“Sabe como algumas músicas às vezes
podem trazer um sentimento nostálgico? Comigo acontece, mas é raro. Led
Zeppelin, por exemplo, me faz lembrar de uma antiga namorada; The Who e Cream de
quando estava no meu primeiro trabalho e Miles Davis remete aos copos de whisky.
Muitos deles. Eu estava bebendo um pouco além do que deveria, mas isso passou.
A mesma coisa pode acontecer com cheiros. Um perfume, o cheiro da madeira
cortada no dia anterior, um livro novo ou um disco de vinil antigo, cebola
frita na manteiga... cheiros podem ser nostálgicos”, ele disse de forma leve,
buscando com seus dedos a mão dela. Era linda, vestia um longo vestido azul
escuro e os tentava orgulhosamente um profundo decote, seios fartos, empinados.
Ele podia ver os mamilos se destacados, duas cerejas apontando em sua direção.
Cabelos vermelhos, olhos de um castanho exótico, traços bem desenhados. Sabia
que ela estava muito aquém de suas possibilidades e mesmo assim, com Kind of Blues tocando nas cinco caixas
de som espalhadas na grande sala, ele assumiu sua audácia. A boa notícia era
que ela não retraiu o braço diante de seu toque.
“O
efeito, essa nostalgia, é chamado de sinestesia. Acontece quando os sentidos se
misturam ou se completam”. A voz era calma, sedosa. Uma súbta vontade de
mergulhar naqueles lábios macios, luxuriosos, tomou conta dele. Era como se a
mulher sentada do outro lado da pequena mesa de café fosse um labirinto que o
desafiava constantemente a se perder em seus corredores sem saída, curvas
fechadas e longas retas para poder se sentir completo novamente. Enquanto ele saboreava
o café forte, ela brincava com uma taça de martini, rodando a bebida na borda
do vidro. Continuou, em uma voz intencionalmente sedutora: “É como ler sobre
uma floresta com os pés descalços na terra. Se você ler sobre pinheiros, sobre
os sons dos animais e o cheiro de terra molhada ou de um rio correndo rápido
sentado em seu escritório, você terá uma experiência talvez agradável,
dependendo do texto. Mas será bem diferente se você passar os olhos pelo mesmo
texto encostado em uma árvore no meio do bosque, experimentando sensorialmente
tudo aquilo que está nas páginas. Nesse caso você teria uma boa experiência,
invariavelmente”.
Deus, ela é linda. Ele então abriu a
caixa de madeira que estava entre eles. No mesmo instante, um estalo seco escapou
da lareira, parcialmente encoberto pela perfeição sonora de Miles Davis. Olhou,
curiosa, para dentro da caixa. Diversos marca páginas empilhavam-se organizados
não por tamanho, ela percebeu, mas em uma lógica que lhe permanecia misteriosa.
“Minhas
nostalgias”, ele apontou para os marcadores. “A maioria delas, são engatilhadas
não por músicas, cheiros ou comida. Marca páginas”, disse enquanto esvaziava a
caixa. “Cada marcador de página me leva de volta a algum momento da minha vida
ou para situações, cidades, amigos... mulheres”, viu com satisfação o rubor nas
bochechas dela. Abriu habilidosamente um leque com os marcadores: “Vá em
frente, escolha um”.
Ela
fechou os olhos e escolheu um dos retângulos de cartolina. Era um marcador com
a capa d’O Grande Gatsby. Um sorriso se abriu no rosto dele.
“Em
1983, eu subi o Monte Fuji com dois amigos. Ainda consigo sentir o amargo quase
insuportável do chá verde. Você tem que experimentar o ar fresco no topo
daquela montanha! É lindo, quase metafísico. Quase”. Os olhos castanho-exóticos
brilhavam. “A gente quase acredita nos deuses japoneses lá em cima. Estávamos
em três e conversávamos no topo da montanha. Ah, o Fuji! Sentamos nas pedras e
estendemos um pequeno pano vermelho, acho que os quatro símbolos do Led
Zeppelin estavam estampados, e comemos alguns doces japoneses, feitos de
feijão, e bebemos saquê e whisky, Walker. Hans, um dos meus amigos, estava
contando, sem qualquer pressa em terminar a história, sobre o dia em que um vôo
foi cancelado e ele ficou preso no aeroporto de Istambul. Não havia nada para
fazer, ele não entendia a maioria das pessoas e resolveu ler. Tirou da mochila
um livro, surrado, que pertencia ao seu pai e começou a ler. O livro tomou
conta dele, horas se passaram e as páginas lidas se acumulavam do lado esquerdo
de seu dedão, até que uma mulher, uma aeromoça segundo ele, entregou quatro
marca páginas, todos com essa estampa”, segurava o marcador entre os dedos,
como se fosse um cigarro. “Acho que era 1968, o ano do verão. A mulher o guiou
até o bar, onde um homem estava sentado sozinho, fumando um charuto e lendo o
jornal do dia anterior. Ele se sentou na mesa, livro em uma das mãos,
marcadores na outra. Os três entraram em uma conversa animada e logo esse meu
amigo, o Hans, se esqueceu de perguntar o que diabos estava acontecendo.
Pareciam velhos amigos... velhos melhores
amigos. Quando o vôo do casal foi anunciado, eles se levantaram e se
despediram. ‘Por sinal’, disse o homem, ‘meu nome é Francis. Francis Fitzgerald’
e se afastaram, sumindo no mar de pessoas que vagavam na espera de um avião.
Ele conheceu o maldito autor, um do maiores até hoje, em uma noite quente em Istambul,
preso no aeroporto da cidade! Isso é incrível”.
Durante três
horas ele contou histórias. As datas se misturavam em diversos lugares do mundo
e diversas situações maravilhosas. Paris, Califórnia, Ilha de Páscoa... aquele
era um homem interessante, ela concretizou.
Por fim, ela
pegou um marca páginas branco, com um pequeno pássaro minimalista desenhado em
seu centro. “E esse?”. Ele apenas sorriu, percorrendo a mão na pele arrepiada
do pescoço da mulher.
“Esse ainda não
tem qualquer... sinestesia”, um beijo suave e molhado surgiu. “Sem qualquer
nostalgia. Mas as memórias mais doces podem ser criadas essa noite”.
Quase sem
perceber o que estava acontecendo ela o recebeu, quente e úmida. Enquanto
mordia sua pele e arranhava as fortes pernas do homem, ela se imaginou como um
marca páginas, um pedaço de papel azul e vermelho, cheio de sinestesia e
nostalgia. Iluminados apenas pelo fogo da lareira, era impossível saber que
eram duas pessoas. Durantes toda a madrugada foram um amontoado confuso de
braços e pernas, gemidos, gritos e saliva.
Pouco
depois do terceiro orgasmo, ele entrou no banheiro e ligou o chuveiro. Ela
ficou deitada no tapete da sala, exausta. Pensava nas história que ele contara
e nas histórias que poderiam ter. Quantos marcadores, quantas viagens, quanta
sabedoria!
Ele
saiu do banheiro, completamente vestido e apanhou a pequena caixa de madeira,
repousada perto da lareira, guardando o marcador branco com o pequeno traço que
representava um pássaro. Apanhou a chave do carro e caminhou rapidamente para a
saída.
“Espere!”,
ela gritou de forma alarmada, “Onde você vai?”.
“Sair,
vou para casa”.
“Fique mais um
pouco, conte mais sobre o Japão”.
“Eu
nunca estive no Japão”.
Ainda
sem entender o que estava acontecendo, ela continuou: “Me conte sobre seu livro
predileto, então. Dickens? Hemingway? Wilde?”. Sem se dar conta, duas lágrimas
caíram das lindas retinas castanho-exótico.
Antes
de sair daquela casa desconhecida, e da
vida daquela linda, maravilhosa, usada mulher, para nunca mais retornar, ele
respondeu com um sorriso triunfante: “Fitzgerald morreu no final de 40. E eu não
leio livros. Só coleciono marca páginas”.
Massa, cara! Gostei mesmo! Mas aonde estao os fantasmas, o sangue e/ou as cabeças rolantes?
ResponderExcluirE', fan do Stephen King é foda!!!hehehe
Seu irmao.
Adorei!!!! Obrigada e parabens!
ResponderExcluirMeliza
Muuuuuuuuuuuiiiiito legal!!! Idéia genial.
ResponderExcluirAna Eliza.