sexta-feira, 28 de junho de 2013

cena banal (3)

“O que é isso?” Ele estava incrédulo com o que via. O homem de olhos azuis escuros, num tom quase alienígena, quase deixou o copo cheio d'água cair, mas agarrou-o em pleno no ar em um golpe instintivo.
“Você está falando disso?” Ele apontou para as quatro torradas no prato.
Os olhos azuis arregalaram-se ainda mais diante do novo espanto. “Pelo Santo Prato de Petri! Quatro torradas!” Vasculhou a larga cozinha, preocupado com os ouvidos e olhos que poderiam estar de olhos neles. Eram tanto bisbilhoteiros que não podia deixar de se preocupar; sabia como ninguém o quanto gostavam de escutar conversas particulares e delatar os outros para ganhar pequenos agrados, afinal. Sabia muito bem.
“Eu fique com vontade de comer mais torradas, só isso. Elas são boas. Quer uma?”
O homem se afastou, como se o prato estendido fosse uma arma. Com a costa totalmente grudada na parede, pressionada a ponto de machucar as facetas vertebrais proeminentes, esticou as mãos em uma cruz e negou a comida. “Você está louco, devolva isso logo e vá se trocar! Por favor, faça isso e nunca mais falemos no que acabou de acontecer.”
“Impossível, eu gosto muito dessas torradas.” Estava sentado na cadeira de metal, mas tinha uma das pernas sobre a mesa, quebrando o severo protocolo. Sobre a camiseta branca sem cola, um sol sorridente nascia por trás de duas colinas verdes e cheias de flores, uma explosão de cor e vida desenhada com canetas hidrocor, usadas nos estudos laboratoriais. Olhou para baixo e admirou o próprio desenho. “Gostou do desenho? Acho que poderia ser feliz em um lugar como esse.”
“Você é… é… defeituoso.” Exasperou. Gostava dele em especial, era um número que mantinha a linha e era simpático, mas aquilo já passara do ponto de retorno. Mesmo que pudesse se livrar da contagem de torradas, alegando erro administrativo, não poderia ajudá-lo com o desenho na roupa branca. Direcionou os olhos azuis para o homem confortavelmente sentado, comendo torradas como se fosse um pequeno ato cotidiano, como se tivesse o direito de mastigar aquele pão crocante fora do horário e na quantidade que quisesse.
“Talvez o defeituoso seja você”, respondeu com meia torrada na boca e piscou um dos olhos - do mesmo intenso azul - “ou eles, ou todos os outros 'nós'. Menos eu. Eu amo tanto torradas que não posso ser defeituoso.”
Mastigou a torrada, saboreando a manteiga gorda que arranjou vá saber onde, pelo Santo Prato de Petri.
O Clone Nº485 retorceu a boca e cogitou sobre a afirmação da outra cópia. Decidiu, por fim, que ele tinha razão. As torradas eram, na verdade, deliciosas. E mesmo aquele não sendo o horário para comer, ele desejava abocanhar uma ou duas fatias. Seu estômago de clone roncou sonoramente. Puxou uma cadeira e colocou uma das pernas sobre a mesa, tentando se equilibrar de forma cômica. Os dois clones conversaram e mastigaram torradas, conversando sobre assuntos dos quais tinham exatamente a mesma opinião.   

quarta-feira, 26 de junho de 2013

cena banal (2)

Descobre o desgosto ao morder. Tenta quebrá-lo com os dentes, mas não consegue. É feito pedra.

Retira da boca e observa-o por alguns momentos entre os dedos. Não lhe incomoda a saliva.

Liga para a mãe. Pergunta o que fazer. Ouve com atenção, agradece e desliga.

Enche a caneca de água e faz pose como se em ritual. Coloca a esfera na boca novamente. Arrisca nova mordida, mas o dente ameaça doer. 

Sorve quase meia caneca de água e inclina a cabeça para trás. Engole a mágoa de uma vez só, rasgando-lhe a garganta, e sai para trabalhar.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

cena banal

Ele acorda cedo pela manhã com o braço adormecido, volta a dormir um pouco, olha pro lado e ri, volta a dormir, ela dorme. Nas idas e vindas da mente, do sono do sonho todo, lembra de um dialoguinho dito no fundo da noite, na beira depois da qual é tudo sono esquecido.

- Bom ter te conhecido. Feliz por esses dois dias, por esses dois dias todos.

- Por todos esses dias.

- Feliz por estar contigo.

- Feliz por estar contigo.

Sono, sono, dia logo continua.

- Você não devia viajar. Amanhã.

- Vá comigo.

- Não dá.

Não vai.

Dormem, dormem, sonham, acordam com o gosto estranho na boca de uma ressaca. Ele se veste e breve, casaca por sobre o ombro, tenta sair do corpo, do sonho dela que o ata.

Ele sai meio triste, ela fica não sabe como.

A noite de choro e samba no Clube, a noite primeira de ambos, ainda ressoa e tanto. Ela em um canto, ele na rua. Ele cantando. Ela nua.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

"The Strong, Silent Type"

Ele empurrou a porta de tela e saiu para varanda. O sol descia no horizonte feio dos subúrbios, jogando espectros de luz em feixes multicoloridos. Um fim de tarde como todos os outros: crianças jogando bola em campos improvisados, o cheiro doce de bolo dentro de algum forno vizinho e o gás dos carburadores que cuspiam poluição sonoramente ao passar pela rua. Um fim de tarde, no meio de uma semana como todas as outras: e ele ainda de roupão branco, vestindo apenas uma camiseta sem mangas e uma cueca surrada, segurando a mesma caneca azul de sempre, cheia até a borda de café forte. Era assim que funcionava, a lei complacente que todos respeitavam.
Funcionava porque era o rei.
A coroa que pesava em sua cabeça não fora herdada quando completara a maioridade, mas sim um halo que não esperou pelo amadurecimento emocional, uma conquista que reservava piedade e simpatia para ninguém; a espécie de conquista por mérito, feito que apenas os mais fortes poderiam sentir o sabor, um gosto amargo que descia em conjunto com as mãos sujas do sangue rebelado, derramado pelos ladrilhos da cidade. Sangue oculto por maneiras ainda mais abomináveis e cruéis, sangue que nunca chegava ao conhecimento de peritos criminais e criava a esperança para mães em desespero, que aguardavam a figura do marido entrando pela porta, com um olhar cansado no rosto e a sede por uma cerveja gelada na garganta. Homens que jamais retornariam para sua família, pois eram degraus em sua escalada e cada um deles descansava um sono atormentado pela cólera da injustiça, em covas profundas, desconhecidas. Seguras.
Vivia o sonho americano, apenas isso. Justificava seus atos na segurança que entregava para seu território, vivia diariamente com a opulência que a fama lhe prestigiava e bebia do medo estampado no rosto inimigo. Hostilizava. Ameaçava. Matava. Fazia o que era necessário, realizava o trabalho sujo que os pais de família, com seus ternos bem passados e espírito destruído, negligenciavam. Todos os outros fechavam a janela e desciam as cortinas quando alguém estava sofrendo na mão dos viciados, que roubavam para alimentar o cérebro condenado pela metanfetamina; aumentavam o volume da TV quando trabalhadoras honestas eram estupradas e esfaqueadas nos becos ao lado. James era o rei, o chefe. Capitão dos capitães. Em seus ombros, o peso de afastar a corja imprestável que parasitava os que se calavam. Ele sorveu o café e olhou para seu território, sua cidade. Chefe. Todos demonstravam respeito, temiam a dor que viria com a ausência deste.
Um carro desceu pela rua, jorrando música alta. O Mustang desacelerou e o vidro desceu, aumentando ainda mais o volume da música insuportável. James cerrou os olhos e viu os quatro rapazes, ao menos um deles negro e o outro de origem latina, exibindo o cano cerrado de duas calibres .12, deixando clara a mensagem que desejavam passar. Ele sorriu de volta, os olhos formando dois arcos cativantes e levantou a caneca em cumprimento. Venham até aqui, filhos da puta, e eu enfio esses canos tão fundo na bunda de vocês que irão sentir o gosto da pólvora na língua. Apontou um dedo para eles e disparou com um revólver imaginário. Bang!
O maldito sonho americano. Deixou os ombros - largos e fortes - caírem ao pensar na atual situação em que estavam. Seus antepassados suaram e sangraram por aquela cidade, erguendo telhados e colocando janelas em casas que eles haviam construído com as próprias mãos, na base da tentativa e erro, pagando com vidas em acidentes indescritíveis. Eram homens de virtude, bons cristãos que sabiam respeitar o esforço de outros e se mantinham na linha; eles sim, bons cidadãos, pessoas íntegras sem as frescuras dos psicólogos de hoje, inventando doenças e condições que precisavam de acompanhamento, entregando prescrições como a porra do Papai Noel, forçando-o a tomar remédios que provocavam redemoinhos em sua cabeça e deixavam o seu pau mole. Hoje, James não podia dar uma volta no quarteirão sem encontrar um maldito hippie trovador, envenenando a cabeça dos mais fracos com a baboseira de esquerda. Gostaria de passar um tempo com pessoas como aquelas. Apenas os dois, fechado em um porão por algumas horas. James o faria mais homem, tinha certeza.
A porra maldita do sonho americano. Vomitando fumaça escura, o Mustang desapareceu mais adiante e ele mostrou o dedo do meio em sua direção. Filhos da puta.
James balançou a cabeça e sorriu. Começou a voltar para casa. Precisava ficar pronto em menos de vinte minutos para recolher as coletas da semana, depois planejar o ataque contra os latinos e os negros que tentavam invadir o território italiano. Juntar seus capitães, armar os soldados rasos. A família, a verdadeira família. Crianças que ainda cheiravam ao leite azedo das tetas de suas mães, mas que agiam como se estivessem no mesmo nível. Negros e porto-riquenhos ou venezuelanos - mexicanos ou brasileiros, não fazia diferença e ele estava pouco se fodendo com a etnia miserável da qual vinham, o fato era que estavam se organizando, criando um problema que tirava o seu sono. Havia história violenta entre ele e as outras raças, mas ele não distinguia pela cor. Sentia pena ao matar os jovens, mesmo os que ofereciam riscos. Tantas possibilidades desperdiçadas, espalhadas pelas paredes depois dos projéteis disparados em suas cabeças.
Era a ordem das coisas, ele não tinha ação sobre o que acontecia. Apenas aprendia a se adaptar e arrumava meios de lucrar em qualquer situação.
Por isso era o chefe. Por isso tinha a obrigação de cair com tudo sobre aqueles desgraçados, matá-los antes que percebessem o ataque.
O tipo forte e silencioso, pensou consigo. Eis sua definição. O tipo que resiste até o final.
Bebeu o café e pegou o jornal embrulhado no plástico antes de entrar na casa e continuas seus afazeres. Até que outro, mais forte e talvez mais silencioso, chegasse e acabasse com seu reinado. Não havia o que fazer, era outro ponto em que tinha de aceitar a lei de sucessão. Buon’anima. Era tudo. Fim. Adeus.
Até lá, iria bater com todas as forças que tinha. Puxou a porta de tela e entrou na casa.


Fade out. Black screen

quarta-feira, 19 de junho de 2013

junte tudo que você puder levar

As mãos mexiam-se em sintonia com o ritmo em sua cabeça. Um pé no bumbo, uma batida cadenciada na caixa. Cantava mentalmente Dylan na versão de Caetano. Vá, se mande, junte tudo que você puder levar. Sentia o coração pulsando. Seu filho feio e louco ficou só. Chorando feito fogo à luz do sol.

Na rua São Bento, ele retirava dinheiro para pagar as contas. Uma multidão protestava com cartazes erguidos, desejando melhorias no transporte público da cidade. Os alquimistas já estão no corredor.

Viu um garoto com um cartaz na mão e um moletom da GAP. Lembrou-se de uma imagem cômica de outro protesto, em São Paulo, de um rapaz de universidade utilizando um moletom parecido e que acabou virando um alvo reverso da iniciativa como um playboy presente na manifestação apenas pelo clima.

Riu. Mas não daquelas pessoas e nem daquele rapaz. Somente da lembrança. Subiu a rua ainda ouvindo os gritos da multidão. E não há mais nada, negro amor.

Sentia-se deslocado por conhecer somente literatura. Em época de guerra, não há espaço para um literato a não ser preencher diários de guerra. Deveria voltar, anotar o que viu, escrever. Mas estava cansado. Noites mal dormidas vivendo sua guerra interna.

A estrada é pra você e o jogo é a indecência. O mundo em suspensão implodia-se, explodia-se, de dentro para fora, de fora para dentro e você: insignificante, pequeno, compulsivo por alimentos, gordo. Expectativa de vida: o dia seguinte.

Junte tudo que você conseguiu por coincidência. E o pintor de rua que anda só, desenha maluquice em seu lençol. 

Deveria escrever uma ficção hoje. Mas Leandro, seu amigo parceiro literato, ainda não havia escolhido o tema da semana. Infiltrado em protestos, esqueceu a literatura. E ele pensava onde se encaixava quando parecia mais que um detalhe, um artefato que ninguém necessita.

O Brasil poderia parar, o tempo não. Pensou em Cazuza, não esqueceu de Caetano. Os alquimistas já estão no corredor.

No facebook, chamou Leandro: e o tema? Ou terei que escrever um não tema? Rapaz, respondeu, tema ou não tema, vá.

Então, foi.

Nas principais capitais do país, a marcha seguia ritmada, como suas mãos e pés. Bumbo e caixa, tá tum, tá tum, coração. Um grito em coro. E não há mais nada, negro amor.

Tema ou não tema, vá.

Não temeu. E foi.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

A Cesar o que é de Cesar

Júlio chegou ao ponto de ônibus alguns minutos adiantado. Sorriu, pois ao menos uma vez na vida não precisou correr até o ponto de parada numa frenética corrida contra o motorista sádico, que se divertia ao ver correr os passageiros atrasados, balançando os braços em interminável angústia. Normalmente chegava vinte minutos atrasado no laboratório e escutava o mesmo sermão de seu orientador. Jurava sempre que iria acordar cinco minutos mais cedo, era o tempo que bastaria para que pegasse o ônibus apropriado, mas seu cérebro preguiçoso entedia que tinha tempo extra para gastar no chuveiro ou deitado na cama, calculando a força hercúlea necessária para se levantar. Júlio não tinha muito orgulho de suas decisões matinais.
No ponto, uma garota escutava música em um iPod cor de rosa. O rosto tinha traços leves, delicados e os olhos de um azul claro escondidos por trás de lentes finas, presas à armação vermelha. Cabelos negros caíam sobre os ombros estreitos e sua cabeça balançava ao ritmo da música que apenas ela ouvia. Júlio não pôde conter o sorriso, gesto que foi captado pela garota. Ela sorriu de volta e disse, em uma voz exageradamente alta:
“Kashmir!”
“O quê?”
“Estou ouvindo Kashmir”, ela repetiu, quase gritando. Pessoas que passavam por perto olhavam para a garota com fones no ouvido e balançavam a cabeça.
Júlio deu uma risada, ao entender a palavra. Apontou para os próprios ouvidos e disse, com a voz igualmente alta: “Você está gritando, não precisa falar tão alto.”
Ela esticou os lábios em entendimento e retirou os fones brancos dos ouvidos. “Poxa, desculpe”, sussurrou.
Júlio viu um clarão vindo de um dos apartamentos dos prédios da frente e perdeu alguns segundos procurando pela fonte da luz repentina. Voltou-se então para ela. Bonita, decidiu, e suas mãos começaram a transpirar instantâneamente. “Kashmir é sobre o efeito do tempo, certo? Fala daquela idéia de que o tempo não é linear, mas se parece com uma onda e o espaço o acompanha, ou seja, poderíamos cortar do ponto A para o M sem ter de passar por todo o abecedário, poupando tempo e energia.”
A garota ficou um tempo sem saber o que responder. “Cara”, disse finalmente, “é uma música do Zeppelin.” O rapaz negou com a cabeça e procurou no relógio digital ao lado da cabine para ver quanto tempo faltava até o próximo ônibus. Ela achou engraçado como ele parecia nervoso por estar falando com uma garota. Gostava de nerds portadores de ansiedades sociais, para a sorte dele. Retirou a mochila das costa e pescou um livro de dentro. Michio Kaku, dizia a capa, A física do impossível. A capa era azul e uma mulher parecia estar sendo abduzida por uma luz misteriosa. “Ele também fala sobre esse tipo de coisa louca… De teleportes e viagens no tempo. Você gosta disso?”
Ele sorriu e grunhiu pelo nariz, fazendo com que seu rosto se tornasse em um ponto vermelho vivo. “Eu estou fazendo doutorado em física teórica”, explicou. “Trabalho com esse tipo de coisa em um laboratório.” Parou e apertou os olhos com as duas mãos. “Me desculpe. Na verdade eu não deveria ficar contando isso para as pessoas.” Estudou, estupefato, o crescente interesse no rosto da garota. “Também não deveria dizer isso para as pessoas… burro, burro, burro!”
“Está tudo bem, seu segredo será bem guardado”, ela lacrou a boca com um zíper invisível e engoliu os lábios.
Júlio sorriu. Um novo clarão chamou sua atenção e seus olhos, treinados para reagir rapidamente quando em alerta, localizaram uma sacada aberta alguns centímetros. A janela aberta estava sustentada por um livro e uma lente fotográfica estava apontada para eles. “Obrigado”, respondeu finalmente. Ao longe, o motor barulhento deu sinal de vida: tinha pouco tempo.
“Escuta, o que você acha da gente tomar um café uma hora dessas…”
O ônibus chegou e ela deixou a frase morrer no ar poluído pelos gases do motor. “Meu nome é Júlio e tentarei estar aqui amanhã, nesse horário e nos falamos novamente”, olhava para ela, sério. “Amanhã nos falamos mais”, repetiu, mais para si mesmo do que para a garota bonita, a primeira que demonstrava interesse em alguns anos.
A porta azul se fechou e o ônibus partiu, deixando o físico para trás. Mais um sermão não faria diferença em sua vida. Tinha vinte minutos. O relógio mostrava 7:40 quando ele iniciou o cronômetro. Atravessou a rua o mais rápido que pôde e alcançou a entrada do prédio de onde vira a máquina fotográfica. Apertou todos os botões do interfone e, como manda uma das leis mais recorrentes de hollywood, alguém abriu a porta sem se importar com a identidade do visitante. Júlio escalou os andares com velocidade, subindo as escadas de dois em dois degraus. Tinha de agir rápido. Quando assinara os papéis para ser parte do laboratório em que trabalhava, fora mandado para um campo de treinamento militar e por sete meses fora esculpido por mestres da rigidez militar e da prontidão corporal. Estava seguindo um protocolo exaustivamente repetido e precisava descobrir se estava envolvido em algum esquema de espionagem industrial, uma trama corriqueira quando se estava envolvido com a primeira tentativa com possibilidade de viagem no tempo da História.
Quando chegou onde queria estar, Júlio pegou dois grampos em seu tênis e destravou a porta em menos de dois minutos. Sentia o coração disparado e um frio crescente na espinha. Depois do sonoro click, ele abriu a porta com cautela, empurrando a madeira alguns milímetros por vez, revelando um apartamento quase vazio. A entrada mostrou uma cozinha suja, pilhas de restos de comida acumuladas em caixas de pizza e isopores. Um odor acre atingia as narinas do físico e ele lutou contra o enjôo que escalava a garganta. Seus sentidos estavam em alerta máximo e ele agachou sobre os joelhos instintivamente quando escutou passos mais para dentro do imóvel. Avançou devagar, com passos leves. Na sala, sentiu o mundo revirar quando achou fotografias suas no ponto de ônibus. Dezenas de fotos estavam fixadas nas paredes, todas elas mostrando Júlio de longe, vestindo roupas diferentes e em horários variados, mas sempre no ponto de ônibus. Em uma das fotos, ele vestia jaqueta de couro e as árvores indicavam um forte vento. Lembrava-se daquele dia, ocasião em que ficara especialmente irritado por ter perdido o ônibus, um atraso que lhe custou três dias de febre alta.
Em outra, vestia terno e gravata, fazia sol e três pessoas estavam hipnotizadas por celulares. Júlio percorreu as fotografias nas paredes rapidamente, mostrando dias diferentes de espera no ponto de ônibus. Havia fotografias inclusive no vidro fosco da sacada, essas diferentes das outras.
Um vulto pulou sobre ele e antes que pudesse reagir, estava girando no chão, caindo sobre garrafas plásticas vazias, rolos de negativos estragados pela luz do sol e restos de comida. Ergueu o atacante pelos ombros e desferiu um soco em seu nariz, ficando cego com o sangue que caiu sobre seu rosto. Um forte baque nos testículos arrancou grande parte do fôlego e Júlio se retorceu, perdendo o controle momentâneo de suas ações; suportou alguns socos no rosto e no estômago antes de conseguir juntar forças nas pernas e empurrar o vulto para longe. Levantou-se com o mesmo impulso, realizando um largo movimento para pressionar a outra pessoa, direcionando uma cabeçada que a deixou atordoada. A sala estava parcialmente escura e ele não conseguia enxergar muito bem o adversário, que buscava as sombras para esconder seu rosto, era uma estratégia pensada previamente.
“Você não sabe o que está fazendo”, disse uma voz feminina.
“O que é tudo isso? Porque vocês está me fotografando?”
Um vaso voou em sua direção e, no último instante, ele abaixou a cabeça evitando o impacto. Um erro de principiante, erro constante que irritava seus treinadores. Júlio quase perdeu os sentidos com a cotovelada na base de sua cabeça, mas conseguiu manter a consciência e agarra um braço fino, torcendo-o com a ajuda da própria força da mulher, aplicando uma chave imobilizadora. Forçou a mulher até a luz que entrava pela fresta na janela e a soltou, com um choque quando viu a garota que ouvia Kashmir.
“O que… você… como?” A garota estava magra, esquelética, na verdade. Bolsas negras sustentavam os olhos e um longo cabelo branco caía até sua cintura. Havia loucura naquele olhar, mas Júlio reconheceu o rosto amigável com o qual havia conversado há não mais que dez minutos. O problema era que a garota estava ao menos trinta anos mais velha.
Ela pegou a cabeça do físico e bateu contra a parede. O mundo se apagou e voltou algumas vezes. “Você deve morrer agora”, ela disse, batendo a cabeça dele mais uma vez. “Eu preciso parar o Laboratório antes de…”
Júlio girou o corpo e parou com um único movimento atrás da mulher. Colocou a mão nas costas dela e, com o máximo de forças que conseguiu conjurar no braço, empurrou-a de encontro à parede. O som horrível do pescoço sendo quebrado se juntou ao baque abafado que ela fez ao se chocar e seu corpo caiu no chão, desmanchando-se como uma marionete com as cordas rompidas. O físico caiu sentado, ainda lutando para manter a consciência. Ele se levantou com dificuldade e tateou até encontrar o interruptor. A luz revelou ainda mais fotografias no cômodo e o corpo sem vida da garota. Suas roupas eram estranhas, costuradas em um material que parecia defletir a luz e olhar para ela causava uma leve dor de cabeça. Luzes brilhavam em um dispositivo preso no pulso direito, exibindo símbolos exóticos. Júlio estudou mais fotografias, retirando algumas de uma das paredes, revelando mensagens escritas com o que parecia ser sangue: Preciso ter certeza de que é ele, dizia uma delas. O dia está chegando, tenho de agir, o Mundo depende depende depende depena desprende de mimmimim.
Um arrepio subiu por suas costas e se instalou na nuca dolorida. Parte de sua mente estava preocupada com uma possível concussão, mas um torpor invadiu as preocupações do físico quando ele olhou para as fotografias coladas no vidro. Incontáveis corpos estavam empilhadas pela Champs-Elysées, formando piras horripilantes de carne chamuscada e queimada, ardendo com fúria diante de uma Torre Eiffel parcialmente destruída; outra mostrava caminhões descarregando centenas de corpos nos mares do Japão, enquanto trabalhadores com uniformes de proteção, respiravam oxigênio em tubos. Rio de Janeiro, Barcelona, Washington e Camberra. Por todo o mundo, fotografias mostravam cartões postais decaídos e centenas de corpos sendo descartados. Em algumas cidades, faixas com seu rosto mostravam uma propaganda grandiosa em um pano vermelho. Júlio usava um tapa-olho e um quepe, olhava com um único globo para o alto e dezenas de aviões sobrevoavam o céu em perfeita sincronia.
“Mas que merda é essa? Eu sou o novo Hitler?”, perguntou para a garota morta. De repente, o aparelho que piscava, apitou e uma palavra surgiu no visor: Loop, piscando repetidamente.
Loop Loop Loop Loop.
Na janela ele viu a máquina fotográfica sustentada por um tripé e, do lado, uma espingarda com mira telescópica acoplada. Outro arrepio explodiu em seu sistema nervoso.
De repente, ele sentiu o a linha do horizonte envergar, como se estivesse expandindo para a realidade não quebrar. Olhou para o relógio e viu que era 7:35 da manhã. Reconheceu, no ponto de ônibus
Loop
…a roupa que usava naquele mesmo instante e o livro de capa azul que a garota mostrava. Não tinha muito tempo. O dia está chegando, tenho de agir, ecoou em sua mente. Letras escritas com sangue, loop temporal, ele pensou.
Sem pensar no que fazia, disparou o flash da máquina e aproximou um olho da lente telescópica. Ele não sabia o que faria no futuro, como poderia se tornar em um aparente ditador e iniciar uma onda de extermínio global, mas não deixaria um futuro tão sombrio ocorrer. Mirou com mãos precisas em sua própria testa, olhando pela janela para seu próprio corpo em um passado recente. Sua mente parecia prestes a explodir enquanto tentava aceitar o que acontecia.
Olhou para o passado e pensou no futuro. No que poderia fazer, como poderia mudar as fotografias coladas no vidro. Grandioso, magnífico. Era o seu destino. E poderia ser usado para o bem.
Prometeu que não desistira; jurou lutar contra o monstro que vira nas fotos e construir um futuro melhor para a humanidade.
Moveu o pulso e mirou na cabeça da garota.
Uma leve pressão no gatilho e a arma disparou.
Loop
Loop

quarta-feira, 12 de junho de 2013

A Primavera

Era a primeira semana de setembro e esperava ansiosamente o lançamento da sétima edição da revista Friburgo, dedicada a publicação de narrativas curtas e que continha uma história minha, a primeira pela qual ganhei alguns trocados.

Tentava diminuir meus louros, mas ao pensar nos leitores assíduos da revista que desde seu início teve um bom número de vendas, não conseguia expressar a felicidade infantil de ter quem pousasse os olhos sobre minha história para, no final da edição, refletir quais foram as melhores narrativas.

Tudo pareceu-me uma fortuita obra do acaso quando por impulso enviei cinco de meus contos à editora responsável pela publicação. Dois meses se passaram em silêncio até uma resposta em meu e-mail dizendo que um dos editores estava surpreendido com minha prosa e entre diversos autores consagrados, decidiu-me de dar um espaço na edição.

Eram nove horas da manhã e entrei na livraria assim que abriu, de longe, um dos funcionário me reconheceu, o mesmo que dias atrás me dava evasivas afirmando que o livro chegaria quando chegasse, suas palavras. Fui até o balcão de café tamanha ansiedade e pedi um expresso e um pão de queijo para me alimentar. Sai de casa as pressas sem tempo para desjejum.

Aos poucos, observei que diversas caixas chegavam e, vez ou outra, o funcionário olhava em minha direção. Não sei se para me dar esperanças ou para saber se ainda permanecia no local, como fiz na última semana e meia. 

Meia hora depois, em que já tinha devorado meu alimento e estava no segundo café, o homem me abordou afirmando que um lote da editora chegara. Gentilmente, deixou-me acompanhar o processo, ciente de que eu, como um pai, deveria ser o primeiro a conhecer o rosto de meu filho.

Era uma caixa com cinquenta exemplares da Friburgo, composta somente por textos curtos, em tradicional formato de livro. Em minha mãos parecia um tesouro e logo coibi minha timidez e cheirei suas folhas com o mesmo prazer de um jantar delicioso. Um pouco trêmulo fui para o indice. Milton Hatoum, John Banville, José de Alencar, Amos Oz e meu nome. Dois prenomes e um sobrenome os quais comecei a assinar meus textos há dez anos. Minha jornada dentro do mundo da literatura e da casa dos leitores começava na página 60.

Ao abri-la, um emaranhado de letras sobrepostas se encontravam no lugar de meu texto. Creio que soltei um pequeno grito que assustou o vendedor. Folheando o livro rapidamente, percebi que a narrativa de Amos foi impressa sobreposta da minha, em um defeito estúpido de impressão. Somente era possível ler meu nome e o título pomposo a qual meu conto de estréia foi nomeado.

Joguei este exemplar ao chão, na esperança de um erro único mas não, o segundo, o terceiro e, por fim, o lote todo com cinquenta exemplares tinham destruído minha obra. Quis correr pela livraria até a estante de Oz, derrubando toda sua obra disponível, mas ele não era culpado. 

Desesperado, entrei em contato com a editora, mas ninguém atendia. Minha estréia foi fadada ao fracasso porque um desleixado colocara dois textos distintos para ocupar uma mesma página em branco. Desolado, sentado em um dos bancos da livraria, o vendedor tentou me animar dizendo que entraria em contato com a editora, pedindo a devolução dos exemplares.

Devolução, pensei, devolução à minha vida medíocre de escritor não publicado. Não, por favor, venda-os imediatamente, diga que é um poema dadaísta e concreto. A literatura é tão múltipla, é capaz que alguns, poucos, na verdade, encontrem um significado em minha escrita fundida com a de Oz. 

Tamanho era meu desespero que imaginei que ninguém poderia me ajudar. Permaneci na livraria por mais uma hora, na mesma cadeira, sem que ninguém me incomodasse. O celular vibrou em meu bolso e era o editor da revista. Como, lhe perguntei, você foi capaz de fazer isso comigo, dando-me falsas esperanças e não publicar nada. Calma, me disse, foi um erro grotesco de impressão que teremos de consertar. Pediremos que todo o estoque seja reenviado para nós e daremos um jeito.

E aqui estou eu. Na última semana de setembro, amargando três semanas de espera para um conserto que não deveria ter acontecido. Ansioso para ler minha primeira obra que dessa vez terá um espaço somente dela. Neste tempo estive todas as manhã na livraria, perdi meu emprego regular, o que me faz de uma vez por todas rumar ao mundo das letras, devorei alguns livros enquanto esperava e me senti deprimido como todos os escritores.

Aguardo a chegada da nova edição agora refeita de Friburgo todos os dias, como um sebastianista espera o retorno de seu rei. Vendo, ao longe, um caminho de entregas carregando dentro de si o primeiro passo que me fará indelével no cânone mundial.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

não ficção

- Não tive tempo para abrir este espaço. Mil perdões pelo incômodo. Sem cerveja, hoje, pra vocês.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Música e Silêncio

Miles Davis jorrava sagacidade pelas caixas da jukebox. O homem estava sentado em uma das mesas mais afastadas do barulho, próxima à saída. Estava confortavelmente encostado na cadeira, com os braços apoiados na mesa e as pernas espalhadas sem preocupações com etiquetas; o peso do corpo largado sobre a cadeira fazia Kiki se perguntar quanto tempo ela poderia ler até ser obrigada a correr para levantá-lo do chão, quem sabe retirar pedaços de madeira quebrada daquele traseiro gordo. 
Ele gostava do Clube por causa da falta de etiqueta, mas às vezes contemplava se não estaria abusando da hospitalidade. O fato de frequentar o mesmo bar religiosamente não dava o direito de perder os costumes da civilização, certo? Jogou repentinamente o peso para as pernas e se ajeitou, endireitando as costas e molhou os lábios com a língua. A cadeira rangeu em agonia. A garçonete olhou para ele, erguendo momentaneamente os olhos das palavras. Kiki lia um livro grosso sobre o balcão quando o sujeito a chamou. Prontamente largou o que fazia e foi até a mesa, notando o copo vazio. “Mais uma dose?”
Ele encarou o copo por alguns segundos, tentando se decidir se deveria tomar mais um pouco de whisky. Quando se pegou perguntando quantos copos enxergava sobre a madeira, decidiu que já bebera o suficente. “Não”, respondeu com a voz seca, “um café será o suficiente, querida.”
A garçonete saboreou as palavras da voz suave, ainda que o tom fora seco e um pouco agudo. Assentiu com a cabeça e desapareceu cozinha adentro, voltando poucos segundos depois, trazendo duas xícaras e a garrafa térmica. “Eu já estava fazendo um pouco para mim, querido.” A última palavra saiu um pouco mais atrevida do que pretendia e Kiki sentiu o rosto ardendo em chamas. “Importa-se?”
“Com o quê…”, a pergunta morreu no ar quando percebeu que a moça indicava a cadeira vazia com a cabeça. “Não, sim, claro”, o desajuste era risível, mas Kiki conseguiu manter o rosto impassível. Ela sentou suavemente e serviu café para as duas xícaras, delicadamente empurrando uma delas para o homem.
“Eu ainda não sei o seu nome. Você aparece aqui o quê? Cinco, seis madrugadas por semana, senta na mesma mesa e bebe até o sol matar a noite, depois se levanta, deixa o dinheiro seguro por um copo e desaparece para o mundo. Há meses eu te vejo sentado aqui, solitário, no silêncio. E eu não sei nada sobre você. Diga seu nome, vamos lá.” Kiki o estudou profundamente, não pela primeira vez. À primeira vista, ele parecia um homem que consumia mais bacon e cerveja do que devia, mas havia uma montanha de músculos por baixa da camada de gordura. O estômago largo acompanhava coxas musculosas e braços que pareciam pequenos troncos, os ombros largos imprimiam respeito na mente das pessoas ao redor. Tinha pouco cabelo ao redor da cabeça, cortados rente ao crânio, o que deixava sua figura ainda mais sólida, desencorajando qualquer tipo de desrespeito. Os dedos grossos pegaram a xícara - fazendo com que a porcelana parecesse incrivelmente frágil e pequena, como um brinquedo caro no quarto de uma garota mimada - e ele sorveu do café.
“Paulo”, respondeu por fim.
“Prazer Paulo, sou a Kiki.” Ela estendeu a mão e percebeu o mesmo efeito da xícara quando Paulo fechou o firme aperto.
“Eu sei.”
“Sabe?”
“Sim, está no seu crachá.” A garçonete olhou para baixo e sorriu. “Kiki? Que tipo de nome é esse?”
“Monique. Minha avó me chama de Moniqui, ficou Kiki e eu adotei.”
“Você não vai ter problemas por ficar aqui?” Paulo indicou o pequeno grupo que completava o atual número de clientes no Clube. Eram três homens, o mais velho com pouco mais de trinta anos, vestindo ternos e ostentando cortes de cabelo que pagariam um boa refeição mais o táxi.
Kiki olhou com desdém para eles e chacoalhou a cabeça. “Não”, respondeu brincando com a xícara, “eles estão bem. Está vendo as canecas cheias? E o modo como estão conversando?”
Ele estudou a cena, prestando atenção no que Kiki havia apontado. “Sim”.
“Eles não vão precisar de mim tão cedo. Um deles está inclinado, falando baixinho apesar de estarmos do lado oposto e da música alta. As bochechas estão coradas e os outros dois têm aquele sorriso besta com a boca aberta. Vê? O rapazinho falando provavelmente estará contando a última noite que teve com a amante. Ou uma das. Eles estarão bem por mais quinze ou vinte minutos, depois eu levo mais cerveja e tudo estará bem por mais vinte minutos, quando outro contará como fez para pegar a promoção da empresa.”
“Como você notou tudo isso?”, Paulo estava interessado em uma conversa pela primeira vez em alguns anos. Kiki sempre fora uma garçonete gentil e reservada, a ponto dele nunca esperar que algum dia estaria trocando palavras com ela. Gostava do ritmo suave das frases da garota.
“Depois de anos trabalhando aqui, você acaba aprendendo. É pura análise, só jogar um Sherlock pra cima deles, simples. A cerveja está esquentando, intocada. Isso significa que o assunto é interessante e nada mais pode ser interessante às”, ela parou e conferiu o relógio de pulso, “três da manhã do que sexo. O narrador de cabelo bem cortado está usando uma aliança, mas ele não me parece do tipo que faz amor caliente com a esposa, não, com ela é uma rotina simples, mantendo o respeito das aparências. Se você o seguir, vai parar nos subúrbios, pode ter certeza. Além do mais, eu já disse como estão cochichando. Se gritássemos daqui, nunca perceberiam.”
Paulo fechou a mão ao redor da xícara e bebeu mais café, pegando mais da garrafa sem pedir permissão. Virou-se novamente para o grupo do outro lado do Clube e viu cada ítem da lista de Kiki, julgando que ela estava correta em todos os pontos. Miles Davis terminou outra obra-prima e deu espaço para as cordas de Willie Dixon. “Acho que você tem razão, garota. Eu julgava que você era interessante. Não me leve a mal, mas metade das garçonetes que encontrei na vida são pessoas tristes. Mães solteiras que vivem de pagamento à pagamento, colocando o dinheiro em seções apertadas de aluguel, comida, fralda, gasolina e cigarro. A outra metade são criaturas desprovidas de vida inteligente, fazendo bico para pagar um curso qualquer numa faculdade de terceira qualidade que provavelmente frequentarão até um marido rico aparecer no horizonte. Mas hey, quem sou eu para julgar? Eu gostei daqui desde a primeira vez.  Quando entrei e você carregava um livro gigantesco para cima e para baixo, eu sabia que aqui era meu bar. História, do Heródoto, uma escolha... peculiar. Depois disso comecei a acompanhar os livros que você fica lendo enquanto finge que trabalha de verdade - e de novo, não me leve a mal, acho muito bom que você saiba aproveitar bem seu tempo. Dificilmente eu venho aqui por quatro dias seguidos sem que você tenha trocado de livro, se termina de ler ou desiste no meio, eu nunca sei. O que é interessante de verdade são os títulos. Tolstói? E não é por você ser jovem e trabalhar no turno da madrugada atrás de um balcão, por Deus, mas quem lê Tolstói nesses dias? Memorável. Eu até comprei uma dúzia de brochuras por sua causa. Dennis LeHane, Haruki Murakami, Umberto Eco, Mario Puzo… até o maldito Fitzgerald! Eu ignorava literatura totalmente, mas você me incentivou.” Paulo ergueu a terceira xícara de café e fez um brinde. “Obrigado.”
“Ora essa. E eu pensando que você nunca prestava atenção ao que acontecia ao redor e-”, a frase morreu no ar quando os três homens gargalharam alto, tomando cerveja e batendo os corpos com força na mesa. I’m the hoochie coochie man, Dixon admitiu através da jukiebox. “É por isso que eu decidi sentar aqui”, Kiki continuou, ignorando as mãos que agora se erguiam do outro lado do bar, “porque eu nunca consegui decifrar você, Paulo. Qualquer um que entra por aquela porta no meu turno é como um livro aberto. Em cinco minutos eu posso dizer o que a pessoa faz e se está com algum problema. Algumas vezes eu confirmo com o Zack, se ele também conhece o cliente e raramente erro nos detalhes. Mas não você. Você está escrito em outra língua, Paulo.”
“Não vai atendê-los, Kiki?”
A outra mesa fazia barulho e clamava pela garçonete. Kiki se levantou e sinalizou para eles, pedindo mais tempo. “O que você faz, Paulo? Porque aparece aqui quase todas as madrugadas?”
“Eu venho por causa do silêncio.”
Kiki ficou calada, deixando o barulho dos outros homens e da música da jukebox preencher o Clube como se fossem um pano com álcool sobre feridas abertas. “Silêncio? Aqui é o lar do barulho!”
“Não. Você consegue ler em paz. Eu consigo sentar e beber meu whisky em silêncio, aproveitando o simples ato de estar calado, em silêncio. Eu trabalho na construção de grandes obras, Kiki; no momento estou supervisionando a abertura de um túnel de metrô, você tem idéia do barulho infernal com o qual convivo? Eu trabalho seis dias por semana das três da tarde até às duas da manhã. Uma obra assim funciona 24 horas. Horríveis 24 horas por dia, consegue imaginar todo o barulho? Eu venho aqui para sentar no escuro e no silêncio. A música? Isso não é barulho. Willie Dixon está tocando agora, antes dele foi o Miles Davis e vocês têm Nat King Cole, Nina Simone e até Led Zeppelin na jukebox. Não é barulho, é poesia. Nesse horário o Clube está quase vazio, em paz. Não temos o barulho da mesa de bilhar, a conversa exagerada das outras mesas ou a televisão ligada num jogo qualquer. Não, Kiki. Eu venho pelo silêncio. E pelo seu silêncio.”
“Meu silêncio?” Kiki respondeu, sentindo o rosto corar. Os homens começavam a gritar pela garçonete.
“Você já andou por uma rua vazia às três da manhã? Tem de ser pelo menos três da manhã e nenhum minuto mais cedo. Seus sapatos fazem um eco específico. A mesma rua vazia durante a tarde tem um som diferente, mas às três da manhã, o som é outro. Único. Eu me acostumei com o barulho dos meus sapatos às três da manhã, Kiki. Eu saio todos os dias durante a madrugada por causa do turno. Eu sou uma criatura que se acostumou com a lua no céu. E é esse som que eu encontro em você, quando você fica no balcão, virando página depois de página. Sons que só existem, se você pensar bem, por causa do silêncio quase palpável ao redor, barulhos feitos pelo silêncio”, um brilho surgiu em seu rosto, como se tivesse aprovado a própria frase. Paulo se levantou repentinamente, desculpando-se com a garota e começou a andar em direção ao banheiro. Os homens agora gritavam ofensas e exigiam o direito de atendimento, mas Kiki permaneceu estática, tentando entender o que Paulo encontrava nela.
Estava ainda perdida em pensamentos quando escutou o barulho do primeiro soco. Um nariz quebrando às três da manhã também tem um som distinto?, ela se perguntou antes de virar a cabeça. Kiki viu o homem com quem conversava, então carregando um semblante sereno, segurando um dos homens pela garganta. Sangue escorria do nariz quebrado até as mãos de Paulo. Depois de jogá-lo contra a parede, Paulo se virou para os outros dois e desferiu um soco no estômago do homem que provavelmente estava traindo a esposa e agarrou o terceiro pelos ombros, batendo em seu crânio repetidas vezes com a própria cabeça. Em poucos segundos, os três clientes estavam deitados no chão, inconscientes ou gemendo convulsivamente. “Digam mais um palavrão para ela e eu enfio minha mão na bunda vocês até meus dedos saírem pelas suas bocas nojentas”, disse. Não era uma ameaça vazia. Era quase engraçado um homem grande como Paulo, espancando severamente três outras pessoas e soltando ameaças com a voz fina.
Paulo andou até Kiki e afundou uma das mãos no bolso, deixando algumas notas como de costume. “Desculpe pela bagunça, querida. Até amanhã.” Ele tinha sangue nos sapatos e por toda a camisa. Seus desdos estavam abertos, cortes feitos nos dentes de um dos homens sangrando no chão do Clube.
Ela sentiu o corpo inteiro tremendo, em choque diante da demonstração súbita de violência. Paulo parecia um rinoceronte em fúria, capaz de destruir qualquer obstáculo em seu caminho. Ele sumiu pela porta no exato momento em que a jukebox terminara mais um blues e ela pôde ouvir o som, distinto de todos os outros sons que ela escutaria pelo resto da vida: de seus sapatos contra o asfalto no silêncio da madrugada. 

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Algum

Em uma das maiores cidades do mundo, cujo nome será omitido, há um homem sentado no chão de uma praça pública. Em posição de lótus, costas alinhadas em perpendicular com o chão, olhos fechados e roupas largas que cobrem quase toda a extensão de seu corpo.

No primeiro dia, alguns transeuntes pararam para observar. Imaginavam que a qualquer momento assistiriam a um excelente espetáculo. Outros se lembravam de um mágico que, anos atrás, ficara preso em uma caixa de vidro em uma das maiores cidades do mundo, apenas porque, dizia, era capaz de permanecer dias sem nenhum alimento.

Passantes costumeiros daquela praça, que diariamente utilizavam-na como espaço para seu caminhar, disseram que, no segundo e terceiro dia, nada esteve diferente. Alguns acreditaram que o homem estava morto. Outros foram colhendo depoimentos de quem lá passava para descobrir se, em algum momento, ele fora flagrado exercendo qualquer atividade além de parecer uma estátua viva.

Além de suas vestes, uma bolsa estava em seu colo, tão imóvel quanto o próprio homem que parecia fazer parte do corpo, formando uma única carcaça vazia. Como se aquele rapaz não tivesse tempo, ou vontade, de observar o mundo além de sua própria interioridade.

O homem pressentiu o nascimento do quinto dia em que estava na praça pela temperatura que começava a esquentar. Moveu apenas uma mão até a bolsa, retirando dela uma garrafa de plástico que despejou em si assim que abriu a tampa. Riscou o fósforo, também retirado da bolsa, e retornou em sua posição inicial.

Sem produzir nenhum som, nem agonia ou alívio, o homem permaneceu. Os gritos circundavam-no devido aos passantes que se impressionaram com o feito, embora nada faziam para ajudar. Estavam ao seu redor, aquecidos pelo calor e somente se deram conta do feito quando um dos homens presentes disse que, além de aquecer, o cheiro parecia apetitoso. O que espantou o resto do grupo fazendo-os perceber que, naquele momento, assistiam a uma cena espantosa.

O homem da revistaria defronte à praça agiu, correndo com um pano longo, que um dia fora uma coberta, para tentar aplacar as chamas. Mas o homem já estava morto. Se trajava documentos, foram queimados também. Na bolsa que se salvou em partes, um livro de Miguel de Unamuno no original.

Sem identidade, o homem não era ninguém. Era só acontecimento, uma notícia de jornal que, amanhã, nem seria lembrada por suas cinzas, limpas naquela mesma tarde por funcionários da prefeitura.

05 de Junho de 2013

segunda-feira, 3 de junho de 2013

amália

a Clara

A noite era de fado, hoje no Clube. Fumaça subia e os vasos as jarras garrafas de vinho entornavam nas mesas, nos copos, cerveja, sem sons.

- Se não há silêncio não há fado - dizia o velho Anfitrião - por favor, se houvesse silêncio era bom.

Uma mesa de idosos de outra parte do país ri bem baixinho, entre vinhos de nominação de origem controlada. Canta cantes e, naquela noite, inaugura-se uma nova modalidade de humor xenófobo. Portugueses a contar piadas de português.

- Da minha vila! - dizia um - Conta-se lá na minha vila!

- Se houvesse silêncio era bom.

Silencia-se a tasca toda. Os velhos, baixinho, inda riem. Sobe ao ar um cheiro que sabe a Lisboa, a Tejo e a dois anos idos. A guitarra portuguesa emula a viola caipira do interior de São Paulo. Estalam-se dedos ao ritmo da canção, e o fado canta.