Lia, entre cerveja e outra, uma meia página pulp que sobrara no fundo do bar. Escrito estranho, dizia assim:
"Ele era o gato do destacamento. Acompanhava aquele grupo de velhos mateiros desde que saíram do Recife, alguns anos atrás. Era confortável, afinal de contas: sempre sobravam pedaços de carne, às vezes cozidos, e os homens não se importavam que ele deitasse bem perto da fogueira, roubando espaço precioso que – não houvesse gato – seria usado para aquecer a barriga embriagada de alguém.
E o que ele devia fazer em troca era bem simples. Algo que, gostava de pensar, ele faria de qualquer jeito, com homens por perto ou não. O gato caçava ratos, espantava aves e animais selvagens, cuidando para que a intendência dos bandeirantes não perdesse comida para os seres da mata. Simples, não? O gato tinha certo orgulho de fazer parte daquela bandeira. O que pensariam dele, na cidade, quando voltassem e todos soubessem da coragem felina frente aos perigos selvagens? Ele tinha certo orgulho, de fato.
Deitado ali, no chão de terra batida sob o teto de palha recém-montado, o gato até lembrava das últimas noites, quando os homens se divertiram com a caça que finalmente alcançaram. O gato não entendia muito bem os motivos, nem que tipo de bicho era aquilo, os caçados pela bandeira. Pareciam homens, não pareciam? O gato enxergava um mundo monocromático, pouquíssimas cores, quase nada, mas podia apostar que aqueles homens caçados, se não eram homens, eram muito parecidos com os bandeirantes a quem ele servia tão lealmente. Talvez as roupas fossem diferentes, os caçados usassem menos, fossem um pouco mais nus. Talvez fossem pouco mais escuros do que os caçadores. Mas eram todas suposições, essas, e o gato não tinha certeza de nada.
Lembrando da noite anterior, entretanto, tinha certeza de que o cheiro de sangue era real. Os gritos, gemidos, açoites e rápido deslizar de lâminas também ecoavam no ouvido felino até agora, um dia depois. E as explosões! Mosquetes, bacamartes, pistolas piratas roubadas dos holandeses. A pólvora correndo e comendo as costas dos homens-caça, mais rápida que as garras dele, gato, voando com as quatro patas para cima de um rato hostil.
Resolveu parar de pensar. Não entendia aquilo tudo, não via nenhum triunfo na festa dos caçadores. Os homens com pouca roupa não roubavam a comida, roubavam? Porque, se roubassem, o gato já desde há muito teria enfiado as unhas na cara dos depravados. Então, se não roubavam comida, se não roubavam fogueira, por que eles eram caçados por entradas e bandeiras?
Sem se levantar, sem mover a cabeça, os olhos do gato viam as pernas do Calabresa, um chefe de capataz. Não era capitão-do-mato, o Calabresa, mas também não era um capacho. Ficava ali pelo meio, entre o homem que cuida do banheiro e o bandeirante-mor que coordena o ataque. Calabresa aguentava o baque, isso até o gato sabia. E ali, sentado na cerca, na beirada do tablado, se protegendo da chuva fina que caía naqueles lados de agreste pernambucano, Calabresa pitava fumo e catucava com ponta de faca a sujeira das unhas todas.
Batendo ritmados, os pés do bandeirante faziam um som bem chato, mas o gato não se mexia. Via as pernas do homem, os dois pedaços de caibro que faziam aquela cerca e, para lá dos limites telhados, a floresta verde escura anoitecida e úmida de chuva fina. Ouvia ruídos distantes mais do que sentia cheiros, mas nenhum dos barulhos dizia respeito a ele. Até onde percebia, os movimentos em torno do acampamento não eram de bicho, nem ratos nem aves, então os bandeirantes que se virassem. O gato não levantaria.
Mas, reparando bem, os movimentos vinham em círculos, pouco a pouco e vagarosos, aumentando o número de pontos móveis conforme se aproximavam dali. Fosse estrategista, o gato perceberia que um cerco já se formava, desde o coração da mata. Mas não era, e com o olfato danificado não sentiu o cheiro de carne podre que o teria apavorado.
Olhando as pernas de Calabresa, o gato agora avistava um sutil movimento nas mesmas. Como se estivessem tremendo. Agora, como se estivessem levitando. Os pés a dois palmos do chão, a três, sangue, mijo e suor escorrendo da perna afora, inundando o tablado, encharcando as ceroulas. O corpo do homem tombando na mata, de costas, e o gato finalmente com a cabeça levantada.
O cerco fechado, zumbis dos Palmares por todos os lados, a comida na intendência intacta. O gato podia dormir tranquilo: o segredo do quilombo e o lombo de pernil não seriam ameaçados, pelo menos não nos próximos dias, pelo menos não pelos homens honrados daquela bandeira, pelos homens devorados daquela bandeira."
- Que é isso aqui?, perguntou a Joana.
Ela não sabia.
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