Júlio chegou ao ponto de ônibus alguns minutos adiantado. Sorriu, pois ao menos uma vez na vida não precisou correr até o ponto de parada numa frenética corrida contra o motorista sádico, que se divertia ao ver correr os passageiros atrasados, balançando os braços em interminável angústia. Normalmente chegava vinte minutos atrasado no laboratório e escutava o mesmo sermão de seu orientador. Jurava sempre que iria acordar cinco minutos mais cedo, era o tempo que bastaria para que pegasse o ônibus apropriado, mas seu cérebro preguiçoso entedia que tinha tempo extra para gastar no chuveiro ou deitado na cama, calculando a força hercúlea necessária para se levantar. Júlio não tinha muito orgulho de suas decisões matinais.
No ponto, uma garota escutava música em um iPod cor de rosa. O rosto tinha traços leves, delicados e os olhos de um azul claro escondidos por trás de lentes finas, presas à armação vermelha. Cabelos negros caíam sobre os ombros estreitos e sua cabeça balançava ao ritmo da música que apenas ela ouvia. Júlio não pôde conter o sorriso, gesto que foi captado pela garota. Ela sorriu de volta e disse, em uma voz exageradamente alta:
“Kashmir!”
“O quê?”
“Estou ouvindo Kashmir”, ela repetiu, quase gritando. Pessoas que passavam por perto olhavam para a garota com fones no ouvido e balançavam a cabeça.
Júlio deu uma risada, ao entender a palavra. Apontou para os próprios ouvidos e disse, com a voz igualmente alta: “Você está gritando, não precisa falar tão alto.”
Ela esticou os lábios em entendimento e retirou os fones brancos dos ouvidos. “Poxa, desculpe”, sussurrou.
Júlio viu um clarão vindo de um dos apartamentos dos prédios da frente e perdeu alguns segundos procurando pela fonte da luz repentina. Voltou-se então para ela. Bonita, decidiu, e suas mãos começaram a transpirar instantâneamente. “Kashmir é sobre o efeito do tempo, certo? Fala daquela idéia de que o tempo não é linear, mas se parece com uma onda e o espaço o acompanha, ou seja, poderíamos cortar do ponto A para o M sem ter de passar por todo o abecedário, poupando tempo e energia.”
A garota ficou um tempo sem saber o que responder. “Cara”, disse finalmente, “é uma música do Zeppelin.” O rapaz negou com a cabeça e procurou no relógio digital ao lado da cabine para ver quanto tempo faltava até o próximo ônibus. Ela achou engraçado como ele parecia nervoso por estar falando com uma garota. Gostava de nerds portadores de ansiedades sociais, para a sorte dele. Retirou a mochila das costa e pescou um livro de dentro. Michio Kaku, dizia a capa, A física do impossível. A capa era azul e uma mulher parecia estar sendo abduzida por uma luz misteriosa. “Ele também fala sobre esse tipo de coisa louca… De teleportes e viagens no tempo. Você gosta disso?”
Ele sorriu e grunhiu pelo nariz, fazendo com que seu rosto se tornasse em um ponto vermelho vivo. “Eu estou fazendo doutorado em física teórica”, explicou. “Trabalho com esse tipo de coisa em um laboratório.” Parou e apertou os olhos com as duas mãos. “Me desculpe. Na verdade eu não deveria ficar contando isso para as pessoas.” Estudou, estupefato, o crescente interesse no rosto da garota. “Também não deveria dizer isso para as pessoas… burro, burro, burro!”
“Está tudo bem, seu segredo será bem guardado”, ela lacrou a boca com um zíper invisível e engoliu os lábios.
Júlio sorriu. Um novo clarão chamou sua atenção e seus olhos, treinados para reagir rapidamente quando em alerta, localizaram uma sacada aberta alguns centímetros. A janela aberta estava sustentada por um livro e uma lente fotográfica estava apontada para eles. “Obrigado”, respondeu finalmente. Ao longe, o motor barulhento deu sinal de vida: tinha pouco tempo.
“Escuta, o que você acha da gente tomar um café uma hora dessas…”
O ônibus chegou e ela deixou a frase morrer no ar poluído pelos gases do motor. “Meu nome é Júlio e tentarei estar aqui amanhã, nesse horário e nos falamos novamente”, olhava para ela, sério. “Amanhã nos falamos mais”, repetiu, mais para si mesmo do que para a garota bonita, a primeira que demonstrava interesse em alguns anos.
A porta azul se fechou e o ônibus partiu, deixando o físico para trás. Mais um sermão não faria diferença em sua vida. Tinha vinte minutos. O relógio mostrava 7:40 quando ele iniciou o cronômetro. Atravessou a rua o mais rápido que pôde e alcançou a entrada do prédio de onde vira a máquina fotográfica. Apertou todos os botões do interfone e, como manda uma das leis mais recorrentes de hollywood, alguém abriu a porta sem se importar com a identidade do visitante. Júlio escalou os andares com velocidade, subindo as escadas de dois em dois degraus. Tinha de agir rápido. Quando assinara os papéis para ser parte do laboratório em que trabalhava, fora mandado para um campo de treinamento militar e por sete meses fora esculpido por mestres da rigidez militar e da prontidão corporal. Estava seguindo um protocolo exaustivamente repetido e precisava descobrir se estava envolvido em algum esquema de espionagem industrial, uma trama corriqueira quando se estava envolvido com a primeira tentativa com possibilidade de viagem no tempo da História.
Quando chegou onde queria estar, Júlio pegou dois grampos em seu tênis e destravou a porta em menos de dois minutos. Sentia o coração disparado e um frio crescente na espinha. Depois do sonoro click, ele abriu a porta com cautela, empurrando a madeira alguns milímetros por vez, revelando um apartamento quase vazio. A entrada mostrou uma cozinha suja, pilhas de restos de comida acumuladas em caixas de pizza e isopores. Um odor acre atingia as narinas do físico e ele lutou contra o enjôo que escalava a garganta. Seus sentidos estavam em alerta máximo e ele agachou sobre os joelhos instintivamente quando escutou passos mais para dentro do imóvel. Avançou devagar, com passos leves. Na sala, sentiu o mundo revirar quando achou fotografias suas no ponto de ônibus. Dezenas de fotos estavam fixadas nas paredes, todas elas mostrando Júlio de longe, vestindo roupas diferentes e em horários variados, mas sempre no ponto de ônibus. Em uma das fotos, ele vestia jaqueta de couro e as árvores indicavam um forte vento. Lembrava-se daquele dia, ocasião em que ficara especialmente irritado por ter perdido o ônibus, um atraso que lhe custou três dias de febre alta.
Em outra, vestia terno e gravata, fazia sol e três pessoas estavam hipnotizadas por celulares. Júlio percorreu as fotografias nas paredes rapidamente, mostrando dias diferentes de espera no ponto de ônibus. Havia fotografias inclusive no vidro fosco da sacada, essas diferentes das outras.
Um vulto pulou sobre ele e antes que pudesse reagir, estava girando no chão, caindo sobre garrafas plásticas vazias, rolos de negativos estragados pela luz do sol e restos de comida. Ergueu o atacante pelos ombros e desferiu um soco em seu nariz, ficando cego com o sangue que caiu sobre seu rosto. Um forte baque nos testículos arrancou grande parte do fôlego e Júlio se retorceu, perdendo o controle momentâneo de suas ações; suportou alguns socos no rosto e no estômago antes de conseguir juntar forças nas pernas e empurrar o vulto para longe. Levantou-se com o mesmo impulso, realizando um largo movimento para pressionar a outra pessoa, direcionando uma cabeçada que a deixou atordoada. A sala estava parcialmente escura e ele não conseguia enxergar muito bem o adversário, que buscava as sombras para esconder seu rosto, era uma estratégia pensada previamente.
“Você não sabe o que está fazendo”, disse uma voz feminina.
“O que é tudo isso? Porque vocês está me fotografando?”
Um vaso voou em sua direção e, no último instante, ele abaixou a cabeça evitando o impacto. Um erro de principiante, erro constante que irritava seus treinadores. Júlio quase perdeu os sentidos com a cotovelada na base de sua cabeça, mas conseguiu manter a consciência e agarra um braço fino, torcendo-o com a ajuda da própria força da mulher, aplicando uma chave imobilizadora. Forçou a mulher até a luz que entrava pela fresta na janela e a soltou, com um choque quando viu a garota que ouvia Kashmir.
“O que… você… como?” A garota estava magra, esquelética, na verdade. Bolsas negras sustentavam os olhos e um longo cabelo branco caía até sua cintura. Havia loucura naquele olhar, mas Júlio reconheceu o rosto amigável com o qual havia conversado há não mais que dez minutos. O problema era que a garota estava ao menos trinta anos mais velha.
Ela pegou a cabeça do físico e bateu contra a parede. O mundo se apagou e voltou algumas vezes. “Você deve morrer agora”, ela disse, batendo a cabeça dele mais uma vez. “Eu preciso parar o Laboratório antes de…”
Júlio girou o corpo e parou com um único movimento atrás da mulher. Colocou a mão nas costas dela e, com o máximo de forças que conseguiu conjurar no braço, empurrou-a de encontro à parede. O som horrível do pescoço sendo quebrado se juntou ao baque abafado que ela fez ao se chocar e seu corpo caiu no chão, desmanchando-se como uma marionete com as cordas rompidas. O físico caiu sentado, ainda lutando para manter a consciência. Ele se levantou com dificuldade e tateou até encontrar o interruptor. A luz revelou ainda mais fotografias no cômodo e o corpo sem vida da garota. Suas roupas eram estranhas, costuradas em um material que parecia defletir a luz e olhar para ela causava uma leve dor de cabeça. Luzes brilhavam em um dispositivo preso no pulso direito, exibindo símbolos exóticos. Júlio estudou mais fotografias, retirando algumas de uma das paredes, revelando mensagens escritas com o que parecia ser sangue: Preciso ter certeza de que é ele, dizia uma delas. O dia está chegando, tenho de agir, o Mundo depende depende depende depena desprende de mimmimim.
Um arrepio subiu por suas costas e se instalou na nuca dolorida. Parte de sua mente estava preocupada com uma possível concussão, mas um torpor invadiu as preocupações do físico quando ele olhou para as fotografias coladas no vidro. Incontáveis corpos estavam empilhadas pela Champs-Elysées, formando piras horripilantes de carne chamuscada e queimada, ardendo com fúria diante de uma Torre Eiffel parcialmente destruída; outra mostrava caminhões descarregando centenas de corpos nos mares do Japão, enquanto trabalhadores com uniformes de proteção, respiravam oxigênio em tubos. Rio de Janeiro, Barcelona, Washington e Camberra. Por todo o mundo, fotografias mostravam cartões postais decaídos e centenas de corpos sendo descartados. Em algumas cidades, faixas com seu rosto mostravam uma propaganda grandiosa em um pano vermelho. Júlio usava um tapa-olho e um quepe, olhava com um único globo para o alto e dezenas de aviões sobrevoavam o céu em perfeita sincronia.
“Mas que merda é essa? Eu sou o novo Hitler?”, perguntou para a garota morta. De repente, o aparelho que piscava, apitou e uma palavra surgiu no visor: Loop, piscando repetidamente.
Loop Loop Loop Loop.
Na janela ele viu a máquina fotográfica sustentada por um tripé e, do lado, uma espingarda com mira telescópica acoplada. Outro arrepio explodiu em seu sistema nervoso.
De repente, ele sentiu o a linha do horizonte envergar, como se estivesse expandindo para a realidade não quebrar. Olhou para o relógio e viu que era 7:35 da manhã. Reconheceu, no ponto de ônibus
Loop
…a roupa que usava naquele mesmo instante e o livro de capa azul que a garota mostrava. Não tinha muito tempo. O dia está chegando, tenho de agir, ecoou em sua mente. Letras escritas com sangue, loop temporal, ele pensou.
Sem pensar no que fazia, disparou o flash da máquina e aproximou um olho da lente telescópica. Ele não sabia o que faria no futuro, como poderia se tornar em um aparente ditador e iniciar uma onda de extermínio global, mas não deixaria um futuro tão sombrio ocorrer. Mirou com mãos precisas em sua própria testa, olhando pela janela para seu próprio corpo em um passado recente. Sua mente parecia prestes a explodir enquanto tentava aceitar o que acontecia.
Olhou para o passado e pensou no futuro. No que poderia fazer, como poderia mudar as fotografias coladas no vidro. Grandioso, magnífico. Era o seu destino. E poderia ser usado para o bem.
Prometeu que não desistira; jurou lutar contra o monstro que vira nas fotos e construir um futuro melhor para a humanidade.
Moveu o pulso e mirou na cabeça da garota.
Uma leve pressão no gatilho e a arma disparou.
Loop
Loop