sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Intermissão 2 - O Tempo e o Samurai


Zack olhava para o relógio, tentando entender o que acontecia. “Deve ser o magnetismo”, disse a mulher atrás dele. Ela estava sentada no balcão e era a única cliente no Clube, bebia uma cerveja e brincava com o amendoim que estava no recipiente ao lado. A Jukebox tocava Nina Simone e a mesa de bilhar parecia estar feliz. Zack às vezes se perguntava como poderia saber sobre as emoções de um móvel, mas o fato é que a mesa parecia feliz. Isso sempre acontecia com Nina Simone. O relógio, pendurado na parede e completamente empoeirado, continuava a progressão de sempre, girando o fino ponteiro vermelho um segundo por vez. O problema, e esse era o motivo pelo qual o bartender encarava o relógio com a expressão de indagação, era que os ponteiros giravam no sentido anti-horário.
“Como assim, o magnetismo?”, ele perguntou, sem desgrudar os olhos do ponteiro regressivo. Os minutos igualmente andavam para trás e, ele tinha certeza, se olhasse tempo suficiente para a máquina que marcava o tempo, as horas seguiriam o novo padrão.
“Igual aquele programa da televisão, sobre o avião que caiu na ilha. Deve ser algum problema de natureza magnética que está interferindo com o relógio de alguma forma. O que você acha? Que o tempo está andando para trás?”, ela soltou uma risada boba, que saiu pelo nariz e corou instantâneamente, o rosto como um morango. Ele olhou para a mulher, sorrindo com o canto da boca e notou como era linda, os cabelos negros caindo em cachos pelo rosto, avermelhado pela vergonha, olhos castanhos, penetrantes. Havia um ar acadêmico sobre ela, uma certa intelectualidade que não era imposta nas outras pessoas, livre da arrogância petulante que acompanha os diplomas de doutorado.
Zack apoiou os cotovelos no balcão, o perfume dela se misturava com o aroma da cerveja. “Não, não acho que o tempo está voltando. Mas também não acho que seja algum problema de origem magnética.”
“De qualquer forma, aposto que se você abrir a porta, verá que o sol está percorrendo o mesmo caminho de sempre, na direção normal, nascendo no Japão; morrendo no oeste. Logo, a terra está girando no próprio eixo no sentido certo, percorrendo a elipse anual, como sempre. Assim, o tempo está certo. O seu relógio não.” Ela bebeu mais da garrafa e jogou alguns amendoins na boca, mastigando com vontade.
Ela conhece astronomia básica, ao menos, Zack pensou, que mulher interessante. “É engraçado.”
O rosto dela voltava gradualmente ao normal. “O que é engraçado?”
“O tempo, a arbitrariedade das coisas. Algumas civilizações entendem o tempo de forma cíclica. Tudo aconteceu mais de uma vez e irá acontecer de novo, o tempo é como uma roda de ciclos infinitos. Diferente do mundo ocidental, onde o tempo é linear e progressivo. Esperamos pelo dia final, derramando sangue e suor nos trabalhos de cada dia.” Ele abriu mais duas cervejas e brindaram. “O capitalismo monopolizou o tempo. Nas primeiras fábricas, quem controlava o relógio tinha poder arbitrário e inquestionável, sabia? Se a jornada começasse mais cedo e outros minutos fossem roubados no final do dia, haveria mais produção e, por consequência, maior lucro. E nada dá mais dinheiro do que o lucro.”
Novamente a risada saiu pelo nariz, mais parecido com um ginchar do que com uma risada e ficou vermelha uma vez mais. “É a revolução do relógio, meu amigo. Imagine quando não havia as medidas exatas do tempo, quando a passagem era feita por dias ou luas ou cheias. As estações comandavam o ritmo das pessoas, a necessidade de plantar e colher no tempo certo definia a vida e a morte. O que diria uma pessoa acostumada com essas medidas de tempo sobre o seu relógio quebrado?”
Zack considerou algum tempo, sem encontrar uma resposta satisfatória. Por fim, decidiu que a questão era retórica e bebeu a cerveja, satisfeito pela companhia. “Às vezes eu fico imaginando como seria se tivéssemos outra medida temporal. Digamos, o tempo de uma mijada. Consegue pensar nas conversas hilárias que teríamos? ‘Por que você demorou tanto?’”, ele disse com uma voz mais grossa e continuou, desta vez em tom agudo: “‘Não estou tão atrasado assim, foram apenas quatro mijadas!’” Eles deram risadas juntos, Zack acompanhou a moça com as fungadas e as risadas se tornaram ainda mais fortes.
“Você está dizendo, sinceramente, que pensa nessas coisas?”, ela perguntou enquanto enxugava as lágrimas que caiam pelo rosto bonito.
“Ora, porque não? Minha mente é um lugar estranho.”
“Com isso eu devo concordar.” Comeu mais amendoins. “Você conhece a história do Musashi?”
A Jukebox marcou o tempo, tocando outra música.             “O samurai, sim”, Zack respondeu.
“Ele vivia sobre as regras de um tempo próprio, pense nisso. Foi uma vida cheia de violência, cada dia poderia ser o último... cada hora poderia ser a última. Ele foi atacado enquanto tomava banho, depois disso evitou os banhos e andava sujo e fedido pelas ruas japonesas; chegou atrasado em alguns duelos, irritando o inimigo e adianto em outros, surpreendendo outros perigos, era um cara inteligente. Mas ele interessa aqui pela visão do momento que ele tinha, algo mais específico do carpem diem, restrito para cada instante. O sumiê”, ela continuou, retirando os óculos e limpando com a própria roupa, “é um estilo de arte que imita os golpes de uma katana, cada pincelada era um golpe e, como em um duelo, ele deveria ser decisivo e certeiro, livre de hesitações. Você já ouviu falar de um samurai hesitante? Não, eles não duravam tempo suficiente para ganhar fama, eles morriam jovens.”
“Viver pelo instante”, ecoou as palavras da mulher. “É uma proposta interessante, mas difícil de se seguir. A própria noção de escrita é um empecilho para essa idéia, se você pensar bem. Marcamos o tempo em diários, calendários e anais de guerras ou de governos, não podemos viver no instante, a cada instante sem pensar no próximo minuto... A própria história é o acumulo de avanços e retrocessos no longo período.”
“Mas isso porque você não vive no mesmo tempo que ele, sua vida não se resume a errar pelo país em duelos de espadas. É como comparar o calendário semanal com o calendário lunar, são duas coisas incompatíveis. Ele vivia pelo instante e sentia-se vivo principalmente quando as duas lâminas mordiam a pele de outros samurais. Dizem os livros que ele fazia obras do estilo sumiê com água. Afirmava que assim economizava tinta e papel e levava às últimas consequências a própria filosofia. Era como um duelo, as pinturas que fazia. Importavam naquele momentos, uma urgência aguda que justificava a sua existência, depois que secavam, estavam no passado e não mais existiam.”
“Só que ele aprendia a cada duelo e a experiência acumulada não pertencia apenas aos momentos da batalha, ele estava contruindo o próprio caminho e ganhando a própria vida desta maneira.”
Sun and Steel começou a tocar no Clube. A mulher olhou para trás, surpresa pelo estilo musical. “Que tipo de Jukebox tem Iron Maiden como opção?”
“Apenas as melhores”, respondeu. “O que você faria se o seu relógio começasse a andar para trás?”
Ela sorriu, um momento único na vida de Zack. Naquele instante, naquela insignificante fração de tempo de sua vida, compreendeu a existência própria e o papel que deveria desenvolver naquele mundo. Os lábios da bela mulher era a única visão que lhe importava e ele nadou na sensualidade contida dos olhos penetrantes. Como é o fato de todos os instantes, aquela breve sensação morreu e ficou no passado.
“Eu compraria um relógio novo, um que funcionasse de verdade”, respondeu, apenas para dar a risada quase suína.
Fora do Clube o sol  morria no leste, mas nada disso importava dentro das paredes manchadas do lugar. Para eles, o que importava era continuar a conversa entre mais e mais bebidas. Viviam por aqueles instantes, únicos e belos... passageiros.
O ponteiro vermelho parou no lugar, fixando-se talvez para sempre. Mas eles nunca perceberam, apenas continuaram a conversar sobre tudo, sobre nada, sobre o tempo.

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