Andaram pela trilha até o sol nascer e descer três vezes. Apenas Paul sentia o esforço nas pernas e eles precisavam parar de tempo em tempo para ele se recompor e massagear os músculos doloridos. O estreito caminho aberto na mata do Bosque seguia quase em uma perfeita linha reta, desviando apenas das árvores maiores e com aparência perigosa. A flora pouco mudara durante o percurso e Paul pôde estudar um pouco mais as orquídeas que soltavam esporos, além de rosas que tinham bocas e dentes em seu centro; certo momento, cruzaram um campo de girassóis vermelhos, cujo óleo tinha o poder de matar mil vezes mil homens. Algumas árvores se moviam quando eles se aproximavam, golpeando com poderosos galhos qualquer um tolo o suficiente para entrar em sua área de alcance.
A fauna, no entanto era quase inexistente. Ao menos era o que eles viam. John, no alto, podia enxergar os animais - um termo duvidoso para categorizar as criaturas que corriam pelo Bosque - disparando em direção contrária, deixando rastros de poeira que logo se desmanchavam no ar. O Corvo escutava as vozes em sua mente, dezenas delas, todas alertando para que dessem meia volta e voltassem para o diabo de lugar de onde vieram. Tolos, as vozes diziam, a Bruma está se expandindo pela primeira vez em Eras! Por milênios ela permaneceu estática e agora os Impérios erguidos em sua fronteira tremem diante os mistérios e pesadelos que povoam a névoa amaldiçoada. Voltem para o seio de suas mães, tolos!
Por três sóis eles caminharam. Até o momento em que chegaram no grande rio e viram o velho oriental sentado em uma larga pedra. O rio corria furioso e suas águas eram turvas. Robert viu, na outra margem, o mastro de um gigantesco navio, desaparecendo rapidamente na voracidade das águas, que tudo engoliam para saciar sua ganância. Eram águas perigosas e traiçoeiras. John, o Corvo, não podia ver o começo ou o final do rio e sua largura percorria diversas horas de caminhada. Não havia possibilidades de atravessar aquelas águas em pouco tempo. E o tempo, sabia o pássaro, era o bem mais precioso que tinham. As Brumas estão vindo, pensou em sua antiga voz de humano e então escutou as vozes das criaturas uma vez mais: Voltem para o seio de suas mães, tolos!
Quase na margem do rio, uma grande pedra oval dava descanso para um velho. Ele tinha os olhos pequenos, quase dois cortes no rosto enrugado e uma longa barba branca caia sobre seu colo. Sentado em lótus, o velho usava roupas voluptuosas, parecida com as roupas dos Imperadores imortais da Ásia nos livros de história. Ao seu lado, uma velha bolsa de couro descansava na sombra de uma árvore, a primeira árvore de aparência segura que eles encontravam em dias. “Continuem em seu caminho, aventureiros. A Bruma está chegando e meu tempo é curto”, o velho disse, com uma voz calma e suave. “Persuadi-los-ia com minhas palavras a não mais seguir na direção para a qual agora estão voltados, afinal o rio oferece seus perigos e armadilhas. E a Bruma esta chegando, como anteriormente disse. Mas o caminho de vocês não é meu para tomar ou comandar. É de vocês apenas. Sigam, eu não ofereço perigo ou resistência.”
Robert, cujas feridas causadas na luta contra a mosca ainda sangravam lentamente, olhou para o rio e depois para o velho. Por fim, sentou-se encostado na pedra, acompanhado de Paul e John, que ciscava à sombra da árvore. “Como podemos atravessar o rio?”, perguntou o samurai.
O velho retirou um cachimbo de uma das mangas e algumas pederneiras. “Vocês não podem.”
“Deve haver um meio.”
“Sim, deve. Mas não há.” Ele soltou fumaça pela boca e apontou para John. “Ele pode.”
“Todos nós precisamos atravessar a ponte, não apenas meu ir… o pássaro. É nosso dever.”
“Sim. Mas é o dever de vocês ou daquele que os mandou até aqui, jovem?”
Ele parou. Abriu a boca, mas nada disse. Os quatro aceitaram o pedido do velho sem hesitar, entrando no misterioso bosque em White City, percorrendo aquele mundo estranho apenas porque ele pediu. Por um segundo sequer Robert havia se perguntado o que estava fazendo, como se soubesse de alguma forma que não vivia a vida para a qual fora destinado. A maior parte do tempo, ele e John brincavam com os brinquedos sem realmente se divertir. Iam ao cinema com seus pais, mas os filmes diziam pouco; comiam a comida sem sentir o verdadeiro sabor dos alimentos, imaginando que comia uma pasta vazia de nutrientes e paladar. Diferente das frutas que colheram e comeram nos dias anteriores, ou nos coelhos que assaram no segundo dia: cada mordida explodia em sabores exóticos, deliciosos. Robert e Paul devoraram um verdadeiro banquete, enquanto John ciscava minhocas da terra e Jimmy… Jimmy permanecia parado perto deles, calado e imóvel a maior parte do tempo. O samurai afastou os pensamentos dos alimentos e da busca, concentrando-se em Jimmy. O garoto era apenas um contorno desde que atravessaram a entrada do Bosque, ao mesmo tempo vazio e cheio de todas as coisas que existiam. Parecia que era feito de puro ar, uma linha que formava a sombra de um garoto, mas que se fosse puxada, Jimmy deixaria de existir. Como um casaco tricotado. Se você puxar um fio vezes suficiente, ele deixará de ser um casaco, pensou Robert.
“Mas ainda será lã.” A voz do velho cortou seus pensamentos e ele percebeu que estivera calado por um longo período de tempo. O cachimbo estava apagado e esfriando.
“A busca é nossa, assim como é do… do velho”, respondeu finalmente.
“Muito bem, então vocês devem atravessar o rio e entrar na Bruma.”
Paul se levantou e encarou o velho. “E como podemos atravessar o rio?”
“Eu já disse, vocês não podem atravessar o rio. Ou outro rio, ou qualquer rio que exista.” Ele abriu um sorriso e mostrou quase todos os dentes que sobravam em sua boca.
“Estou perdendo a paciência com esse velho”, Paul rangeu os dentes.
“Não”, disse Robert com meio sorriso no rosto, “ele tem razão. Pessoas não atravessam rios. Ninguém pode andar sobre a água. Andamos em madeira, em pedras… mas não na água. Nunca na água. Precisamos atravessar uma ponte e não o rio.” O casaco de lã já não existe, mas a lã ainda é lã. “Onde podemos encontrar uma ponte nesse rio, velho?” Robert esperava que a ponte, se é que ela existia, não fosse um desvio de dias. Uma parte dele sabia que havia uma casa para a qual voltar.
“Não existe ponte de madeira ou pedra ou qualquer outro material nesse rio, meu jovem.” Paul e Robert deixaram os ombros caírem, desanimados. John pegou uma minhoca especialmente gorda e se sentiu triunfante. Jimmy era um celeiro em chamas naquele momento. “Mas eu tenho uma ponte em minha bolsa. Ganhei de um viajante, há mais de dois milênios, quando estava vagando pela Europa e precisava atravessar o Rubicão. Mais tarde, ajudei um homem e seu exército, emprestando a minha ponte. São objetos úteis, pontes.”
“Você pode nos emprestar sua… ponte?”, Paul perguntou, limpando os óculos no uniforme da escola. Uma ponte dentro de um saco? Ele está louco!
“Não.” O velho retirou uma maçã da pequena bolsa de couro, de onde ele dizia poder tirar uma ponte, e começou a mastigar sonoramente. “Eu posso apostar.”
“Apostar?”
Ele engasgou e cuspiu longe um pedaço mastigado da maçã e esticou o corpo, ficando perfeitamente ereto na posição de lótus. O velho ria como um louco. “Sim, sim! Eu posso apostar minha ponte querida…”, parou e colocou um punho fechado por baixo do queixo. “Ah! Mas é perfeito! Eu aposto minha ponte contra o nome de vocês.”
O nome de vocês é um segredo para cada um de vocês e apenas para vocês mesmo, entenderam? No lugar para onde estão indo, nomes são palavras perigosas nas mãos erradas!, o Velho ecoou na cabeça de todos eles. Robert ficou sem movimento pela primeira desde que entrara no Bosque; Paul retirou um doce do saco que carregava no bolso da camisa e começou a mastigar, nervoso. Nomes, nomes. Afinal o que poderiam causar os nomes nas pessoas?
“Qual o poder de um nome?”, o samurai perguntou, dando voz para os pensamentos de Paul.
“Ora, ora, ora. Vocês realmente não sabem nada sobre os antigos poderes que prendem a pessoa ao seu nome? Pois bem, a palavra dada para definir uma pessoa que surge pela primeira vez de sua mãe, pode ser usado para comandar totalmente seu proprietário, desde que uma pessoa saiba como o fazer. Vejam, garotos, eu poderia fazer com que vocês corressem até o momento em que seus pés caíssem, o que ficassem parados até morrerem de fome e sede. Ou uma luta entre os quatro, até que um único garoto… ou corvo, fique vivo. Vejam, vejam. Agora, não entrem na aposta se não puderem honrar a divida. O nome de vocês… alguém mais o possui? As Regras me proíbem de aceitar um nome com outro controlador.”
“Nossos nomes são nossos apenas, velho!”, Robert tinha a katana em suas mãos, pronto para desferir um golpe contra o velho sentado na pedra. O ancião fechou o indicador e o polegar da mão direita e assoprou levemente antes que o samurai pudesse movimentar qualquer músculo em sua direção e uma rajada de vento arrancou a arma das mãos de Robert, girando descontroladamente antes de desaparecer entre as árvores do Bosque. O velho começou a rir novamente e deu outra mordida na fruta.
Jimmy subiu na pedra e silenciosamente se sentou na frente do velho. Ficaram parados por alguns minutos sem dizer nada, encarando um ao outro. Os outro três membros do grupo assistiam ao debate mudo que ocorria entre eles.
“Está bem”, o velho disse por fim. “Apenas o seu nome, os outros estão seguros de nossa aposta, garoto. Seu nome e minha ponte. O vencedor fica com os dois.” Terminou de falar e amarrou o saco de couro ao redor da cintura.
As águas do rio corriam mais rápidas do que nunca, prontas para engolir qualquer tolo que tentasse atravessar sua correnteza.
O velho se levantou, esticou as pernas, jogou o que sobrava da maçã para John e atravessou Jimmy, como se desaparecesse depois de entrar em uma porta, primeiro colocando um pé na confusão de imagens que era o garoto, depois passando a cabeça, um ombro e o resto do corpo.
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