O Templário fincou a espada bastarda fundo na terra
molhada e estudou as hordas de mouros que cortavam a península, tomando terras
da cristandade em velocidade alarmante. Eles eram muitos, de proporções
bíblicas e não havia defesa cristã organizada para enfrentar a tempestade que
se aproximava. Precisavam de cada homem, cada menino capaz de portar uma lâmina
afiada contra a garganta suja dos invasores. Vê-los caminhando, marchando,
contra as montanhas e planícies ibéricas revoltava as entranhas do velho
templário.
Como Leônidas, os
templários iriam barrar os infiéis até que novas forças chegassem da França e
do Sacro Império Romano, prontos para servir como sacrifício em nome de um bem
maior. A bondade intrínseca dos homens seria suficiente para vencer, no final
das contas.
Puxou a arma de
volta e limpou a terra suja da lâmina. O templário estava pronto para a
batalha. Seu coração estava calmo como um lago no Éden; os músculos, sedentos
por justiça e sua fúria, afiada pela próprias convicções. O templário liderou
as colunas dos Cavaleiros de Cristo contra as paredes mouras, correndo na grama
que logo estaria tingida pelo vermelho, cortando a pele marrom do inimigo
invasor.
O corte de sua
espada era certeiro e o Templário se mostrou uma perfeita máquina de guerra. O
arco que formava com a lâmina larga derrubava dois, três inimigos por vez; a
armadura completa concedia a proteção que precisava. Os inimigos ameaçavam uma
retirada. Ele não os deixaria escapar: mouros tinham a péssima tática de recuar
e reagrupar: os homens que fugissem daquele campo de batalha incorporariam
outros exércitos e mais sangue cristão seria derramado naquela terra abençoada.
Não, a península seria novamente dos homens de bem, nenhum homem escaparia do
Juízo.
“Flaquear!”, gritou
com a voz profunda. O porta-bandeira deu o sinal para a manobra e ele viu parte
da cavalaria se movimentar para a esquerda, formando um largo círculo para
esmagar os infiéis. Com a ajuda preciosa dos cavalos os templários rapidamente
cercaram os inimigos e minaram suas forças, atacando em ambos os lados. Ele
formava ataques em crescente frenesi, decapitando mouros, decepando mão, braços
e pernas. Sua fúria estava canalizada pela Fé e o aço mordia fundo, sem
piedade. Dez, vinte, trinta homens caíram por sua espada e a ainda a força se
negava escapar dos braços musculosos. A fadiga não encontrava espaço em seu espírito.
O templário fazia seu trabalho.
De repente, como o
trovão que anuncia a turbulência da tempestade, a corneta tocou, aguda e rouca,
desesperada. O velho Templário derrubou mais um infiel e olhou ao redor. Homens
se abraçavam em embate voraz por todos os lados e além, além do mar de carne
que se despedaçava em uma guerra sem sentido - guiada por crenças distintas e
incompatíveis, moldada pela intolerância e pela busca por terras férteis – a
terra tremia com a corrida de milhares de mouros. Em poucos minutos eles estava
cercados por centenas de cimitarras e flechas que percorriam os céus em um arco
ameaçador.
Três anéis se
formaram no campo de batalha e os templários se tornaram flanqueados.
Buscando cegamente
por um ponto fraco na defesa do velho Templário, uma flecha rasgou a cota de
malha em seu ponto mais vulnerável e se fincou na omoplata tensa. Cada
movimento causava uma onda de dor, cada descer da espada bastarda se tornava
mais pesado. O peso da batalha mudava de lado; tão rápido quanto pareciam cavalgar
para a vitória, o espírito templário foi quebrado pelo fio de cimitarras. Os
homens de Cristo caíam ou, pior, fugiam em um ato de covardia condenatória. Não
ele. Morreria na glória do combate. Templários, os primeiros a entrar no campo
de batalha; últimos a se retirar. Aqueles que morriam pelo nome do Senhor
estariam em Sua divina graça, bem sabia. Ele teria seu lugar no Paraíso, ao
lado do Senhor e de todos os santos.
Um, dois, três
golpes, três mouros mortos. Um, dois, três golpes, cada vez mais pesado; um,
dois, três, os ossos não eram mais quebrados com a força de seus golpes, a
carne não mais rompia diante o fio da espada agora cega; uma, duas, três vezes
ele sentiu a lâmina fria dos infiéis em seu corpo. Uma rápida explosão em seu
pescoço e o mundo girou, até que nada mais existia.
Apenas a escuridão.
O velho flutuava
nos mistérios que tinham lugar além da linha da vida.
Seguia o nada, suas
mãos buscando apenas o vazio, o nada... o nada... até sentir a pele macia de um
carneiro. Um cheiro invadiu suas narinas e ele pensou se a cabeça estava presa
ao resto do corpo. Um odor doce, acre e penetrante. Uma sensação macia e sedosa
no corpo nu. Dedos, mãos.
O velho forçou um
dos olhos e o abriu. Uma explosão de cor, como jamais havia visto, pintou o
cenário de onde estava.
Uma tenda. Risos. O
perfume de cabelos bem lavados.
Olhou ao redor e
viu que estava deitado na pele de seis carneiros, uma mesa com as frutas mais
belas que poderiam existir dividia espaço com diversos incensos que queimavam
pacificamente. Estava cercado por mulheres, todas de uma beleza digna dos
melhores poemas e das mais lindas canções, seios fartos e largos quadris, o
doce cheiro que exalava de suas peles o lembrava de pêssegos e canela; mãos
apertavam a carne cansada e calejada, procurando por seus braços e pernas,
buscando por sua intimidade sedenta pelo toque.
“On – onde estou?”,
perguntou.
“Na terra
prometida, bravo guerreiro. Em seu lugar conquistado pela bravura indômita, no
Oásis do Único e Verdadeiro Deus”, uma delas respondeu, roçando os seios em suas
pernas.
Olhou, ainda mais
confuso para as setenta virgens. “Mas eu morri em combate contra o... o
inimigo! O Paraíso é meu direito!”
A mulher, de
estonteante beleza, massageava as pernas do velho enquanto falava. “Eis o seu
paraíso”, ela respondeu, “sua tenda no Oásis divino, as setenta mulheres
criadas apenas para você e a eternidade para usufruir de todos os prazeres que
existem.”
“Não!”, gritou e se
levantou, jogando duas mulheres para longe. “Eu quero o verdadeiro Paraíso,
aquilo que me prometeram toda minha vida!”
“Ah”, ela disse em
entendimento do que ele falava, “você busca a dignidade dos guerreiros. Muitos
preferem este outro lugar renegando os prazeres da luxúria, humano. Vá, vá para
seu povo e para seu destino, esqueça nosso lugar, renegue nosso toque”,
apontava para o único rasgo na enorme tenda.
O templário andou,
nú, até a o rasgo e se virou uma última vez, estudando a beleza imensurável das
setenta mulheres, reprimindo a luxúria que tentava tomar conta de sua
resiliente vontade. Algumas pessoas seriam capazes de matar pelas frutas na
mesa.
Atravessou a
entrada, renegou definitivamente os prazeres da carne e se dirigiu para o
Paraíso prometido pela mulher.
Apenas um passo e a
tenda, juntamente com as frutas, as peles de carneiros e as virgens desapareceram,
abrindo espaço para centenas de gargalhadas e arrotos.
Subitamente, vestia
uma armadura de batalha, endornada por peles de carneiro, portava um machado
feito com ossos e metal. Milhares de homens banqueteavam-se da carne vermelha e
vinho.
O templário
virou-se, procurando pela entrada para a tenda, mas encontrou apenas ar.
Uma enorme caneca
de vinho caiu sobre suas mãos.
“Bem vindo ao
Valhalla, guerreiro!”, duas mulheres, gordas, gigantescas, cantaram.
Adorei Mauricio. Visualizei as cenas, quase senti os odores e os sabores. Uma vez mais entrei no conto e estive lado a lado com o templario (como vc sabe eu curto muito). Obrigada pelos momentos de fantasia. Ana Eliza.
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