“Ele me disse que meu nome seria John”, disse John. “Pelo menos durante nossa… missão. Meu nome não é John, não de verdade, mas eu não posso dizer meu nome verdadeiro. Sabe, ele disse que os nomes têm uma… mágica neles, um forte controle sobre seus donos.”
“Eu sou Paul. Segundo ele, esse é meu nome. Paul.”
“Jimmy.”
“ Sou irmão do… John: Robert.”, completou o garoto que também não possuía tal nome.
Os quatro garotos formavam um círculo na entrada da floresta, permanecendo de mãos dadas e se estudando. Entre eles, uma aura mística de naturalidade havia se formado instantaneamente, sentiam-se como se fossem amigos durante todos os poucos anos de vida, como se fossem irmãos em outras vidas, unidos por um único destino; no entanto, era a primeira vez que se viam, excluindo os dois irmãos, e cada um deles parecia de alguma forma especial. “Vocês também falaram com o velho.” Jimmy constatou, apertando levemente as mãos de Robert e Paul. “Ele me pediu para estar aqui, descer em White City, pegar a saída oeste e caminhar duas quadras. ‘Não se preocupe’, ele me disse, ‘você encontrará a entrada do bosque.’ Vocês sabem como foi difícil achar a saída oeste? Como eu deveria saber o que é oeste?”
“Não tinha idéia que aqui tinha uma floresta”, disse Robert. “Mamãe mandou eu não sair do caminho da escola… mas o velho me contou que era preciso… que eu ia encontrar outros garotos e que nós deveríamos parar o homem mau e trazer o Fogo de volta. Foi o que ele disse, o fogo com ‘F’ maiúsculo.”
“Eu quero ir para casa!”, Paul, que na verdade tinha o nome mais inusitado de todos, reclamou. Ele era gordo e tinha ranho pendurado em uma das narinas. O cabelo escuro caia sobre o rosto manchado por sardas e ele carregava um pacote que estava parcialmente descoberto por um dos bolsos. Ele escondeu o saco com uma das mãos e apertou o papel pardo. “Alguém quer uma bala ou um pouco alcaçuz?” Os outros meninos mexeram a cabeça, fazendo o sinal universal de negação.
Jimmy se livrou do aperto e quebrou o circulo, parando diante da entrada do pequeno bosque em White City. “Eu não fazia idéia mesmo que havia algo assim por aqui”, disse mais para si mesmo do que para os outros garotos, completo estranhos de nome falsos… mas lobos da mesma matilha. Olhou para a trilha, já enfraquecida pela ação do tempo, e sentiu um aperto no peito, como se James, da escola, estivesse sentado nele, como fazia em quase todas as aulas de educação física. Em certa ocasião, James - um garoto loiro e de olhos azuis, alvo de suspiros e olhares de todas as garotas da classe - empurrou Jimmy para dentro do banheiro feminino e fechou a porta, segurando firmemente a maçaneta. Ele gritou e gritou e gritou, até que quase todos os estudantes daquele pavilhão estivessem presentes para ver, com entusiasmo, a nova garota da escola. Quando ele soltou a porta, Jimmy puxou com força a maçaneta e bateu a maneira na testa, abrindo um largo corte. Lembrava-se do sangue queimando um dos olhos e de todos os colegas apontando e rindo. Desde então, não houve um único dia em que ele não era lembrado do incidente. Passava, sem perceber, a mão na cicatriz que tinha no meio da testa. A entrada para o bosque seguia em linha reta até onde eles podiam ver, sumindo entre as árvores e flores nativas, cortada vez ou outra por um esquilo. “Acho… acho que devemos entrar. O velho nos mandou para cá, agora eu diria que devemos entrar pela trilha.”
John também se soltou dos outros garotos e se aproximou de Jimmy. “Eu e meu irmão temos de voltar para casa depois da aula, ou nossos pais ficarão preocupados. Nós… nós temos dinheiro, sabe?”, ele disse para justificar o grau de paranóia dos genitores. Jimmy e Paul olharam para os outros meninos e reparam que usavam o mesmo uniforme: uma camisa escura, com uma pequena Union Jack costurada na altura do coração e calças azuis, combinando com os dois pares de sapatos. Robert e John tinham os rostos semelhantes e eram ruivos, além de terem praticamente a mesma altura.
Paul abaixou os olhos para as mãos e se dedicou a tirar do embrulho uma bala rosada. “Vocês são gêmeos”, constatou antes de atirar o doce para dentro da boca.
“Não”, Robert respondeu, “mas as pessoas sempre acham isso. Eu sou um ano mais velho e John será mais alto do que eu quando formos mais velhos, nós achamos. Por isso temos a mesma altura.”
“Eu tenho - que caramba de bala gostosoa - tenho uma irmãzinha. Eu sempre desejo que ela seja roubada pelo grinch ou por algum troll.”
“Que horror!”, responderam os irmãos em unísono.
“Por que você desejaria algo assim?”, Jimmy perguntou, retirando os olhos da trilha.
Encabulado, Paul disse baixinho: “Era só uma brincadeira”, e então subiu o tom, quase gritando, “Vamos entrar no bosque ou não? Estamos aqui para isso, não é? Quero entrar e ir para casa jogar vídeo-game. E brincar com minha irmã.” Ele correu pela trilha, desaparecendo de vista no momento em que pisou dentro do bosque.
Os outros três seguiram Paul, hesitantes e temerosos.
Quando atravessaram a entrada do pequeno bosque, deixaram o mundo que conheciam para trás. Entre um passo e outro, John, Jimmy e Robert deixaram seus corpos em outra realidade, esquecidos e confortavelmente protegidos na Umbra que separava aqueles dois planos da existência, revelando a verdadeira essência de cada um deles. Paul já esperava por eles daquele lado, estudando maravilhado as plantas exóticas e o céu vermelho. “Vejam isso, caras”, ele disse em tom jovial. Quando se virou para encarar os outros meninos, a orquídea que ele apontava perdera qualquer importância. Não eram mais garotos, os outros três: Jimmy era um contorno humanóide, vazio e repleto de coisas ao mesmo tempo, mudando a pele algumas vezes por minuto, vestindo o pôr do sol, um enxame de abelhas, o asfalto de alguma estrada passando a duas centenas de quilômetros horários; John batias as asas negras enquanto rodeava o grupo, abrindo o bico para soltar o grito ardido dos corvos; carregando uma espada feita do que parecia ser vidro, Robert vestia as roupas de um samurai e tinha o cabelo raspado, exceto por um tufo embolado em um coque no topo de sua cabeça. “Mas que merda aconteceu…”, a pergunta de Paul - que vestia a pele do garoto acima do peso - morreu no ar.
Com passos rápidos e silenciosos, Robert afastou-se alguns metros e desembainhou a espada que carregava na cintura. Ele era a imagem perfeita de um samurai. Disparou três rápidos cortes no ar e permaneceu em posição de ataque, envolto por uma palpável aura de serenidade. Cada golpe, Robert sabia, deveria ser único e certeiro. Não havia segundas chances em uma batalha. Ele era um guerreiro, uma máquina de morte e destruição. “Eu tomo como verdade que o pássaro negro que nos acompanha é, não podendo ser outrém, meu irmão de sangue, cuja alcunha é John. John, o Corvo.”
“Gorducho! Gorducho!”, John grasnou, no alto antes de rir em confusa cacofonia. O Corvo experimentava o vôo, realizando curvas fechadas e subindo grandes alturas.
Jimmy apontou para o chão, sua mão era agora parte do oceano, e eles viram que a sombra do corvo era ainda a de uma criança. Tentou abrir a boca para dizer algo e percebeu que não tinha lábios, línguas ou dentes sequer. Como ele enxergava, era um mistério. É melhor eu não pensar se tenho nariz ou pulmão, pensou com estranha calma, aceitando prontamente o fato.
Robert encarou o novo amigo. “Qual espécie de magia envolve sua nova forma, Jimmy? O que será esse Manto transmorfo?” Jimmy, o Manto, apenas ergueu os ombros e Robert se voltou para o menino gordo. “Sua forma sempre foi verdadeira, Paul. Venerável e apreciado Paul.”
Paul aproximou-se de um uma orquídea vermelha, flor que anteriormente estudava. Gostava de flores, gosto que escondia de todas as outras pessoas, e possuía um vasto conhecimento sobre as mais variadas espécies. Mas uma orquídea daquela cor e com o formado tão estranho era desconhecida. A flor tinha quase trinta centímetros de diâmetro e exala um doce perfume, estranho para sua estirpe. “Pessoal, venham ver isso.” Ficaram lado a lado, John pousado no ombro de Paul, e olharam para a orquídea vermelha.
“Flor! Flor!”, grasnou o Corvo.
“O que há de tão magnífico nessa planta, Paul? Explique o que meus olhos não podem enxergar.” A voz de Robert estava calma, grossa.
“Eu nunca vi uma orquídea como essa, desse tamanho, cheiro e cor. Se vocês olharem ao redor, irão perceber que a maior parte dessas plantas são estranhas e… e algumas parecem se mover. Sem mencionar o céu vermelho.”
No exato momento em que Paul terminou a frase, a orquídea abriu seu centro e soltou um grito, espalhando esporos no ar, cada estômato funcionando como um mecanismo de propulsão. John levantou vôo e Jimmy puxou Paul para trás - um toque que causou aflições em cada centímetro do pobre garoto -, enquanto Robert cortou a flor com um único movimento de seu braço. Eles se afastaram da planta morta, evitando respirar o ar contaminado pelo seus mistérios; mistérios provavelmente fatais.
O grupo andou sem trocar palavras, caminhando no estreito caminho, evitando qualquer tipo de contato com o mundo que os cercava, seguindo a única direção possível. A trilha continuava por uma extensão indeterminada, atravessando as árvores e flores distribuídas pelo caminho, respirando o ar perfumado do bosque. Por duas horas eles andaram, a espada de Robert liderando o caminho e John, poucos metros acima, procurando por perigos no caminho, jogando sua sombra de humano sobre eles. Não sabiam o porquê caminhavam, apenas seguiam adiante, era a única opção. Do velho, explicação alguma eles receberam. Sem saber onde estavam ou o que eram, os garotos caminharam na trilha que atravessava o bosque.
“Perga! Minho!”, John grasnou depois de algumas horas e voltou para o chão. Suas asas estavam cansadas e ele sentia fome. Parou diante de uma árvore e começou, com os rápidos movimentos de olhos e cabeça, a ciscar o chão na procura de minhocas.
Uma árvore cortava a trilha com suas grossas raízes, fazendo-se notar contra qualquer possibilidade. No centro dela, um coelho branco, de longas pernas e braços, jazia amarrado por um cipó. O animal tinha por volta de um metro de altura e vestia um longo sobretudo marrom. Sua cartola jazia no chão, virada pelo vento. O pescoço do coelho estava quebrado e sua cabeça pendia em um ângulo não natural. As crianças pararam há alguns passos do animal sem vida e notaram que ele tinha o pergaminho em uma das mãos. “É o coelho da Alice”, Paul disse. O garoto esticou os braços e abriu a mão rígida e peluda, pegando o pergaminho e um relógio de bolso. “Alguma coisa o pegou, é óbvio, mas será que…”, era uma idéia terrível, mas uma forte possibilidade.
“Que ele morreu para não conseguir entregar essa mensagem para nós.” Robert concluiu para ele. “Estamos em perigo.”
“Leia! Leia!”, John pediu, com uma minhoca no bico.
Paul desatou o nó que prendia o pergaminho e o desenrolou. Apesar do curto texto que tingia o papel de algodão, o pergaminho era enorme e rolou por alguns metros na terra.
Queridos Paul, John, Jimmy & Robert,
Vocês têm agora a verdadeira forma de suas almas e cada um deve fazer uso dos prodígios presenteados. Há um conjunto de regras e leis que devemos seguir nessas situações - situações únicas e que fogem da realidades, seja ela qual for. Essas leis me proíbem de explicar as habilidades que possuem e como utilizá-las. Mas devo informar que precisarão de um guia e que seguir a trilha é a única forma de voltarem para nosso mundo. Vocês DEVEM chegar ao Farol e trazer de volta o que lá encontrarem. PROCUREM pelo GUIA! Apenas ele pode cruzar as brumas, pois ele é um viajante do tempo e do espaço.
Apenas a verdade pode carregar o Fogo, é importante saber.
O Contador de Histórias interrompeu a narrativa e as linhas que dividiam os mundos está tênue. Por isso há terrores inesperados e inexplicáveis pelo Bosque que caminham. Andem com cuidado. O Bosque é maior do que o próprio Universo, mas o caminho será curto.
Dêem algo de comer para o Coelho e ignorem suas piadas sujas.
Ele terminou de ler em voz alta e prendeu um canudo de alcaçuz no pêlo do Coelho Branco, deixando o marcador de tempo em um de seus bolsos.
“Não há assinatura”, disse Robert.
“Mas há perigos”, o garoto gordo respondeu. “Eu queria ouvir pelo menos uma piada.”
Jimmy se voltou para eles e, sem pronunciar palavras, disse que precisavam ir. Era como se milhares de vozes sussurrassem a mesma coisa na mente dos outros, vozes confusas, perdidas. Vozes com medo.
Eles podiam sentir os horrores daquele lugar.
O perigo estava na trilha.
E a trilha era o único caminho.
Sensacional!!! Muuuuito bom. Vc me "levou" para o bosque junto com os garotos e me fez "sentir" na pele o sol vermelho. Que criatividade heim? Adorei Mau. Parabéns. Ana Eliza.
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