sábado, 16 de fevereiro de 2013

As Brumas do Farol 2 - A Sala de Estudos de Paul


O peculiar grupo andou pela trilha estreita, evitando tocar a relva e as flores que diversificavam no caminho, impondo perigo a qualquer desvio da direção demarcada. O sol havia descido e o céu vermelho estava escuro. Robert liderava os quatro amigos, perguntando para o seu íntimo quem poderia ter feito a trilha que seguiam, como a Dorothy e seus companheiros a caminho de Oz, que tipo de força poderia abrir as plantas do Bosque e sobreviver para terminar o que foi começado e contar depois. Uma entidade, com certeza, uma força viva e munida de liberdade e vontade. Mas para qual intuito? Qual finalidade? E, principalmente, como? Eles seguiam em silêncio, remoendo pensamentos e tentando entender a nova forma.
O Bosque, percebeu Robert, era um ser vivo, por sua vez. Não era uma metáfora ou analogia, procurando enfeitar o ciclo de vida e morte que ocorria naquele local, não: o Bosque estava vivo e ele quase podia ouvir sua respiração. Novamente, sua mente se encheu de perguntas e indagações. E ele soube então que poderiam facilmente se perder, pois os caminhos de um ser vivo são seus e seus apenas, mudando ao seu bel prazer e egoísta vontade. O Bosque tinha o poder de mudar os caminhos e talvez a própria trilha na qual andavam, apesar de ainda ser o único meio seguro de chegar até o Fogo.
“Eu preciso voltar para casa.” A voz de Paul saiu fraca, tímida. Ele não sabia o que os outros pensariam ou se, de fato, lembrariam de um lar, de outro mundo. Conforme avançavam para dentro do Bosque, parecia que os outros adotavam a nova identidade, primeiro colocando-a ao lado da vida que seguiam, como uma pessoa que gostava de fingir ser outro alguém; mas as duas linhas se mesclavam aos poucos, formando uma só personalidade e a mais forte imperava sobre a identidade subjugada. Paul refletia sobre a fragilidade humana. “Eu tenho uma casa, vocês sabem? Pai, mãe… minha irmã… eu… eu só quero voltar cedo e não preocupar minha família. É só isso que eu quero.”
“Quieto!” O Corvo planava sobre eles, batendo as asas escuras quando começava a perder velocidade e altitude; os olhos atentos para os perigos da trilha. John podia sentir certas presenças ao redor deles e além, presenças que flutuavam sem direção, em eterno vagar, consumidos pela agonia. Ele sabia que tinha poderes para presentear com alívio as inocentes criaturas do Bosque e terminar a quase infinita jornada, mas não sabia como e precisava cuidar do grupo que cortava a escuridão do Bosque. Bateu as asas mais uma vez e subiu. O Bosque é maior do que o Universo. Estamos tão perdidos!
Robert parou repentinamente e se ajoelho, esticando uma mão para trás. O grupo parou e John desceu para o ombro de Paul. “Acho que escutei algo”, sussurrou o samurai, já retirando a katana da bainha. “Um… zumbido.”
Jimmy levantou-se e abriu os braços. Por um momento, as imagens que cortavam o contorno humano do garoto, cessaram e ele se tornou escuro como a noite. Então, uma luz, branca e forte, atingiu os olhos de todos e, por alguns segundos, ficaram cegos. Jimmy jorrava colunas de luz por todo o Bosque, iluminando mais de um par de olhos que banqueteavam o grupo. Criaturas da noite, pesadelos esquecidos há incontáveis Eras, fugiram da luz, com a pele queimada e os olhos derretidos, esquecendo do ataque que planejavam contra os estranhos que haviam entrado em seu domínio. John os sentiu afastando com velocidade e dor. Mas havia outra presença que não fugiu da luz de Jimmy, avançando com velocidade contra eles. Robert percebeu o movimento e deferiu um limpo golpe à sua frente, traçando um arco horizontal com o metal da espada, cortando apenas o ar puro.
O monstro se deslocou para trás, evitando o golpe que causaria grandes estragos em seu corpo.
Quando finalmente conseguiram enxergar, viram uma mosca gigantesca, agarrada em uma árvore perto da trilha. Ela tinha os olhos tamanho de cabeças de cavalos e cada hexágono gelatinoso brilhava na luz que escapava de Jimmy, agora fraca e controlada, da forma que uma vela brilha no meio da noite. As asas do inseto pareciam longas cortinas e as nervuras eram como bambus crescidos. A visão causava revolta no estômago de Robert e Paul. “Um… carrinho de bebê?”, perguntou o garoto gordo, apontando para uma das seis patas da criatura. Disse então com uma voz baixa, suave, mais para si mesmo do que para os outros, “É como a maçã do Kafka.”
A primeira visão fora o suficiente para Robert e, com ou sem carrinho preso no corpo horrendo da mosca, ignorando os perigos de uma investida direta, o samurai deu um longo salto para frente e formou um corte ascendente com sua espada, cruzando a madeira da árvore na diagonal, deixando um profundo corte do qual uma seiva vermelha escorreu prontamente. A árvore parecia sangrar e raízes se ergueram do solo, procurando agarrar os pés do garoto. Robert deu pequenos passos com o calçado de madeira, evitando as armadilhas da árvore e procurou no céu escuro pela mosca. John levantou vôo enquanto Paul correu para perto de Jimmy, retirando uma bala do bolso e mastigando de forma nervosa.
Uma rajada de ar jogou Robert para o lado e a mosca pousou com um forte impacto na terra, derrubando duas árvores que estavam perto - a árvore que parecia sangrar caiu e secou em poucos segundos, suas raízes procurando pelo agressor até o último momento de sua existência. Ele disparou diversos cortes contra a mosca, mas errou todos por alguns centímetros. A mosca dançava com graça e agilidade, prevendo seus movimentos com facilidade. Quando a o fio da espada chegava onde Robert queria, o corpo da mosca estava seguro pela distância. O samurai tentava ser mais rápido do que podia e o esforço se acumulava nos músculos doloridos.
Batendo as asas freneticamente, o Corvo preparou uma espiral em direção da batalha. Se ao menos pudesse mergulhar seu bico em um dos olhos do inseto, Robert teria uma vantagem e eles poderiam continuar na busca absurda. Esticou as asas e desceu com velocidade; sentia o vento correr entre as penas e podia ver o Bosque girando. Desceu como uma flecha negra, certeira e silenciosa. A mosca, no entanto, desviou de ambos ataques com calma e, com um rápido movimento de uma das asas, lançou o corvo para a terra.
Paul assistia à luta com impotência, sem saber como ajudar os amigos. Eu tenho que ajudar de alguma forma! Concentre-se gordo, pense… pense, pelos céus! Fechou os olhos e pensou... Se não podia ajudar com sua habilidades físicas, iria participar com sua melhor arma: o cérebro. O que sabia sobre moscas? Elas tinham um curto ciclo de vida, tinha lido nos livros de biologia - avançados para o ano em que estava, mas seu pai tinha uma biblioteca vasta e diversificada - mas esse era um conhecimento inútil para aquela ocasião, a não ser que pudessem entreter o inseto gigante até ele morrer de causas naturais. Não, outro conhecimento… ele precisava saber de algo! De repente, estava dentro da própria cabeça, sentado em uma escrivaninha em um quarto mal iluminado, com milhares de arquivos e pastas ao redor. Correu para uma das gavetas cheias de arquivos e começou a procurar por algo que pudesse ajudar o samurai e o pássaro.
História, geografia, química e física. Ele procurou em todos os armários, pastas e gavetas que encontrou, mas não conseguiu achar uma única linha que fosse de importância. Moscas. Moscas. Insetos. Onde poderia encontrar aquilo que procurava? Podia sentir o desespero percorrendo suas pernas trêmulas, causando um suor pegajoso escorrer pela testa, queimando seus olhos cansados. Foi então que a memória cruzou os labirintos do desespero e ele viu com perfeição a sala de sua casa, com a televisão ligada. Duas crianças, ele e sua irmã, estavam deitados em um tapete macio, tomando suco de laranja e comendo sanduíches feitos por sua mãe. Na televisão, um documentário da BBC sobre comidas estragadas estava passando. Paul - ele não ousava pensar em seu nome verdadeiro, não enquanto permanecessem naquele lugar cheio de regras e magias antigas - adorava documentários e sempre que ligava a televisão, procurar por algum que estivesse passando em um dos canais da BBC ou do Discovery Channel. O garoto, invisível para os outros personagens no cenário, sentou no sofá e assistiu televisão.
Paul abriu os olhos. Ao seu redor, o mundo estava envolto por uma escuridão quase sobrenatural, pensou que se esticasse a mão, poderia tocar nela, como se fosse um manto negro em uma peça de teatro. A única coisa que quebrava a escuridão era Jimmy, que queimava como velas em um candelabro. Ele podia ouvir os sons de batalha, o incômodo zumbido das asas do inseto gigantesco, o carrinho ainda pendurado em sua pata chacoalhava violentamente, batendo no chão e nas plantas ao redor. Havia sangue em uma das rodas e Paul quase poda ver o filete de sangue na testa de Robert. O garoto gordo estudou o vôo de John e os cortes do samurai. “Robert”, ele disse em voz baixa. Respirou profundamente e falou alto o suficiente para alcançar os amigos: “Essa coisa pode sentir o ar se deslocando, Robert. Corte onde ela estará, não onde ela está!”
Ele não pôde ver, mas logo ficou claro que suas palavras foram entendidas, pois a mosca jazia no chão, sem uma das asas. O inseto se debatia furiosamente, jogando terra e grama prateada para todos os lados. Uma das gramas atingiu o rosto de Robert e sangue escapou de sua pele cortada.
Robert aproximou-se da mosca, assim que ela ficou imóvel e realizou um último corte, completando a dança entre eles. A musica havia parado e os holofotes estavam apagados; hora de acabar a dança e tirar as meias suadas.
“Obrigado pela informação, Paul-san. Mas é com humilhação que agradeço: um guerreiro deveria estudar seu oponente, mas minha mente estava cercada por uma cortina de violência cega. Eu não sou honrado o suficiente para continuar a jornada ao seu lado.” Robert dobrou o corpo no arco característico.
“Não diga besteira, caro Robert. Sem suas ações estaríamos todos condenados”, virou-se então para Jimmy, “você fez o suficiente, amigo”. Jimmy parou de brilhar e um céu estrelado tomou conta de sua forma. “No final das contas, temos algumas estrelas nessa noite escura.”
“John! Corvo-san! Você está bem?”
O pássaro grasnou uma resposta positiva e continuou seu vôo. Ele mentiu, não estava bem. De alguma forma, podia entender o que a mosca dizia. Sou um cientista, não uma mosca. Bzz! Bzzzzz! Sou um cientista um homem humano humanonomem. Eu matei toda a minha equipe. Não sou uma homem, sou um mosca. Bzzz. Ebzzzzzperimento errado! Eu mosca sou agora. Milhões de ovos eu botei botei botei bzztei! Bzzz bzz bzz, John sentiu as penas se arrepiarem e um dedo gelado subiu pelos ossos leves quando a mosca pareceu sorrir. Percebeu que o inseto tinha uma consciência humana em algum lugar, escondida das horríveis visões de manchas de sangue em carrinhos de bebês - que porventura ficaram presos nos grossos pelos de suas patas - e corpos dilacerados que serviriam de ninho perfeito para seu ovos. Um exército de moscas devastando o mundo que eles conheciam. Em um rápido momento, viu um homem deitado em uma mesa, líquidos verdes e azuis entravam em suas veias e aos poucos ele se transformou na enorme mosca; uma cena que parecia sair das páginas de um autor surreal. O Corvo viu a mosca voando pelos céus de diferentes cidades, matando e sugando os fluídos dos corpos sem vida, botando ovos na carne que começava a apodrecer. A mosca buscou refúgio - pois o homem que ainda morava em algum lugar perdido de sua consciência, sofria por cada homicídio do enorme inseto - nas altas montanhas do Himalaia, mas foi descoberto e realizou nova carnificina. Buscou solidão nas areias quentes dos desertos chineses, onde o sol escaldante provocava um vapor tóxico de seu corpo; passou semanas escondido no coração da floresta Amazônica, esperando que o ciclo de sua vida se completasse, mas há muitos meses havia ultrapassado a expectativa de vida das moscas comuns e não tinha como saber quanto tempo viveria. Mostrou então para o Corvo o que sabia. Em algum lugar as Engrenagens do Tempo andavam para uma grande catástrofe, sabia em seu íntimo. Sabia porque podia entender a mosca e o que ela dizia era aterrorizante. A mosca, disse algo que perturbou o pequeno coração do pássaro negro, um alerta interrompido pela espada de Robert. O Homem da Bzzzruma, ela disse. Estamos fugindo das Bzzzrumas. Vocês estão indo na direção errada, tolos. Direção err-. Um corte limpo e a voz silenciou.
Por baixo das asas negras, John, o Corvo, podia ver centenas de criaturas fugindo entre as árvores do Bosque, evitando a trilha e correndo de algo para o qual eles avançavam.
Longe, no horizonte, ele podia vê-la, como um tapete se desenrolando para eles, para dar recepcionar o pequeno grupo. O Velho os mandara para aquele lugar, os condenara a enfrentar o que chegava. Eram sinais que anunciavam uma tempestade de proporções bíblicas, mas as nuvens rolavam no chão e não no céu.
Longe, longe no horizonte, os olhos negros do pássaro viam a Bruma. 

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