Parecia um clube como aqueles que ele via nos filmes
ambientados no começo do século passado. Móveis finamente trabalhados
espalhavam-se pelos cantos do lugar, dando espaço para seus assíduos
frequentadores. Permanecer onde estava, na sala bem iluminada mas, em
contradição, estranhamente escura era como ver o mundo através de tons pastéis,
um cenário que poderia ser igualmente de um quadro renascentista.
Todos vestiam terno
– a primeira regra para os associados, logo aprenderia – e sentavam, quietos,
nos sofás caros, bebendo café, whisky e vinho branco, lendo Tolstói, Cervantes
e Shakespeare. Silêncio, com o peso de uma bigorna, imperava. Ele contou,
movendo os lábios, dezenove homens, todos com o olhar vago e rosto sem qualquer
expressão.
“Está ná hora”,
disse um deles. O homem segurava um copo suado pelo líquido âmbar, pedras de
gelo flutuavam no whisky. “Temos um membro novo”, todos olharam para ele, uma
sensação terrível, antes de continuar, o homem de um longo gole de seu copo,
“vou repassar as regras. Elas são poucas, não se preocupe. Primeiro, linha.
Mantenha-se bem vestido quando estiver entre estas paredes”, ele abriu os
braços e as indicou. “Vozes altas, baderna e vagabudangem de qualquer estirpe
não serão toleradas e seu término será imediato. Segundo: discrição. Seja
discreto sobre nossas reuniões ou não seremos discretos com o que você disser.
E por último, seu primeiro dia, sua hora de falar.”
Um copo quadrado
foi parar em suas mãos sem que ele percebesse. Olhou, confuso, para o copo em
suas mãos e deu um pequeno gole, sentindo o bourbon descendo e queimando, um
rio de lava, por onde passava. “É como Hemingway”, disse por fim, com um sorriso
no canto da boca.
Os homens
permaneceram calados, impassíveis diante o gracejo. “Como Hemingway?”,
perguntou um velho sentado no fundo da enorme sala. Usava uma boina verde
desbotada e tinha uma garrafa aberta ao lado.
“Sim... a bebida.
Como em qualquer conversa importante nos livros dele, sempre tem a bebida.”
Nenhuma palavra em retorno. Público
difícil, pensou. “Não... eu não sei o que falar. Para dizer a verdade, eu
não sei o que dizer, sequer sobre o que é esse clube!”
“O senhor não tem
idéia sobre nossa tarefa?”, perguntou o velho.
“Tarefa? Como em
‘missão’? Isso é algum tipo de culto?”
O homem que falou
em primeiro lugar deu uma risada, grave e profunda. “Culto? Não, meu jovem.
Somos... Acumuladores. Você recebeu o cartão?”
Perguntas empilhavam
em sua mente. “Sim, recebi o cartão e tirei o pó da minha melhor roupa e
apareci na data indicada.”
“Então conte suas
tristezas, jovem. Você provavelmente foi apontado por alguém que conheceu sua
solidão ou tristeza ou pesar ou qualquer sentimento negativo que você possa ter.
Por isso está aqui, para contar suas mazelas.”
“Contar minhas mazelas?”
“Pare de agir como
um gravador. Você deve contar sua maior tristeza, aquilo que mais pesa em seu
coração. Para isso estamos aqui.”
Ele considerou por
alguns momentos. “Acho que não...”
“Senhor...”, o
homem respondeu em um tom alterado. Parou e respirou profundamente antes de
beber quase duas doses do whisky que tinha em suas mãos. “Estamos aqui para
acumular os pesares que assolam os homens. Buda ensinou seus seguidores que
viver é estar em constante sofrimento. Para isso estamos nesse lugar, meu caro.
Dividir e compartilhar as feridas escondidas em sua alma. Acumular. Harry aqui”, apontou para o velho, “expulsou o filho de
casa depois de uma briga. Eles tiveram uma discussão por causa dos hábitos... etílicos de-”
“Besteira!”, o
velho interrompeu. “Eu sou um bêbado inútil, jovem. Meu filho me confrontou e
perdeu, simples. Ele queria que eu parasse de beber, eu queria que ele sumisse
da minha frente. Abri a porta de casa e apontei meu dedo para a rua. Assisti,
com uma ponta de satisfação, enquanto ele, meu próprio filho, fazia as malas e
saía de casa.” O velho parou e bebeu profundamente. Lágrimas caíam livremente
de seus olhos. “Foi a última vez que o vi. Ele estava dirigindo, procurando um
quarto de hotel para ficar por alguns dias quando um caminhão passou por cima
do pequeno fusca. Dizem que um dos braços foi parar em outro quarteirão.” Ele se
levantou e olhou para o novo membro dos Acumuladores. “O mais engraçado? O
motorista do caminhão estava bêbado. Tão bêbado quanto um gambá, como diria a
sabedoria popular. Karma, essa prostituta barata.”
O homem, o líder
ele começava a acreditar, ergueu o copo. “Para Harry”, disse e bebeu novamente.
Todos os outros ergueram seus respectivos copos e beberam; o bourbon desceu
mais suave desta vez. No final, tudo se torna um pouco mais suportável,
contemplou. Talvez fosse a atmosfera do lugar, talvez o olhar triste dos
dezenove homens espalhados pelo clube. Havia, ele não podia negar, uma força
misteriosa no coletivo que ajudava a tornar o que sentia em algo suportável.
Não mais sentia a pressão sobre o peito, a dor angustiante que cercava suas
memórias, conturbadas e confusas; a azia em seu estômago estava calma, apesar da
bebida. Ele bebeu novamente. Tavez seja o
álcool, tentou enganar-se.
“Minha esposa me
deixou”, disse um homem, perto da árvore de natal. “Ela me traiu constantemente
e eu sempre a perdoei. Ela chegava com aquele rosto de falso arrependimento e
contava o que havia feito. De novo e de novo e de novo. Cada vez era uma
ferida, uma ferida profunda, que sangrava em silêncio, em resiliente
insistência. Com o passar do tempo eu me fechei em um casulo, cerquei-me dos
livros e entrei nesse labirinto de palavras, correndo da memória, correndo de
minha covardia e dos seus atos horríveis, escondido em outros mundos do meu
passado.” Ele notou que o homem carregava um livro surrado nas mãos. “Aos
poucos perdi minha humanidade, esse foi o ponto em que cheguei, tornei-me frio
e distante. Um dia ela olhou, com o mesmo olhar que usava quando tinha que me
contar uma de suas aventuras sexuais. ‘Estou te deixando’, ela disse sem
qualquer cerimônia. ‘Você é a porra de um fantasma agora, uma casca do que era.
Não vejo mais o homem que amei. Até o natal você está matando!’ Era meu papel
ter gritado de volta, sei disso. Berrar com todo meu fôlego, apontar meu dedo
para aqueles olhos negros, aqueles abismos que sugavam minha energia. Um
fantasma eu virei. Uma casca. Simulacro do homem que um dia fui. Um
acumulador.”
Um novo brinde. O
bourbon vinha suave e rasgava sua tristeza em mil pedaços. Ah, ele acumulava há
tempos, tinha sua parcela de contribuição para o clube, mais do que todos
aqueles homens somados, acreditava. De repente, um manto de tristeza caiu sobre
ele e ficar naquele lugar era quase insuportável. Foi uma virada repentina,
completa e quase irreversível. Ele olhou para a árvore de natal – um galho seco
e pintado de verde, com uma única bola vermelha pendurada com a ajuda de um
barbante – e deixou o álcool abrir o caminho até suas memórias.
“...escutando?”
Olhou para o homem
que falava com ele. “Desculpe, eu me perdi por um momento.”
“Estava explicando
sobre nosso objetivo.”
“Ajudar a
superar?”, ele perguntou, já sabendo a resposta.
“Não. Pelo
contrário. Queremos estimular sua depressão, abrir as feridas que estiverem
fechadas; alguns dizens que temos demônios presos em nossas cabeças e estão
parcialmente certos: há demônios em nós, mas não estão preso, dançamos com eles. Estamos aqui reunídos
para alcançar a Massa Crítica.”
“Massa crítica? A
Massa crítica da física ou da socio-”
“Sim, uma Massa
Crítica para a dor solitária. Buscamos o acúmulo máximo de sofrimento. Cada um
dos homens nessa sala perdeu alguém ou foi traído ou perdeu todas as conquistas
em um jogo de cartas. Alguns mais de um ítem da lista, mais de uma vez.
Atropelou um mendigo e queimou o corpo? Jorge, que está servindo bebidas.” Um
homem alto acenou. “Bolsa de valores? Aponte qualquer um e você terá grandes
chances de acerto. Acumulamos dores até chegar ao ponto em que ela será
auto-sustentável. Uma sociedade calcada em nossos piores sentimentos. Queremos
ultrapassar a Massa Crítica e devolver para o mundo parte de nosso pesar, fazer
do mundo um lugar, você sabe, pior ao
menos uma vez, para variar.”
Ele podia sentir a
bolha que envolvia o clube. Quase um ser vivo, uma consciência pulsante,
sedenta por mais, gulosa por alimento. Uma hora aquela bolha iria explodir e o
mundo seria consideravelmente pior, para a satisfação das dezenove pessoas, um
ato de pura vilania e egoísmo; vingança cega, se assim quiser, caro leitor.
Mas ele também viu
seu lugar entre eles, tão claro como as lembranças que o acordavam todas as
noites, coberto de suor e lágrimas. Ele já fora bonito, hoje não passava de um
homem pálido e magro, a pele quebradiça, os olhos sem vida e o pior, o espírito
quebrado. O bourbon cantava em sua mente e a voz da sereia não é uma voz a ser
ignorada.
“Eu estava certo”,
disse depois de alguns minutos de reflexão, “é como no Hemingway. Tudo está
conectado, todos somos parte de uma mesma realidade e nos encontramos presos à
uma rede inacreditável de ação e reação. Cada homem faz a diferença, cada um de
nós será uma ausência notada pela humanidade. O sino dobra por cada um de nós.
Podemos influenciar os outros... mesmo que para o pior.”
Vinte, ele pensou, somo vinte.
Abriu a boca e
acumulou.
Muuuuuuuuuito bom. Adorei. Texto bastante criativo. Parabéns. Ana Eliza.
ResponderExcluirTb gostei bastante, Mau.
ResponderExcluir:)
Como em Hemingway, muito lindo! Andrezza
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