Quando entramos na sala quase
começava o A Sociedade do Anel, conhecíamos pouco um do outro. Assistimos o
filme sem igualmente conhecer muito sobre o universo de Arda e ainda menos
sobre o que esperar do resto do dia. Era nossa segunda hora de conhecimento
mútuo; as primeiras palavras trocadas na fila do cinema, onde eu estava atrás
dela, entre um elfo e um hobbit gordo e cheirando suor.
“Você não veio fantasiado”, ela
constatou.
“Está errada, senhorita”,
respondi fazendo um leve gesto com a mão, tentando manter um ar élfico - ao
menos até onde tal coisa é possível - “sou um elfo, mas estou vestido de
humano.” Coloquei as duas mãos sobre as orelhas, tentando esconder as orelhas
pontudas. Ela sorriu, um sorriso estranho quase como um soluço. O hobbit atrás
dela girou os olhos. “Leu o livro?”
“Não, mas amo cinema. Não sei o
que esperar, nunca li uma palavra dos livros.”
Eu também não tinha aberto o
livro uma vez sequer, mas estava naquela fila para ficar por dentro das
conversas no escritório, nada poderia me preparar para o que estava para
começar.
Nossos queixos ficaram, quase que
literalmente, caídos durante todo o filme. Foram mais de três horas de suspense
e fantasia pura, mãos entrelaçadas e trocas de olhares. Naquela noite, fizemos
amor pela primeira vez e nos apaixonamos. Foi algo que nos atingiu com a
sutileza de um meteoro caindo sobre a Terra… não, foi com a sutileza do
Melancolia, aquele planeta que destrói a Terra naquele filme. Existíamos apenas
para nossos corpos e mentes, aos poucos queimamos tudo: amigos, emprego,
moderação. O tipo de bolha que formamos e não percebemo o quanto somos
egoístas, esquecendo de todo o resto, de tudo aquilo que importava.
Tudo, menos a Terra Média.
Compramos e trocamos os três
livros, devoramos cada página do épico de mais de mil páginas. Três vezes. Eu
destacava as passagens que mais gostava e ela as lia em voz alta, depois de
ler, com direito à interpretação, as falas do Gandalf. Ela amava as palavras
daquele que trazia problemas.
Estávamos em uma espiral tão
profundo que nunca percebemos o quão longa da superfície havíamos viajado.
Depois veio As Duas Torres. Dessa
vez, enfrentamos a fila para a primeira sessão, de madrugada. Ela tinha os
cabelos prateados e eu usava uma imitação dos pés peludos dos halflings. Eu
fazia caretas para as mudanças do roteiro e ela sussurrava cada fala de
Gandalf.
Nosso relacionamento, assim como
a trilogia, alcançava o ponto agridoce do segundo ato, quando todo o cenário
está posto e não há alternativa, tirando continuar caminhando ate o fim. O
corpo dela era um território conhecido e explorado e praticamente não havia
novidades; lugar confortável, receptivo. Qualquer sinal de cansaço passava
despercebido e os telefonemas que ela atendia depois de sair do quarto foram
completamente ignorados.
Tudo estava indo bem na Terra
Média, eu acreditava.
Durante o Retorno do Rei nossas
mãos nunca se tocaram. Quase não dialogávamos e nosso relacionamento se resumia
apenas nas noites de sexo. Fazíamos amor de forma fria, distante. Apenas pelo
orgasmo, sem qualquer sentimento. Enquanto a saga que coroou nosso amor chegava
ao ápice, havíamos atingido o nadir pessoal.
Ela era uma pessoa praticamente
desconhecida, fechada para qualquer investida de minha parte. Não respondia
mais minhas mensagens ou respondia minhas perguntas. Ficava quase uma semana
sem aparecer. Começou a fumar e a se refugiar em festas, muitas vezes acordando
sem qualquer memória do que tinha acontecido na noite anterior, enchia minha
caixa de mensagens com vergonha e arrependimento, para depois lançar olhares de
desprezo e superioridade.
Arrumou outros amigos e logo não
estava mais falando comigo.
Lia outros livros, que
desapareciam antes que eu pudesse ler uma única linha.
Assistia aos filmes sem perguntar
se eu queria ir junto, saía para longas horas de caminhada no meio do dia.
A distância se tornou
intransponível.
Eu me transformei em passado.
Quase uma década depois, eu
escrevo isso no meu tablet, equilibrado sobre um livro do George R. R. Martin.
Estou agora na fila para comprar minha entrada para a sala 8, O Hobbit. Estou
usando barba falsa, uma armadura pesada que me custou dois meses de salário e
vinte semanas de meu precioso tempo, além da peruca ruiva. Ela está na minha
frente, mas não me reconheceu, por baixo de toda a fantasia. Está usando uma
blusa curta, com dois esqueletos se abraçando; meia-calça rasgada e sombras
negras ao redor dos olhos.
Meu coração está saindo pela
minha boca, literalmente: acho que estou sentindo gosto de sangue.
Claro que tive meus anos perdidos
por causa dessa mulher. Cheguei ao fundo do posso. Catatônico. Bêbado. Perdido.
Vagabundo e ainda mais adjetivos. Escolha algo degradante; eu fui, mas
retornei, voltei a andar com minhas pernas.
Ainda assim, meu corpo se inunda
com algo incontrolável nesse momento.
Imbecil. Eu me odeio.
Não. Passou. Finalmente, não
sinto mais nada. Estou livre. ‘Liberdaaaaaaaaaaade’, como gritou William
Wallace.
Ela chegou na bilheteria e disse:
“Um para o Amanhecer parte dois, por favor.”
Vaca.
Gostei muito. Parabéns!
ResponderExcluirM
Texto muuuuuuuuito bom Mau. Adorei
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