Para
E. R. N.
O barulho ecoava no corredor vazio. Em
uma velocidade febril, o escritor batia nas teclas da velha máquina,
completando páginas sem qualquer tipo de pausa, conectando palavras, períodos e
frases com maestria rara. Era possível sentir a magia na atmosfera, um manto
criativo baixado sobre o homem alto, de cabelos raspados e olhos brilhantes.
Sua mulher, morta pela segunda vez, jazia em uma cova rasa; ferida superficial
na Terra. Ele não se lembrava de ter escavado a cova, muito menos como ele o fizera, tinha na memória
apenas as lágrimas e o sentimento de perda, de estar irremediavelmente
incompleto.
Estiveram
juntos por 19 anos. Agora ela estava morta. Pela segunda vez.
...tac-tac-tac-tac...
Uma névoa cobria
o mundo naquela tarde enquanto a casa dançava ao ritmo das palavras que
brotavam nas páginas. Ele estava sentado em lótus e trocava as folhas
completamente preenchidas por sulfites em perfeita sincronia com a máquina,
obsoleta há muitos anos, mas única alternativa para a velha arte de escrever
com canetas. Ele tinha uma boa coleção de canetas de diversos tipos, mas sua
mão cansava logo e não havia mais energia. A última luz iluminara seu rosto
coberto de lágrimas algumas noites atrás, agora ele trabalhava na máquina de
escrever, enxergando com a ajuda de velas. Estava em sua terceira fita, mais de
36 horas seguidas de criação e esforço literário. Tinha que terminar o livro,
não havia mais tempo.
Escrevia
para bloquear o horror, escrevia para não pensar na manhã em que enterrara
Hellena. Ou quando finalmente entendeu, de forma simples e crua, a realidade em
que vivia. Algumas horas depois de jogar o último punhado de terra sobre o
corpo de sua esposa e colocar uma simples pedra branca sobre o túmulo decidiu
que iria terminar o livro. Naquele momento, tomava chá gelado, talvez o último
copo de chá gelado de sua vida.
...tac-tac-tac-tac...
Cada nova página era um passo na direção
de seu dever. Devia essa última tarefa à humanidade. Era uma história poderosa,
com potencial para mudar pessoas, lançar sobre todos um sentimento de esperança
e união, talvez despertar o melhor de seus leitores, impulsionar a civilização
em sua hora de maior necessidade. Ganhou sua vida com a ficção e havia construído
uma sólida, ainda que modesta, base de leitores fiéis à sua obra. Era o que
sabia fazer. Escrevia naturalmente como um processo para entender as coisas e
descobrir como responder apropriadamente. Confiante e determinado, prosseguiu.
...tac-tac-tac.
Subitamente,
escutou passos. Um som vacilante, arrastado, que congelou seus dedos. Um
silêncio sepucral caiu sobre o escritor. Ele podia sentir a presença do outro
lado da porta, segura pelo peso de um armário e algumas cadeiras colocadas para
travar qualquer tentativa de invasão. Os minutos transcorreram como horas, como
um espiral temporal. Seus músculos tensionavam com a expectativa de ação, sua
mente lutava para não entrar em um torpor nervoso. Aos seus pés, uma Desert
Eagle .44 descansava, recentemente lubrificada e carregada na capacidade
máxima.
Novamente
passos. Sons guturais afastando-se da porta.
Quando julgou
estar seguro, retomou a escrita. Seus dedos aos poucos ganharam velocidade e,
depois de algumas linhas, estava novamente isolado em seu mundo.
...tac-tac-tac-tac...
O plot se
desenvolvia, personagens tomavam medidas, personagens morriam. Frases de efeito
se misturavam em diálogos profundos e impactantes, atos se desenrolavam na
medida em que ele precisava trocar as fitas gastas pela máquina de esquever. A
letra “p” aparecia pela metade, os numerais estavam duros e algumas teclas não
mais indicavam a qual letra correspondiam. Às vezes as folhas ficavam presas e
ele tinha que puxá-las com força. Como resultado, a coluna de papel que se
acumulava no chão do corredor era irregular e algumas folhas estavam rasgadas
ao meio.
Sol e lua se
alternaram. Semanas transcorreram e o incessante tac-tac-tac-tac denunciava vida no antigo casarão. Apenas algumas
latas de legumes e atum restavam no armário, a água ganhava uma coloração
amarela e aquela era sua última fita. Se continuasse teria de usar a tinta
vermelha. Numerou, com uma caneta verde a folha branca que agora o encarava,
pronta e presa à máquina: 943, escreveu com firmeza. Estava na hora de
terminar. Seus músculos gritavam em protesto pelos dias de pouco movimento.
Cada centímetro de seu corpo era um ponto de dor.
Levantou-se,
esticando os músculos da costas e estralando os joelhos. Pensou em Hellena pela
primeira vez em... muitos dias, não tinha certeza. Tomou um banho rápido. Era
um milagre que ainda havia água encanada, fria e com um pouco de barro, mas
água encanada, caindo livre em seu chuveiro. Calçou os coturnos e sorriu ao
lembrar que os comprara sem saber se teria alguma oportunidade para usá-los. Colocou
calças confortáveis e uma camiseta do Pantera. Seu armário era constituído
basicamente por roupas pretas e marcas registradas de banda.
Sentado no
corredor, próximo à porta barrada, colocou uma mochila pesada encostada na
parede e, em poucas horas, terminou de escrever o livro. Tac, gemeu a máquina, quando ele pressionou a tecla e imprimiu na
folha o ponto final. Organizou cuidadosamente as folhas e as amarrou com um
barbante.
O escritor
colocou a mochila nas costas e pegou o revólver que estava no chão, em sua
cintura, um cutelo permanecia preso ao cinto. As últimas latas de atum, milho e
ervilha estavam seguras na mochila, por baixo de uma foto de Hellena.
Enquanto o
escritor alto empurrava o armário que bloqueava a porta e pisava pela primeira
vez naquele novo mundo, o livro permanceia no chão do corredor. O autor matou
seu segundo zumbi naquele mesmo dia, enterrando fundo o cutelo na cabeça do
morto-vivo, sentindo um misto de asco e prazer. Seek and Destroy, cantava enquanto se livrava dos mortos que caminhavam. Seus dias de escritor haviam
acabado, permaneciam no passado, esquecidos e enterrados, talvez junto com sua
esposa. Tudo que podia fazer era seguir em frente, conservando energia e
recursos, tendo sempre uma última bala na Desert Eagle com seu nome escrito.
Antes de usá-la, porém, iria derrubar o máximo possível daqueles malditos que
se recusavam a continuar mortos.
O livro, estado
perfeito da arte, épico poderoso e de capacidade influente, talvez o precursor
de todo um culto ao redor de uma nova escola literária - o último livro escrito
pela humanidade – permaneceu para sempre intocado.