“Assim ele vai
apagar de novo”, ela disse, há um milhão de anos-luz.
“Eu não tenho o
tempo, ou a paciência, chapa. Responda de uma vez, quem te mandou?” Ele dizia a
verdade e eu não tinha pretenções de apanhar mais naquele momento. Apanhar estava
fora da lista de coisas favoritas, eu estava descobrindo. Que porra de dia
longo.
Eu abri a boca e as
palavras me falharam. Como ela havia alertado, minha garganta estava desidratada
como um deserto. Um novo tapa, um novo corte, a mesma dor em minha cabeça. “Ele
ia falar, Cristo!”, ela disse, andando até o banheiro. Escutei a torneira
rangendo e o barulho de água caindo. Ela trouxe um copo e eu bebi, sentindo um
misto de alívio e náusea pela água gelada, mas com o gosto metálico de
ferrugem.
“Quem te mandou
para me vigiar?”, ele perguntou novamente.
“E...”, eu disse
com as palavras que voltavam para minha garganta, “a mulher.”
“A próxima será em
seu nariz com meu punho fechado. Que mulher?”
Ele não irá acreditar em mim. “E... ela”, eu disse com dificuldade, olhando na direção da mulher de
lingerie. “Outros... olhos, outra... cor. Bob. Amante.” Foi tudo que consegui
dizer. Esperei pela promessa de um nariz quebrado, mas Bob estava em silêncio,
olhos assustados. Ela andava freneticamente no quarto, do ponto A para o B e,
novamente para o A. Eles se trancaram no banheiro, tentei escutar o que
conversavam, sem compreender qualquer palavra.
Quando voltaram, ele
tinha um canivete nas mãos e rapidamente, antes que eu pudesse pensar em
qualquer perigo, usou-o para me libertar das cordas. “Desculpe por tudo isso,
chapa. Eu surtei quando vi as minhas fotos, você é um excremento por estar nesse
mundo.” Eu não soube o que responder. Ela ainda estava no banheiro, a porta
fechada. “Escute, quanto ela te pagou? Vou compensar pelos seus... pelas suas dificuldades.” Ele colocou uma mala
negra na cama e a abriu, dois sonoros clicks
ecoaram pelo quarto. Na mala havia duas pistolas automáticas e uma
minimetralhadora, além de dezenas de pequenos blocos de dinheiros amarrados por
elásticos grossos. “Eu vou pagar por sua máquina também, claro.”
“Doze. Doze mil
libras.”
Ele recolheu o
dinheiro da mala, deixando mais que oito décimos do que havia originalmente.
“Vinte e cinco mil. Isso deve recompensar pelos problemas que nós causamos.”
Acenei com a cabeça.
“Quem é ela?”,
perguntei, “A irmã gêmea?” Ah, Londres, doce Londres carregadas de pessoas
doentes.
Bob desabou na
cama, fazendo a madeira ranger sob o peso de seu corpo. “Não, não. Nada disso”,
ele sorriu. “É mais complicado, antes fosse simples assim. Darla tem dupla
personalidade. Na maioria dos dias ela está bem, cuida da própria vida, pinta
alguns quadros e brinca com os cachorros, mas quando ela acorda e coloca as
lentes azuis, o dia está perdido. Darla, nos dia da loira de olhos azuis, lentes
de contato coloridas, se transforma em uma puta mesquinha e manipuladora, que
só existe para foder com minha vida. Sinto muito que você foi para no meio do
furacão, Chandler.” Meu nome na boca de Bob, que ocasião perturbadora.
O que vocês estão fazendo em um lugar como esse? Porque
têm tantas armas e dinheiro? Eu queria
perguntar, tinha muitas dúvidas, mas limitei-me a pegar a sacola com o dinheiro
e andar até meu carro, sentindo que ainda estava em um sonho. Minha cabeça
ainda girava com dor, sangue seco e duplas personalidades. Que dia longo, longo
dia horrível. O Dama da Noite ainda
era um lugar nojento e o homem sujo da recepção ainda tinha sangue seco na
camisa. Ele me olhou com certa satisfação ao notar o sangue empoçado na gola de
minha camisa. Por sorte, o Fedora e o sobretudo estavam em minhas mãos. Dirigi
por quase uma hora e cheguei em meu escritório quando o sol já estava baixo e
algumas núvens carregadas se acumulavam em todas as direções, como quase todos
os dias nessa ilha. Ainda hoje não sei como dirigi, não tenho nenhuma memória
do que aconteceu no caminho.
Atravessei o
corredor apertado rapidamente, o maior ânus de Londres segundo o que diziam
meus clientes, e me arrastei pela escadaria, até chegar na pequena sala. Sentei
na cadeira do meu lado da mesa e dormi quase antes de meu corpo terminar a
descida. Por dez horas estive fora do mundo.
Despertei com o sol
de um outro dia. Minha cabeça ainda letajava e dois corte horríveis tomavam
conta de meu rosto e nuca. Entrei no pequeno banheiro anexo à minha sala e
lavei o rosto o melhor que pude. No armário da pia havia uma maleta para
primeiro socorros e fiz dois delicados curativos. Os cortes não foram profundos,
mas deixariam duas cicatrizes claras. Troquei de roupa e desci para comer algo,
meu estômago roncava. Atravessei a rua com o vento tentando retirar o Fedora da
minha cabeça e entrei em um pub, o Estábulo Real. Viver Candem Town por mais de
quinze anos provoca uma rejeição eqüina nas pessoas, aparentemente. O Estábulo
era um lugar decente, cuja comida tinha um sabor forte e a cerveja bem
acentuada descia prazerosa até meu estômago. Um pouco escuro, talvez, mas qual
pub londrino não é assim? Hey, pelo menos não estava indo comer peixe frito com
batatas.
Procurei a mesa que
ocupava normalmente, perto da vitrine, de onde poderia assisir o movimento
apressado na rua e vigiar a porta vermelha, esperando por novos clientes e
passei meus olhos no lugar. Dois casais trocavam palavras e carinhos nas mesas
ao redor e no balcão, dois policiais comiam torradas. Não tinha certeza se
estava pronto para um novo trabalho, mas era melhor do que ficar remoendo a
complexa mistura de ódio, culpa e dor que eu sentia. Dupla personalidade, minha cabeça recuperou as palavras de Bob.
Inventei uma desculpa para meu rosto quando a garçonete de costume me atendeu e
pedi um café da manhã completo e uma cerveja preta. Sem uma refeição completa
por quase dois dias, meu corpo anciava pelos ovos, bacon, feijão e salsichas
que chegaram e foram quase completamente devoradas em poucos minutos. A cerveja
assentou a comida e a energia começou a voltar com a digestão iniciada.
Encostei-me no
banco acolchoado do pub e respirei, aliviado. O que eu poderia fazer? Pegar meu
revólver de seis tiros, minhas dezoito balas e procurar por vingança contra Bob
e suas três armas, sendo Darla ainda mais perigosa que uma uzi? Não. Não Chandler. Deixe-me contar um segredo, Estranho, Chandler
iria engolir o orgulho e aproveitar aquelas vinte e cinco mil libras, sim
senhor.
Mas o tempo, caro
Estranho, é relativo, lembra? Pensando nesses dias estranhos, percebo que tudo
aconteceu rápido demais, sem me deixar muito espaço para raciocinar e planejar
uma reação.
A garçonete, uma
garota de vinte e dois anos, com um filho de um e outro na barriga, aumentou o
volume da televisão pendurada atrás do balcão. “...morto em um bizarro crime passional. Bob Maltese foi morto por
cinco tiros à queima-roupa. Henry Gregory, dono do hotel disse à policia que
foi agredido pelo principal suspeito do crime...”, oh, merda, tive tempo de pensar. A televisão mostrava uma imagem
estática do Dama da Noite de um lado
e a foto de Bob do outro enquanto minha própria imagem crescia no centro da
tela. Uma foto antiga, ainda de quando cabelos longos e selvagens desciam de
meu ombro e o Led Zeppelin estampava
minha camiseta, longe do homem com duas bandagens no rosto e um chapéu na mão;
um detetive particular raramente deixa fotos suas circulando na internet. A
repórter continuou, indicando meu nome com um erro comum: “... Chandler D Homphrenger foi identificado como amante de Darla
Maltese e culpado pelo homicídio. A polícia emite um aviso de procurado e pede
para que a população entre em contato por esse número para qualquer informação
sobre o suspeito. Ele está armado e é considerado perigoso.”
Em menos de um
segundo estava me dirigindo à saída do Estábulo Real, colocando o chapéu na
cabeça e evitando olhar para trás. Para minha surpresa, Darla estava entrando
pela porta vermelha, com as mesmas pernas longas e sedosas. Olhei para trás e
vi a jovem garçonete apontando em minha direção enquanto um dos policiais
falava com a central. Maldita garota!
Meu nome é Jonhatan
Raymond. Todos os dias acordo e ando pelas ruas cinzentas de Londres, fazendo
dinheiro e vivendo uma vida que adoro. Eu sou o cara que você encara no metrô,
com um terno suado e uma gravata apertada no pescoço, e imagina o tipo de vida
enfadonha que leva. E você está certo, minha vida é enfadonha e isso é tudo que
sempre quis. Meu nome não é Jonhatan Raymond e o tempo, caro Estranho, é
relativo.
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