Bernardo tomou a limonada, sentiu o líquido ao mesmo
tempo azedo e doce escorregar por sua garganta e gelar o estômago. Soltou uma
exclamação aliviada diante do frescor da bebida e olhou para cima, encarando
por um breve segundo o sol que parecia fritar o mundo por puro prazer. Esse puto, ele pensou. As tardes de
verão eram os momentos que ficariam marcados na memória do garoto, horas de sol
quente, quente o suficiente para criar bolhas no asfalto, onde o tempo se
derretia e não existia. Havia apenas a bola de fogo no céu e as nuvens perdendo-se despreocupadamente,
para onde os ventos as levassem. Mas não era tudo, é claro. Bernardo não
estaria completo sem a pequena bola de borracha avermelhada, os dois tacos e as
garrafas de refrigerante vazias. Os garotos gastavam dias tentando rebater ou
derrubar as garrafas com a bola e o astro espacial completava os ciclos quase
sem mudança na rotina das crianças. Eram dias felizes, sem preocupações, sem
escola e cercado de mistérios e magia.
“Duvido”, respondeu
para seu irmão mais velho. Às vezes odiava Henry, que tinha quatro anos quando
Bernardo nasceu, ele podia ser maldoso; dava cascudos fortes no topo de sua
cabeça e inventava histórias assustadoras, horríveis de verdade, apenas para se
divertir mais tarde, fazendo barulhos estranhos com a boca e dizendo que eram
fantasmas ou monstros presos no armário. Uma vez o fizera acreditar que havia
sido encontrado no lixo e que estava sendo criado por um casal de lixeiros; ou
que seus pais eram alienígenas que esparavam o momento certo de comer as duas
crianças, o que ocasionou uma dieta forçada para ele durante as próximas
semanas, não queria estar fofinho quando fosse a hora de alimentar os aliens.
“Pode duvidar,
mariquinha”, disse com tom provocador. “Estou dizendo a verdade, azar o seu!
Mas depois eu vou ter a bicicleta só para mim e você não vai encostar um dedo
sujo nela.”
“Meu dedo não é
sujo!” Bernardo torceu o rosto em uma cara de choro, ranho começou a descer
pelo seu nariz.
“Não chore! Por
Deus.”
Ele limpou as
narinas com o fim de sua camisa e disse, a voz embargada: “Mamãe falou para não usar o nome Dele assim.”
“Não enche o
saco!”, soltou-lhe um cascudo sonoro na cabeça. “E não chore! Ou vou abaixar
sua calça e jogar formigas no seu pipi. Estou dizendo a verdade! Se você
apertar esse botão, vai ter o que mais quer, juro mesmo. Que eu encontre o
papai morto atrás da porta se estiver mentindo.”
O garoto mais novo
esbugalhou os olhos. Jurar pela vida dos pais era sagrado naquele mundo
esquecido de inocência e simplicidade, Henry não diria uma coisa daquelas se
fosse mentira. Ele olhou o pedaço retangular de plástico cinza no meio da terra,
dando espaço em seu centro para um botão vermelho, gordo e redondo, destacado
alguns centímetros em sua superfície. Era uma bola chamativa, quase um desafio
de resistência para os curtos dedos de unha roída e cheios de terra. Um cabo
negro, grosso, cruzava a caixa cinza com o botão no meio e desaparedia, em abos
os lados, nas roseiras de sua mãe. Não era nada mais que uma caixa cinza com um
botão vermelho no meio, mas Henry dizia que qualquer coisa que aquilo fosse,
funcionava por mágica.
“Esses cabos vão
para o centro da Terra e cada vez que alguém aperta esse botão os anões de lava
atendem seu pedido”, Henry jurou. Os cabos realmente pareciam misteriosos o
suficiente para continuar até o centro da Terra, furando camadas e mais camadas
de pedras, magma, ossos de dinossauros, tesouros esquecidos, casas secretas e
ovnis acidentados muito antes dele nascer. Muito, muito antes. “Tudo que você
precisa é pensar em alguém e dizer o que quer.”
Ele queria a
bicicleta, pensou. Por semanas ele ficava deitado no chão da sala com as
revistas em quadrinhos nas mãos, tomando leite com chocolate e comendo bolachas
recheadas. Passava mais tempo obcecado com a foto de um menino feliz em uma bicicleta - vermelha decorada com
raios amarelos nos lados e com fitas saindo das luvas - que propriamente lendo
a revista de super-herói. Com o tempo, passou a acreditar que seria feliz
apenas quando tivesse aquela máquina selvagem entre as pernas. Até os
tacos perderam o apelo sobre ele, acertar bolas em garrafas vazias parecia
pueril e insípido. Iria certamente dominar o mundo com ela, viajar por todos os
cantos do grande país em que vivia e além, atravessar o fundo do oceano até. Já
estava tudo planejado, tudo que precisava era da bicicleta e de um aquário
vazio e invertido, largo o suficiente para colocar a cabeça e estava pronto
para pedalar até outro continente. Bernardo precisava
daquela bicicleta, mas seus pais não tinham o dinheiro. Ele entregou jornais
por uns dias, mas precisou de cinco minutos e um lápis para fazer a conta. Até
juntar a quantia suficiente, estaria casado. Homens casados não vão para o
trabalho com uma bicicleta daquelas, não: eles andam em carros sem graça e
trancam as portas do quarto duas noites por semana. Não queria esperar até ser
um velho chato, queria aquela bicicleta o quanto antes!
O menino esticou o
dedo indicador direito e se preparou para apertar o botão, o coração louco como
um cavalo... bem, um cavalo louco. “É
só pensar em alguém e apertar o botão?”
“Isso”, Henry
concordou.
Sentiu a textura
lisa do botão em seu dedo. “Quero a bicicleta da capa da minha revista do
Homem-Aranha”, ele disse com uma voz trêmula e fechou os olhos, pensando em seu
pai.
“Só mais uma
coisa”, ele retesou a mão, assustado, “a pessoa que você pensar vai morrer!”
Bernardo recolheu o
braço e dirigiu para o irmão um olhar indignado, cheio de lágrimas. Forçou o
joelho e chutou o garoto mais velho no meio das pernas, sentindo as bolas
juvenis sendo esmagadas em sua canela. Henry cruzou as pernas protegendo, tarde demais, a área atingida e soltou
um grito de dor e surpresa, caindo de joelhos em seguida, jurando mil
sofrimentos diferentes para Bernardo, que corria desesperado para a casa.
Quase matei o papai!, sua mente
gritava alto. Oh Deus, eu chutei o saco
do henry e agora ele vai pedir a bicicleta e me matar! Tinha certeza que
aquele era seu último dia vivo. Trancou-se no banheiro e chorou até sua mãe
chegar. Ela tentou conversar com o filho, mas ele apenas balbuciava palavras
sem sentido e se afogava no próprio muco. Ao menos ainda estava vivo... por
enquanto. Henry iria escolher o que mais queria, pensar nele e apertar o botão.
Se não fosse isso, estaria morto por ter chutado as bolas do irmão. Era o fogo
ou a frigideira.
Naquela noite tiveram um jantar péssimo. A mesa de quatro
lugares estava ocupada por todos eles. Seus pais, um cada ponta da mesa, não se
olhavam e bebiam mais vinho do que o normalmente entornavam. As duas crianças trocavam farpas com os olhos e chutes por baixo do pano.
“Parem com isso,
vocês dois”, disse seu pai em uma voz grave, imperativa.
“Deixe que brinquem”,
retrucou sua mãe, em um tom frio.
Fora o suficiente.
De um momento para o outro, o silêncio quebrado apenas pelos talheres batendo
na louça se transformou na Terceira Guerra Mundial. Palavrões foram ditos,
pratos arremessados e dedos apontavam. Seus pais gritavam e, por algum motivo,
aquilo não feria os dois meninos como normalmente acontecia. Eles tinham lugar
apenas pela raiva um do outro. Um esbarrão e Bernardo espalhou groselha por
toda a mesa.
“Está vendo o que
você faz com as crianças? O pobre moleque nem consegue se controlar mais, seu
porco nojento! Quando cheguei em casa ele sequer conseguia falar, de tanto que
chorava!”
“Eu?”, disse o pai,
ofendido. “Você que torna qualquer coisa em um ponto de histeria, mulher! Esse
pivete é desastrado e deve ser alguma coisa que você fumou quando estava
grávida”, a fúria fazia bolhas de baba acumular na boca do homem e um tapa
violento explodiu na nuca
de Bernardo.
Um silêncio caiu
sobre eles. “Oh, meu bem, me desculpe, foi sem querer... eu... eu não estava
pensando.” Seu pai tentou abraçá-lo, mas ele foi mais rápido, mais rápido que
suas próprias lágrimas, aliás. Não daria a satisfação para Henry. Em poucos
segundos ele havia cruzado a cozinha e estava avançando para fora. “Ben, não
faça isso!”, escutou Henry gritando. Sua mãe xingava compulsivamente. Ele tem razão, pensou enquanto cruzava o
jardim, ela é histérica.
Ajoelhou-se na
terra, perto da cerca viva e entre as roseiras, e fechou novamente os olhos,
imaginando com mais detalhes possíveis o rosto feio do homem que havia lhe dado
o tapa e disse, claramente: “A bicicleta na capa de minha revista do
Homem-Aranha!” Apertou o botão e no mesmo instante seu coração parou por menos
de um segundo. Não havia volta. Ele teria a bicicleta, mas por qual preço?
De repente sua
mente se transformou em um turbilhão de culpa e perguntas. Olhou de volta para
a casa e viu seu irmão de pé, no limite da porta da cozinha, olhando-o com
olhos assustados. Ele havia mostrado até que ponto ia seu rancor. Henry soube,
daquele dia até o momento da sua morte que não poderia ficar no caminho do
irmão.
Nada aconteceu, no
entanto. Seu pai continuou vivo, divorciou-se de sua mãe e casou com uma
dançarina que tirava a roupa por dinheiro. A mãe, normalmente carinhosa,
envelhecia, rude com as outras pessoas, um cigarro sempre presente em uma das
mãos e com vinho demais na geladeira. Ele nunca ganhou a bicicleta.
Ficou a madrugada
toda olhando de sua janela, pensando no que havia feito, assistindo o botão de
longe, tentando enxergar melhor os cabos que iam até o centro da Terra. Mas a
escuridão escondia os mistérios do mundo.
Foi sua primeira
noite acordado e as horas se passaram enquanto ele pensava no que tinha feito.
Queria voltar no tempo, queria salvar seu pai e não ter que encarar o olhar
ferido de Henry. Seu coração pesava e a limonada, ele tinha certeza, nunca mais
teria o mesmo sabor, ela seria mais azeda que doce. Ele esperava pela bicicleta
e pelo choro de sua mãe quando o homem da casa sofresse um ataque súbito e
caísse duro como pedra.
Durante a madrugada
notou os jatos de água que saíam entre as rosas, formando pequenas piscinas no
jardim da casa. Estranhou o descuido de sua mãe e culpou a briga do jantar pelo
deslize.
Quado o sol
apareceu por detrás da casa vizinha e da rua que subia em um pequena colina,
ele assistiu, boquiaberto, sua mãe sair da casa, vestindo o único roupão que tinha
e segurando uma caneca de café, apressada, xingando algo que ele não conseguiu
ouvir. Poças de água se formavam ao redor das rosas, que afundavam em um mar de
lama. A mulher abaixou-se depressa e apertou o botão, afundando os chinelos na
terra molhada.
Bernardo, com
horror no coração, nunca soube o que ela pediu. Ou em quem sua mãe estava
pensando.
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