Zack olhava para o relógio, tentando entender o que acontecia.
“Deve ser o magnetismo”, disse a mulher atrás dele. Ela estava sentada no
balcão e era a única cliente no Clube, bebia uma cerveja e brincava com o
amendoim que estava no recipiente ao lado. A Jukebox tocava Nina Simone e a mesa de bilhar parecia
estar feliz. Zack às vezes se perguntava como poderia saber sobre as emoções de
um móvel, mas o fato é que a mesa parecia
feliz. Isso sempre acontecia com Nina
Simone. O relógio, pendurado na parede e completamente empoeirado,
continuava a progressão de sempre, girando o fino ponteiro vermelho um segundo
por vez. O problema, e esse era o motivo pelo qual o bartender encarava o
relógio com a expressão de indagação, era que os ponteiros giravam no sentido
anti-horário.
“Como assim, o
magnetismo?”, ele perguntou, sem desgrudar os olhos do ponteiro regressivo. Os
minutos igualmente andavam para trás e, ele tinha certeza, se olhasse tempo
suficiente para a máquina que marcava o tempo, as horas seguiriam o novo
padrão.
“Igual aquele programa
da televisão, sobre o avião que caiu na ilha. Deve ser algum problema de
natureza magnética que está interferindo com o relógio de alguma forma. O que
você acha? Que o tempo está andando para trás?”, ela soltou uma risada boba,
que saiu pelo nariz e corou instantâneamente, o rosto como um morango. Ele
olhou para a mulher, sorrindo com o canto da boca e notou como era linda, os
cabelos negros caindo em cachos pelo rosto, avermelhado pela vergonha, olhos
castanhos, penetrantes. Havia um ar acadêmico sobre ela, uma certa
intelectualidade que não era imposta nas outras pessoas, livre da arrogância
petulante que acompanha os diplomas de doutorado.
Zack apoiou os
cotovelos no balcão, o perfume dela se misturava com o aroma da cerveja. “Não,
não acho que o tempo está voltando. Mas também não acho que seja algum problema
de origem magnética.”
“De qualquer forma,
aposto que se você abrir a porta, verá que o sol está percorrendo o mesmo caminho
de sempre, na direção normal, nascendo no Japão; morrendo no oeste. Logo, a
terra está girando no próprio eixo no sentido certo, percorrendo a elipse
anual, como sempre. Assim, o tempo
está certo. O seu relógio não.” Ela bebeu mais da garrafa e jogou alguns
amendoins na boca, mastigando com vontade.
Ela conhece astronomia básica, ao menos, Zack pensou, que mulher
interessante. “É engraçado.”
O rosto dela
voltava gradualmente ao normal. “O que é engraçado?”
“O tempo, a
arbitrariedade das coisas. Algumas civilizações entendem o tempo de forma
cíclica. Tudo aconteceu mais de uma vez e irá acontecer de novo, o tempo é como
uma roda de ciclos infinitos. Diferente do mundo ocidental, onde o tempo é
linear e progressivo. Esperamos pelo dia final, derramando sangue e suor nos
trabalhos de cada dia.” Ele abriu mais duas cervejas e brindaram. “O
capitalismo monopolizou o tempo. Nas primeiras fábricas, quem controlava o
relógio tinha poder arbitrário e inquestionável, sabia? Se a jornada começasse
mais cedo e outros minutos fossem roubados no final do dia, haveria mais
produção e, por consequência, maior lucro. E nada dá mais dinheiro do que o
lucro.”
Novamente a risada
saiu pelo nariz, mais parecido com um ginchar do que com uma risada e ficou
vermelha uma vez mais. “É a revolução do relógio, meu amigo. Imagine quando não
havia as medidas exatas do tempo, quando a passagem era feita por dias ou luas
ou cheias. As estações comandavam o ritmo das pessoas, a necessidade de plantar
e colher no tempo certo definia a vida e a morte. O que diria uma pessoa
acostumada com essas medidas de tempo sobre o seu relógio quebrado?”
Zack considerou
algum tempo, sem encontrar uma resposta satisfatória. Por fim, decidiu que a
questão era retórica e bebeu a cerveja, satisfeito pela companhia. “Às vezes eu
fico imaginando como seria se tivéssemos outra medida temporal. Digamos, o
tempo de uma mijada. Consegue pensar nas conversas hilárias que teríamos? ‘Por
que você demorou tanto?’”, ele disse com uma voz mais grossa e continuou, desta
vez em tom agudo: “‘Não estou tão atrasado assim, foram apenas quatro
mijadas!’” Eles deram risadas juntos, Zack acompanhou a moça com as fungadas e
as risadas se tornaram ainda mais fortes.
“Você está dizendo,
sinceramente, que pensa nessas coisas?”, ela perguntou enquanto enxugava as
lágrimas que caiam pelo rosto bonito.
“Ora, porque não?
Minha mente é um lugar estranho.”
“Com isso eu devo
concordar.” Comeu mais amendoins. “Você conhece a história do Musashi?”
A Jukebox marcou o
tempo, tocando outra música. “O
samurai, sim”, Zack respondeu.
“Ele vivia sobre as
regras de um tempo próprio, pense nisso. Foi uma vida cheia de violência, cada
dia poderia ser o último... cada hora poderia ser a última. Ele foi atacado
enquanto tomava banho, depois disso evitou os banhos e andava sujo e fedido
pelas ruas japonesas; chegou atrasado em alguns duelos, irritando o inimigo e
adianto em outros, surpreendendo outros perigos, era um cara inteligente. Mas
ele interessa aqui pela visão do momento que ele tinha, algo mais específico do
carpem diem, restrito para cada
instante. O sumiê”, ela continuou, retirando os óculos e limpando com a própria
roupa, “é um estilo de arte que imita os golpes de uma katana, cada pincelada
era um golpe e, como em um duelo, ele deveria ser decisivo e certeiro, livre de
hesitações. Você já ouviu falar de um samurai hesitante? Não, eles não duravam
tempo suficiente para ganhar fama, eles morriam jovens.”
“Viver pelo
instante”, ecoou as palavras da mulher. “É uma proposta interessante, mas difícil
de se seguir. A própria noção de escrita é um empecilho para essa idéia, se
você pensar bem. Marcamos o tempo em diários, calendários e anais de guerras ou
de governos, não podemos viver no instante, a cada instante sem pensar no
próximo minuto... A própria história é o acumulo de avanços e retrocessos no
longo período.”
“Mas isso porque
você não vive no mesmo tempo que ele, sua vida não se resume a errar pelo país
em duelos de espadas. É como comparar o calendário semanal com o calendário
lunar, são duas coisas incompatíveis. Ele vivia pelo instante e sentia-se vivo
principalmente quando as duas lâminas mordiam a pele de outros samurais. Dizem
os livros que ele fazia obras do estilo sumiê com água. Afirmava que assim
economizava tinta e papel e levava às últimas consequências a própria filosofia.
Era como um duelo, as pinturas que fazia. Importavam naquele momentos, uma
urgência aguda que justificava a sua existência, depois que secavam, estavam no
passado e não mais existiam.”
“Só que ele
aprendia a cada duelo e a experiência acumulada não pertencia apenas aos
momentos da batalha, ele estava contruindo o próprio caminho e ganhando a
própria vida desta maneira.”
Sun and Steel começou a tocar no
Clube. A mulher olhou para trás, surpresa pelo estilo musical. “Que tipo de
Jukebox tem Iron Maiden como opção?”
“Apenas as
melhores”, respondeu. “O que você faria se o seu relógio começasse a andar para
trás?”
Ela sorriu, um
momento único na vida de Zack. Naquele instante, naquela insignificante fração
de tempo de sua vida, compreendeu a existência própria e o papel que deveria
desenvolver naquele mundo. Os lábios da bela mulher era a única visão que lhe
importava e ele nadou na sensualidade contida dos olhos penetrantes. Como é o
fato de todos os instantes, aquela breve sensação morreu e ficou no passado.
“Eu compraria um
relógio novo, um que funcionasse de verdade”, respondeu, apenas para dar a
risada quase suína.
Fora do Clube o
sol morria no leste, mas nada disso
importava dentro das paredes manchadas do lugar. Para eles, o que importava era
continuar a conversa entre mais e mais bebidas. Viviam por aqueles instantes,
únicos e belos... passageiros.
O ponteiro vermelho
parou no lugar, fixando-se talvez para sempre. Mas eles nunca perceberam,
apenas continuaram a conversar sobre tudo, sobre nada, sobre o tempo.
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