“É assim que funciona, eu juro”, disse a Raposa. “O Homem Que Canta recebe mais comida do que consegue ingerir e o Homem Que Levanta morre de fome. Eu vi com meus olhos, comi de seu lixo… Digo mais, os lixos dos que Cantam são os melhores que a comida dos que se Levantam! Escutem o que eu digo”, continuou a Raposa, enquanto brincava com o próprio rabo, “o Homem Que Canta é rei dentre os animais.”
“Eles não trabalham, os Homens que Cantam?”, perguntou o Corvo, tentando segurar a rodela de queijo que carregava por baixo das asas. Ele segurou o queijo cuidadosamente até terminar a frase, depois o voltou para a boca, provocando uma gula quase incontrolável na Raposa. Gostava de provocá-la e não tencionava comer o laticínio: queijos davam-lhe dor de barriga e pássaros têm um ligeiro problema com seus excrementos naturalmente ácidos. Se eu comer, vou ter de voar com a bunda para cima, brincou com a Hiena em certa ocasião, antes de gargalharem da Raposa por alguns bons minutos.
A Raposa fitou o Corvo parado em um dos galhos mais altos da árvore, os olhos cheios de uma chama furiosa. “Que tal você descer para eu não gritar?”
Fez uma cesta com as asas e derrubou o queijo antes de responder: “Que tal você continuar sua história ou vou para casa comer um pouco de queijo?”
Os animais começaram a desfazer a roda e a Raposa, sentindo o estômago reclamar, interveio: “Tudo bem, tudo bem. Eu continuo com minha voz alta. Eles trabalham, mas pouco tempo. Outros Homens que Levantam levam comida e bebida todos os dias, além de outros objetos que eles fazem para passar o tempo, vocês sabem: aqueles retângulos mágicos que passam outros mundos ou as caixas pretas que tomam todo o tempo que não podem se dar ao luxo de perder. Os que Cantam raspam as pernas ou coaxam por poucas horas todos os dias e têm de tudo. Inclusive parceiras. Ah, quantas parceiras! O pior é que os mais admirados, não cantam tão bem, ou têm um canto… vazio.” A Raposa mais declamava do que falava; era melhor ser o centro das atenções e se distrair do que ficar remoendo seus pensamentos, enquanto o estômago roncava em resposta.
“Injusto!”, protestou a Cigarra, magra e faminta. Raspou uma perna na outra e produziu o som característico. “Eu fico o tempo todo tentando atrair uma única senhora e o que ganho? Eles jogam venenos na gente. Veneno!”
A coruja abriu os olhos amarelos e estudou a postura da Raposa. “Diga mais, como os Homens que Cantam ajudam seus irmãos?”
“Aí que está! Eles não ajudam. Ao menos eu nunca vi um deles compartilhando com os famintos”, a Raposa fez uma pausa dramática e encarou o Corvo novamente, “eles simplesmente vivem do trabalho dos outros. Quando entro nas cidades, fico completamente confusa.”
“E por que você vai até lá?”, perguntou a Coruja, interessada no relato.
“Ora, para ter comida. Depois que eles se amontoam em um canto ou outro do mundo, você sabe como ficamos sem caça ou coleta, então eu vou caçar em seu território. Coletar em seus lixos, na verdade. Eles deixam cada coisa boa naquelas latonas, vocês nunca acreditariam. Eles brigam por causa de suas fêmeas, sem antes procurar por outra que não vá arranjar confusão; eles se matam por baterem uma caixa de rodas na outra. Eu vi, certa vez. Um deles estava numa caixa vermelha e fez uma curva desastrosa, que acabou de frente com outra caixa de rodas. As duas fizeram um barulhão que fez meu rabo entrar até as minhas patas dianteiras, eu juro. Uma fêmea desceu da caixa vermelha e começou a usar aquelas coisinhas que eles usam para falar com quem está longe, já que seu canto é fraco e muitas vezes os outros não conseguem… ou não querem… escutar. Da outra caixa, saiu um macho e simplesmente matou a fêmea. Ele bateu nela até o que está dentro da cabeça deles voasse para todos os lados. Depois chegaram outras caixas de rodas e levara a fêmea morta e o macho violento para longe. O pior é que eles deixam a carne estragar… quero dizer, ela já estava morta. O mínimo que você podia fazer por ela era comer um braço ou uma perna, estou certa?” A Raposa parou alguns segundo para recuperar o fôlego e apontou para o Corvo: “Se eu caísse mortinha agora, tenho certeza que aquele cara lá viria e pegaria pelo menos um dos olhos sem vida. E sequer derrubaria o queijo, este maldito. É o que devemos fazer, oras. Esses homens são estranhos. Mas seus lixos, deliciosos.”
“E o que eles fazem para se divertir?”, perguntou o Sapo, que carregava o Escorpião em suas costas.
A Raposa girou algumas vezes, tentando pegar o rabo, e sentou em seguida, lambendo uma das patas. “Muitas coisas. Sabe aqueles momentos que você começa a coaxar só para passar o tempo? Às vezes acho que eles coaxam daquela forma estranho por horas e horas e horas, só para não se entediarem. Não os vejo planejando a caça, ou se preparando contra os elementos. Eles abrem a boca cheia de dentes brancos e falam por nada. Algumas vezes procuram parceiras para acasalar, mas mesmo quando estão entre outros homens, os machos falam o tempo todo, como se quisessem dormir com os do mesmo gênero. Eles mostram os dentes o tempo todo, também. E cheiram pós brancos que colocam por aí. O pior é que quando cheiram esses pós ou colocam fogo em bastões que estão em sua boca, começam a se sentir mal e algumas vezes deitam para morrer. Como aquele cachorro que vivia com a gente até achar um chocolate deixado pelos humanos que dormiram na grande árvore, lembram?” Os animais concordaram, cada um ao seu modo. “Mesmo caso. Sabem que aquilo pode matá-los, mas consomem mesmo assim. Eu, por exemplo, não comeria um coelho morto há mais de algumas horas. Meu corpo ficaria doente e aquele cara lá viria bicar meus olhos. Sem derrubar o queijo, no entanto.” A Raposa pensou por alguns instantes. “Ah, tem mais. Eles vivem com gatos e cachorros. São seus amigos. Eu conversei com cachorros de Homens Que Cantam e eles comiam de tudo, tudo mesmo. E tudo que precisam fazer é deitar e virar a barriga para ganhar agrado.”
“Em resumo”, a Coruja interrompeu, girando a cabeça em 180 graus, “os homens fazem coisas à toa até morrerem, como se quisessem matar o chamado tédio até o leito da morte, é isso? Eles se matam por causa de caixas estúpidas com rodas estúpidas e perdem a razão estúpida quando encontram Homens Que Cantam. Estúpidos! Cheiram cheiros que os destrói por dentro e acendem… coisas que colocam na boca e morrem. Ontem, você estava falando dos homens que comem tanto que ficam redondos e macios… mas de alguma forma continuam a conseguir comida, mesmo lentos. Outro dia, em outra lua, você nos contou que alguns deles bebem até vomitar e andar engraçado, mas no outro dia voltam a beber da mesma água com gosto amargo. Isso não faz sentido! Que tipo de animal sem entranhas faria isso? Eu acho que você mente, Raposa.”
“Ah é? Espere até eu contar que eles usam mais de uma fala e que alguns se matam porque não compreendem as palavras um do outro.” A Raposa agora estava em posição de ataque, com as patas dianteiras esticadas e o corpo inclinado, mostrando os dentes para a Coruja que sabia demais.
Os Coelhos começaram a dispara para todos os lados; o Corvo gargalhou e quase derrubou o queijo, enquanto o Escorpião tentou picar o Sapo, sua única forma para voltar de onde viera. A confusão reinou entre os animais do bosque, esmagado entre três cidades que cresciam rapidamente.
“Chega!”, uivou o Último Lobo, que até então fingia desinteresse. Ele era grande, tinha os pêlos cinzas e uma cicatriz profunda no lugar do olho esquerdo. “Chega desta palhaçada. Combinamos em nos encontrar aqui todas as noites e contar histórias sobre eles. Coruja”, rosnou para o pássaro, “você deu a idéia, dizendo que assim poderíamos entendê-los e, com sorte, tirar algum conhecimento de seu comportamento, só assim poderíamos encontrar uma nova casa, com ar puro e água potável. Agora você acusa nossa principal batedora de ser uma mentirosa? Escolha uma opinião e fique com ela, Coruja. Seus olhos são tão grandes, você deveria enxergar melhor a situação.”
Os animais pararam, encarando o Lobo sentado no meio da clareira. Temiam o temperamento selvagem do velho lobo que perdera toda sua matilha para jovens homens disparando pequenas pedras de pólvora. A Raposa abriu a boca e deixou uma lebre pular para longe.
“Hoje é a noite das fábulas e vou contar uma”, continuou o Lobo, que raramente se pronunciava. Limpou a garganta com um rosnado baixo e começou: “Era uma vez um lobo que uivava menino todos os dias…”
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