sexta-feira, 30 de março de 2012

Um Conto de Milacro


Para E. R. N.

O barulho ecoava no corredor vazio. Em uma velocidade febril, o escritor batia nas teclas da velha máquina, completando páginas sem qualquer tipo de pausa, conectando palavras, períodos e frases com maestria rara. Era possível sentir a magia na atmosfera, um manto criativo baixado sobre o homem alto, de cabelos raspados e olhos brilhantes. Sua mulher, morta pela segunda vez, jazia em uma cova rasa; ferida superficial na Terra. Ele não se lembrava de ter escavado a cova, muito menos como ele o fizera, tinha na memória apenas as lágrimas e o sentimento de perda, de estar irremediavelmente incompleto.
            Estiveram juntos por 19 anos. Agora ela estava morta. Pela segunda vez.
            ...tac-tac-tac-tac...
Uma névoa cobria o mundo naquela tarde enquanto a casa dançava ao ritmo das palavras que brotavam nas páginas. Ele estava sentado em lótus e trocava as folhas completamente preenchidas por sulfites em perfeita sincronia com a máquina, obsoleta há muitos anos, mas única alternativa para a velha arte de escrever com canetas. Ele tinha uma boa coleção de canetas de diversos tipos, mas sua mão cansava logo e não havia mais energia. A última luz iluminara seu rosto coberto de lágrimas algumas noites atrás, agora ele trabalhava na máquina de escrever, enxergando com a ajuda de velas. Estava em sua terceira fita, mais de 36 horas seguidas de criação e esforço literário. Tinha que terminar o livro, não havia mais tempo.
            Escrevia para bloquear o horror, escrevia para não pensar na manhã em que enterrara Hellena. Ou quando finalmente entendeu, de forma simples e crua, a realidade em que vivia. Algumas horas depois de jogar o último punhado de terra sobre o corpo de sua esposa e colocar uma simples pedra branca sobre o túmulo decidiu que iria terminar o livro. Naquele momento, tomava chá gelado, talvez o último copo de chá gelado de sua vida.
            ...tac-tac-tac-tac...
            Cada nova página era um passo na direção de seu dever. Devia essa última tarefa à humanidade. Era uma história poderosa, com potencial para mudar pessoas, lançar sobre todos um sentimento de esperança e união, talvez despertar o melhor de seus leitores, impulsionar a civilização em sua hora de maior necessidade. Ganhou sua vida com a ficção e havia construído uma sólida, ainda que modesta, base de leitores fiéis à sua obra. Era o que sabia fazer. Escrevia naturalmente como um processo para entender as coisas e descobrir como responder apropriadamente. Confiante e determinado, prosseguiu.
            ...tac-tac-tac.  
Subitamente, escutou passos. Um som vacilante, arrastado, que congelou seus dedos. Um silêncio sepucral caiu sobre o escritor. Ele podia sentir a presença do outro lado da porta, segura pelo peso de um armário e algumas cadeiras colocadas para travar qualquer tentativa de invasão. Os minutos transcorreram como horas, como um espiral temporal. Seus músculos tensionavam com a expectativa de ação, sua mente lutava para não entrar em um torpor nervoso. Aos seus pés, uma Desert Eagle .44 descansava, recentemente lubrificada e carregada na capacidade máxima.
Novamente passos. Sons guturais afastando-se da porta.
Quando julgou estar seguro, retomou a escrita. Seus dedos aos poucos ganharam velocidade e, depois de algumas linhas, estava novamente isolado em seu mundo.
...tac-tac-tac-tac...
O plot se desenvolvia, personagens tomavam medidas, personagens morriam. Frases de efeito se misturavam em diálogos profundos e impactantes, atos se desenrolavam na medida em que ele precisava trocar as fitas gastas pela máquina de esquever. A letra “p” aparecia pela metade, os numerais estavam duros e algumas teclas não mais indicavam a qual letra correspondiam. Às vezes as folhas ficavam presas e ele tinha que puxá-las com força. Como resultado, a coluna de papel que se acumulava no chão do corredor era irregular e algumas folhas estavam rasgadas ao meio.
Sol e lua se alternaram. Semanas transcorreram e o incessante tac-tac-tac-tac denunciava vida no antigo casarão. Apenas algumas latas de legumes e atum restavam no armário, a água ganhava uma coloração amarela e aquela era sua última fita. Se continuasse teria de usar a tinta vermelha. Numerou, com uma caneta verde a folha branca que agora o encarava, pronta e presa à máquina: 943, escreveu com firmeza. Estava na hora de terminar. Seus músculos gritavam em protesto pelos dias de pouco movimento. Cada centímetro de seu corpo era um ponto de dor.
Levantou-se, esticando os músculos da costas e estralando os joelhos. Pensou em Hellena pela primeira vez em... muitos dias, não tinha certeza. Tomou um banho rápido. Era um milagre que ainda havia água encanada, fria e com um pouco de barro, mas água encanada, caindo livre em seu chuveiro. Calçou os coturnos e sorriu ao lembrar que os comprara sem saber se teria alguma oportunidade para usá-los. Colocou calças confortáveis e uma camiseta do Pantera. Seu armário era constituído basicamente por roupas pretas e marcas registradas de banda.
Sentado no corredor, próximo à porta barrada, colocou uma mochila pesada encostada na parede e, em poucas horas, terminou de escrever o livro. Tac, gemeu a máquina, quando ele pressionou a tecla e imprimiu na folha o ponto final. Organizou cuidadosamente as folhas e as amarrou com um barbante.
O escritor colocou a mochila nas costas e pegou o revólver que estava no chão, em sua cintura, um cutelo permanecia preso ao cinto. As últimas latas de atum, milho e ervilha estavam seguras na mochila, por baixo de uma foto de Hellena.
Enquanto o escritor alto empurrava o armário que bloqueava a porta e pisava pela primeira vez naquele novo mundo, o livro permanceia no chão do corredor. O autor matou seu segundo zumbi naquele mesmo dia, enterrando fundo o cutelo na cabeça do morto-vivo, sentindo um misto de asco e prazer. Seek and Destroy, cantava enquanto se livrava dos mortos que caminhavam. Seus dias de escritor haviam acabado, permaneciam no passado, esquecidos e enterrados, talvez junto com sua esposa. Tudo que podia fazer era seguir em frente, conservando energia e recursos, tendo sempre uma última bala na Desert Eagle com seu nome escrito. Antes de usá-la, porém, iria derrubar o máximo possível daqueles malditos que se recusavam a continuar mortos.
O livro, estado perfeito da arte, épico poderoso e de capacidade influente, talvez o precursor de todo um culto ao redor de uma nova escola literária - o último livro escrito pela humanidade – permaneceu para sempre intocado.



segunda-feira, 26 de março de 2012

o caso ao contrário


Eu molho o pão no café e levo fé que deus é preto e fuma cachimbo. Nasce menino, cresce mulher...


- Vira a fumaça!



- Oi?



- Vira a fumaça pra lá, por favor. Não quero fumar por tabela.



- Ah...



- Hoje vi duas andorinhas.



- E daí?



- E daí? E daí que hoje eu vi duas andorinhas, uma voando atrás da outra, as duas fazendo um ninho na parte de baixo de uma sacada.



- Ou no teto da outra.



- Como?



- Era um prédio, não era?



- Aham.



- Então era na parte de baixo de uma sacada ou no teto da outra, sacada de baixo. Era um prédio, não era?



- Era, eu já disse.



- Então como não pensou nisso antes?



- Não sei. Acho que eu fiquei pensando no andar mais alto.



- Típico.



- Com assim "típico"?



- Típico. Você sempre olha pro andar mais alto e perde os outros, o térreo e todos os que existam no meio. Se tua vida fosse um arranha-céu iam faltar janelas.



Joana chega com mais cervejas. O café acaba. O pão também. Ele continua.



- Você ia dizer "é o verão chegando", não ia?



- Ia.



- E nem por um momento pensou que temos ainda toda a primavera pela frente, pensou?



- Não. Nossa, fiquei até sem graça, agora...



- Típico, foi o que eu disse. Nem pensou que hoje é primavera. Pensou só que uma andorinha não faz verão, mas duas devem fazer. Mesmo que o verão ainda esteja fora da vista.



- É...



- Pois é.



Ele continuou a fumar, como fazia antes da história das andorinhas. Pensava na primavera, nela e no verão. Ela não tinha como saber disso, então não pensava em nada, apenas tentava, ali, sentir o momento.



A fumaça ainda ia na cara dela.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Constantinopla, 1968


“Sabe como algumas músicas às vezes podem trazer um sentimento nostálgico? Comigo acontece, mas é raro. Led Zeppelin, por exemplo, me faz lembrar de uma antiga namorada; The Who e Cream de quando estava no meu primeiro trabalho e Miles Davis remete aos copos de whisky. Muitos deles. Eu estava bebendo um pouco além do que deveria, mas isso passou. A mesma coisa pode acontecer com cheiros. Um perfume, o cheiro da madeira cortada no dia anterior, um livro novo ou um disco de vinil antigo, cebola frita na manteiga... cheiros podem ser nostálgicos”, ele disse de forma leve, buscando com seus dedos a mão dela. Era linda, vestia um longo vestido azul escuro e os tentava orgulhosamente um profundo decote, seios fartos, empinados. Ele podia ver os mamilos se destacados, duas cerejas apontando em sua direção. Cabelos vermelhos, olhos de um castanho exótico, traços bem desenhados. Sabia que ela estava muito aquém de suas possibilidades e mesmo assim, com Kind of Blues tocando nas cinco caixas de som espalhadas na grande sala, ele assumiu sua audácia. A boa notícia era que ela não retraiu o braço diante de seu toque.
            “O efeito, essa nostalgia, é chamado de sinestesia. Acontece quando os sentidos se misturam ou se completam”. A voz era calma, sedosa. Uma súbta vontade de mergulhar naqueles lábios macios, luxuriosos, tomou conta dele. Era como se a mulher sentada do outro lado da pequena mesa de café fosse um labirinto que o desafiava constantemente a se perder em seus corredores sem saída, curvas fechadas e longas retas para poder se sentir completo novamente. Enquanto ele saboreava o café forte, ela brincava com uma taça de martini, rodando a bebida na borda do vidro. Continuou, em uma voz intencionalmente sedutora: “É como ler sobre uma floresta com os pés descalços na terra. Se você ler sobre pinheiros, sobre os sons dos animais e o cheiro de terra molhada ou de um rio correndo rápido sentado em seu escritório, você terá uma experiência talvez agradável, dependendo do texto. Mas será bem diferente se você passar os olhos pelo mesmo texto encostado em uma árvore no meio do bosque, experimentando sensorialmente tudo aquilo que está nas páginas. Nesse caso você teria uma boa experiência, invariavelmente”.
            Deus, ela é linda. Ele então abriu a caixa de madeira que estava entre eles. No mesmo instante, um estalo seco escapou da lareira, parcialmente encoberto pela perfeição sonora de Miles Davis. Olhou, curiosa, para dentro da caixa. Diversos marca páginas empilhavam-se organizados não por tamanho, ela percebeu, mas em uma lógica que lhe permanecia misteriosa.
            “Minhas nostalgias”, ele apontou para os marcadores. “A maioria delas, são engatilhadas não por músicas, cheiros ou comida. Marca páginas”, disse enquanto esvaziava a caixa. “Cada marcador de página me leva de volta a algum momento da minha vida ou para situações, cidades, amigos... mulheres”, viu com satisfação o rubor nas bochechas dela. Abriu habilidosamente um leque com os marcadores: “Vá em frente, escolha um”.
            Ela fechou os olhos e escolheu um dos retângulos de cartolina. Era um marcador com a capa d’O Grande Gatsby. Um sorriso se abriu no rosto dele.
            “Em 1983, eu subi o Monte Fuji com dois amigos. Ainda consigo sentir o amargo quase insuportável do chá verde. Você tem que experimentar o ar fresco no topo daquela montanha! É lindo, quase metafísico. Quase”. Os olhos castanho-exóticos brilhavam. “A gente quase acredita nos deuses japoneses lá em cima. Estávamos em três e conversávamos no topo da montanha. Ah, o Fuji! Sentamos nas pedras e estendemos um pequeno pano vermelho, acho que os quatro símbolos do Led Zeppelin estavam estampados, e comemos alguns doces japoneses, feitos de feijão, e bebemos saquê e whisky, Walker. Hans, um dos meus amigos, estava contando, sem qualquer pressa em terminar a história, sobre o dia em que um vôo foi cancelado e ele ficou preso no aeroporto de Istambul. Não havia nada para fazer, ele não entendia a maioria das pessoas e resolveu ler. Tirou da mochila um livro, surrado, que pertencia ao seu pai e começou a ler. O livro tomou conta dele, horas se passaram e as páginas lidas se acumulavam do lado esquerdo de seu dedão, até que uma mulher, uma aeromoça segundo ele, entregou quatro marca páginas, todos com essa estampa”, segurava o marcador entre os dedos, como se fosse um cigarro. “Acho que era 1968, o ano do verão. A mulher o guiou até o bar, onde um homem estava sentado sozinho, fumando um charuto e lendo o jornal do dia anterior. Ele se sentou na mesa, livro em uma das mãos, marcadores na outra. Os três entraram em uma conversa animada e logo esse meu amigo, o Hans, se esqueceu de perguntar o que diabos estava acontecendo. Pareciam velhos amigos... velhos melhores amigos. Quando o vôo do casal foi anunciado, eles se levantaram e se despediram. ‘Por sinal’, disse o homem, ‘meu nome é Francis. Francis Fitzgerald’ e se afastaram, sumindo no mar de pessoas que vagavam na espera de um avião. Ele conheceu o maldito autor, um do maiores até hoje, em uma noite quente em Istambul, preso no aeroporto da cidade! Isso é incrível”.
Durante três horas ele contou histórias. As datas se misturavam em diversos lugares do mundo e diversas situações maravilhosas. Paris, Califórnia, Ilha de Páscoa... aquele era um homem interessante, ela concretizou.
Por fim, ela pegou um marca páginas branco, com um pequeno pássaro minimalista desenhado em seu centro. “E esse?”. Ele apenas sorriu, percorrendo a mão na pele arrepiada do pescoço da mulher.
“Esse ainda não tem qualquer... sinestesia”, um beijo suave e molhado surgiu. “Sem qualquer nostalgia. Mas as memórias mais doces podem ser criadas essa noite”.
Quase sem perceber o que estava acontecendo ela o recebeu, quente e úmida. Enquanto mordia sua pele e arranhava as fortes pernas do homem, ela se imaginou como um marca páginas, um pedaço de papel azul e vermelho, cheio de sinestesia e nostalgia. Iluminados apenas pelo fogo da lareira, era impossível saber que eram duas pessoas. Durantes toda a madrugada foram um amontoado confuso de braços e pernas, gemidos, gritos e saliva.
            Pouco depois do terceiro orgasmo, ele entrou no banheiro e ligou o chuveiro. Ela ficou deitada no tapete da sala, exausta. Pensava nas história que ele contara e nas histórias que poderiam ter. Quantos marcadores, quantas viagens, quanta sabedoria!
            Ele saiu do banheiro, completamente vestido e apanhou a pequena caixa de madeira, repousada perto da lareira, guardando o marcador branco com o pequeno traço que representava um pássaro. Apanhou a chave do carro e caminhou rapidamente para a saída.
            “Espere!”, ela gritou de forma alarmada, “Onde você vai?”.
            “Sair, vou para casa”.
“Fique mais um pouco, conte mais sobre o Japão”.
            “Eu nunca estive no Japão”.
            Ainda sem entender o que estava acontecendo, ela continuou: “Me conte sobre seu livro predileto, então. Dickens? Hemingway? Wilde?”. Sem se dar conta, duas lágrimas caíram das lindas retinas castanho-exótico.
            Antes de sair daquela casa  desconhecida, e da vida daquela linda, maravilhosa, usada mulher, para nunca mais retornar, ele respondeu com um sorriso triunfante: “Fitzgerald morreu no final de 40. E eu não leio livros. Só coleciono marca páginas”.  

quarta-feira, 21 de março de 2012

segunda-feira, 19 de março de 2012

de vera


Ele entrou no Clube esbaforido e um pouco suado. Nada demais. Estava começando a estar acostumado com aquilo, e já corria praticamente com um pé nas costas. A falta de ar era surpresa.

Dois dias antes correra o mesmo caminho e nada de nada naquele campo, apenas mato. Era a entrada da favela, bairro de lata ao pé do cemitério. Era um bom lugar pra morrer, em qualquer lado do muro. Mas a surpresa não era morte, daquela vez. Correndo ele viu, baixo o sol que se punha no horizonte, um monte de florzinhas a sorrir.

Margaridas, pensou ele, mesmo conhecendo pouco quase nada de flores ou faunas. Rapaz de cidade, coitado, sonhando acordado com vidas no mato e um mundo melhor.

Seja como for, foi assim que ele contou. Entrou no bar e pediu, num sorriso, um copo de água por favor muito obrigado. Sim, sim, claro que estou bem, sim, você não sabe a quantidade, meu amor, você não sabe

era o campo do cemitério inteiro inteirinho de pétalas brancas, de centro amarelo. O sol lá se pondo e do solo brotando mais uma infinidade de pequenas estrelinhas, até onde alcançava a vista, pelo menos a minha.

Joana sorriu, pensando no sol lá de fora, nas flores, na aurora do dia final de estação.

Em algum lugar o inverno estava mais próximo, mas aquele lugar não era ali. Ali o verão acenava de longe, mandando um parente dizer olá. A prima vinha.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Sobre Escolhas e Besouros

“Sua cerveja vai esquentar, eu já disse isso”, ele falou. Ela prestava atenção, entediada, nos dois rapazes que despreocupadamente jogavam sinuca no final da manhã daquela terça-feira.
A mesa, já velha e desbotada pelo uso constante em longos anos, ficava em um canto escuro do bar. Era uma mesa que servia em seu propósito perfeitamente, ocupando clientes que buscavam por momentos nos quais poderiam esquecer do turbilhão de problemas que se acumulavam diariamente. Muitos, na verdade, juravam que o singelo bar fora construído ao redor da mesa, o verdadeiro símbolo daquele lugar. Longe de sua glória original, a mesa permanecia, inalterada e quase venerada, em seu canto escuro, escondida do mundo.
Os dois estavam na terceira partida e em quase absoluto silêncio, quebrado pela jukebox empoeirada que ficava ao lado da mesa. Helter Skelter, gritou Lennon. Os dois olharam, alarmados pela música, visto que não tinham visto ninguém perto da máquina de música. Trocara um olhar desinteressado e voltaram ao jogo. Ela percebeu que, como sempre, a música induziu o diálogo entre eles; era o que a música fazia naquele canto do bar. As pessoas jogavam e bebiam cerveja, mas se algo dos velhos discos estivesse tocando, elas também conversavam.
“Sua cerveja vai esquentar, merda! Beba isso logo”, ele repetiu, talvez pela oitava vez. O homem de gravata obedeceu e deu um longo gole do copo que estava pousado na borda da mesa em que jogavam. “Vou derrubar a cinco”, anunciou antes de impulsionar o taco de madeira na bola branca. O baque seco confirmou suas palavras, direcionando uma bola laranja para um dos buracos.
“Será que os Beatles jogavam sinuca?”, perguntou o homem de gravata, limpando um pouco da cerveja que ficara em seu bigode.
“Que tipo depergunta besta é essa?”. A bola branca rolou pela mesa, empurrando outras esferas, mas sem marcar qualquer ponto. “É claro que os Beatles jogavam sinuca. Todo mundo já jogou sinuca. É uma lei”.
“Uma lei? Lei de quem?”. Empinava o corpo, procurando o melhor anglo para dar continuidade ao jogo.
“Universal, oras. Como daquele químico, que falava que tudo vai dar errado, sempre”.
...You may be a lover but you ain’t no dancer...
“Físico. Ele era físico. Murphy, como aquele ator”. Ele olhou desanimado para o jogo: era péssimo em sinuca. “E a lei diz que as coisas tendem a dar errado, não é uma certeza. É impossível todo mundo que já viveu ter jogado sinuca”.
“Ah, mas não foio que eu disse. Eu disse que todo mundo jogou sinuca depois que inventaram o jogo. Que merda é essa de ‘todo mundo que já viveu jogou sinuca?’. Como você esperaria que as pessoa jogassem sinuca antes que o jogo tivesse sido inventado? Pô... e sua cerveja está esquentando”.
Jogaram em silêncio por algum tempo. Helter Skelter deu lugar para While My GuitarGently Weeps. O movimento quase mágico da jukebox – a bela dança dos discos de vinil – passou despercebido pelos três.
O homem de gravata limpou novamente a cerveja de seu bigode e disse: “Você acredita que existem mais Universos?”.
“Como assim, outras galáxias?”. Acertando mais uma bola, ele rodou a mesa, pensando no próximo movimento, sem perder muito tempo com universos ou galáxias.
“Não... Universos. Paralelos. Universos paralelos, onde as coisas são iguais... só que diferentes. Eu li numa revista, um dia desses. Alguns físicos acreditam que há infinitos universos, em que as coisas são parecidas, mas ligeiramente diferentes. Foi por causa de uma partícula que sumia em um lugar e aparecia em outro, alguém propôs que ela viajava para um mundo paralelo, percorria uma distância lá e depois voltava para nosso mundo. Eles afirmam que em cada um desses existe um equivalente para cada pessoa”.
“Não sei. Acho que pode ser”, respondeu, olhando para as bolas. Parou por alguns instantes e considerou. “Beba sua cerveja”.
Ele sorveu do copo.A cerveja estava horrível, quente. Olhou a bola branca percorrer lentamente a mesa, marcando mais um ponto, mas ninguém mantinha a contagem naquele mesa.
... I look at the world and I notice it’s turning…
Soltando um pouco o nó em seu pescoço, continuou: “Eu acredito nisso. Digo, em outros mundos, em que eu ainda sou eu, mas minha vida pode ter tomado rumos diferentes... minha vida tomou rumos diferentes. Infinitas diferenças! Imagine que cada escolha, cada pequena escolha da sua vida... se você usasse roupas diferentes ou comesse em outros lugares, andasse por ruas alternativas, estivesse com outras mulheres... tudo poderia serdiferente”. Ele pegou uma bola que estava na sua frente. Um dez estava estampado na tinta. “Pense nessa bola como uma escolha importante na sua vida.Você poderia jogá-la para a esquerda, mas será que iria ganhar o jogo desse jeito? Você poderia pegar a direita e o resto da partida seria diferente. Você iria errar? Acertar? Seu dia poderia ser totalmente diferente. Em mundos de possibilidades sem restrições, você escolheu a esquerda, você escolheu adireita e você fechou os olhos e jogou a maldita bola aleatoriamente”.
“Até em sua cabeça?”. Os tacos estavam agora encostados na parede.
“Até em minha cabeça, sim senhor”. Pousou a bola na superfície verde da mesa. “Mas isso não iria me agradar muito. O que quero dizer é que nossas vidas poderiam ser diferentes e ainda podem ser muitas. É uma reação em cadeia. Uma reação que segue caminhos infinitos. Isso é incrível!”
“Vamos até o balcão, sua cerveja já deve estar quente.” Ele estava acendendo um cigarro, ignorando o aviso na parede.
“Faz tempo que elaestá ruim. Ela está quente”, reclamou.
“Se os Beatles jogavam sinuca”, ele sorriu, fazendo um som estranho com o nariz. “Todo mundo jogou sinuca, principalmente o Lennon e o Harrison. Em todos os universos, afinal os Beatles são os Beatles”.
Enquanto a jukebox trocava o disco e iniciava Across the Universe, ela pensou que gostaria de ter uma vida diferente. Talvez em algum daqueles universos ela fosse o balcão do bar, onde as pessoas escorregavam canecas de vidro cheias de cerveja umas para as outras e conversavam, independete do que estava tocando na jukebos ou passando na TV. Seria bom sair do canto escuro, contar os amendoins espalhados e as marcas de copo. Elaquase podia sentir, com um estranho arrepio, os copos e canecas escorregando em sua superfície lisa.
Depois que todos seforam e as luzes se apagaram, a mesa de sinuca ainda tentava imaginar comoseria ter uma superfície lisa. Ela sorriu, envergonhada com seu pensamento pueril. Tinha certeza, afinal, que gostaria de ter o tecido verde em qualquer universo.

quarta-feira, 14 de março de 2012

A Sorte Grande

Ela passaria despercebida pelos homens. Seria mais uma mulher solitária em uma noite tranquila do bar se não fosse aquela canção no jukebox.

Não era seus cabelos ruivos que chamavam atenção, nem a roupa relativamente curta que usava, padrão natural do verão da cidade. Muito menos o boato de que seu nome verdadeira era americano: Mary Jane.

Era a maneira corrupta e sagrada que dançava Heartbreak Hotel. Como se toda dor da canção se transformasse em fúria. Como se um coração partido fosse sua sedução mais doce. Como se a alma, cuspindo pedaços, trouxesse o verdadeiro amor.

domingo, 11 de março de 2012

das neves


- Bicho, quando eu vi que ela tava ali, sentada na minha frente, olhando e sorrindo pra mim, olhando e sorrindo disfarçadamente pra mim, vou te dizer, minhas orelhas ficaram quentes. Digo, eu tinha olhado os olhos dela, passando por trás de mim antes de entrar no trem, mas daí a sentar na frente da menina, vou te dizer, é bem outra coisa, bem diferente. Fiquei com as orelhas quentes, se tu quer saber: olhos verdes azuis brilhando acastanhados, porque eu não vou dar a chance de errar a cor dos olhos... mas eram verdes.

Dejair não estava com sede. Pablo, por outro lado, bebia uma atrás da outra ouvindo o amigo contar. Sabia pra onde iria aquela conversa.

- E, imagino, na hora que a viu pensou "meu deus, é ela!", não foi?

- Pensei não! Digo, até pensei sobre pensar isso, mas pensei que pensando assim eu daria abertura pro mundo vir e chutar minha bunda. Daí sorri e parei de pensar. A gente continuou olhando, um pro outro, e nos meus fones tocava o samba que toca agora. Bicho, vou te dizer, pra gente fazer mais um samba precisa de quase nada.

segunda-feira, 5 de março de 2012

tempos idos

O copo pousando na mesa fez um barulho suave, porque quem o pousava prestava toda a atenção naquilo. Não gostava de barulho, e Deus sabe o quão barulhento pode ser um copo pousado sem cuidado.

- Teve uma vez, quando eu ainda era bem jovem, que um colega ganhou uma viagem. Uma viagem das grandes, tudo pago, muito tempo, convidado para trabalhar no melhor lugar em que poderia trabalhar. Fiquei feliz por ele, o parabenizei. Ele sorriu. Semanas depois o encontrei de novo, na mesma cidade em que morávamos. Ele não tinha ido, não viajara. Por que?, perguntei. E ele disse. A namorada estava grávida, teria o filho quando ele estivesse lá fora, na viagem. Então ele tinha ficado. O sonho de trabalho, a viagem grande, tudo deixado pra lá porque o menino ia nascer. Eu era bem jovem, sorri para ele e disse qualquer coisa de que não me lembro. Por dentro eu pensava no quão estranha tinha sido essa decisão, essa desistência. Não, eu não faria isso, que absurdo, deixar a oportunidade passar, a oportunidade pra lá. Não, claro que não. Sorri porque ele estava feliz em ficar, em ver o filho nascer. Eu não ficaria.

Joana, sentada na mesa com ele, pensava naquela história. "Você não ficaria?", disse em voz baixa, um pouco triste por pensar nisso.

- Naquele tempo eu não ficaria, de forma alguma, jeito nenhum. Mas hoje, pensando mais, vivendo mais, nenhuma viagem trabalho nem nada me faria ir pra longe de esposa e filho.

Joana sorriu. Ele sorriu. Deixou o dinheiro sobre a mesa, uma larga gorjeta e se despediu. Levantou, pegou a mala que sempre o acompanhava e, andando calma e tristemente, seguiu viagem.